quarta-feira, 12 de maio de 2010

RELIGIÕES AFRO E 122 ANOS DE UMA ABOLIÇÃO INACABADA


Conta-se que nos primórdios, em alguma parte do Continente Africano, povos antigos saíram pelo mundo a fim de povoar a terra e estabelecer nela civilizações. Guiados pelo ancião chamado Oxalá, que recebeu do Deus da Vida, Olodumaré, a incumbência de criar a terra, daí um de seus títulos, Obatalá – rei da criação- o grupo vagou por muitos anos sem sucesso.Oxalá não deixou, todavia, de constituir uma longa descendência tão numerosa quanto as estrelas do céu. As famílias de Oxalá desenvolveram desde cedo a técnica de desidratação das raízes, o trabalho com o algodão e a fermentação das bebidas.

Neste intervalo de tempo, outras famílias já haviam se constituído em torno de outro ancestral, Oduduwa. As famílias lideradas por Oduduwa desenvolveram o ferro e com esta técnica, tudo que ela representa. No grupo liderado por Oduduwa, a comunicação era mais rápida graças a um amigo seu chamado Exu, convidado desde cedo para ser um de seus conselheiros. Dentro do grupo de Oduduwa, já haviam até estratégias para o enfrentamento de outros grupos. Em suma, as famílias de Oduduwa foram crescendo e se multiplicando tal qual as areias da praia. Foi Exu mesmo, principio da comunicação, quem levou até o conhecimento de Olodumaré a falta de sucesso do trabalho realizado por Obatalá. Vendo, então, a trajetória do grupo de Oduduwa, Olodumaré consentiu que ele levasse a frente o projeto de instaurar civilizações na terra. O próprio Oduduwa se incumbiu de tal tarefa. Sem muita demora ele criou a terra com tudo que ela tem hoje. Oduduwa criou a natureza e se espalhou em todo o Universo. Oduduwa não se esqueceu de nada, desenhou até as curvas da terra com a ajuda de uma serpente, símbolo da sabedoria. Ele fez as montanhas e as ilhas. O grupo de Oxalá, todavia, continuava caminhando. Ao dar-se conta do trabalho de Oduduwa, uma rivalidade se instaurou entre as duas civilizações. Dizia-se até que Oxalá teria ficado dormindo embriagado pelo vinho extraído da palmeira enquanto o grupo de Oduduwa trabalhava. Olodumaré, então, designou a Oxalá, outra função: a de como oleiro dar forma aos seres vivos, atividade que ele cumpre até hoje.

Ao grupo de Oduduwa, coube a interdição de não repetir a história como um deboche ao grupo daquele que saiu a frente para criar a terra, a fim de se evitar que dias terríveis caíssem sobre eles. Com o passar do tempo, algumas famílias não levaram a sério esta interdição e passaram a transmitir a história da embriaguez de Oxalá para outras pessoas de forma jocosa. Alguns descendentes de Oduduwa, se afastando dos ensinamentos ancestrais ridicularizaram o grupo de Oxalá, reivindicaram para sim a superioridade sobre alguns reinos, etc. Dias terríveis, então se abateram sobre estes povos: a peste, a fome e a guerra caíram sobre eles. Foram humilhados, tiveram suas famílias divididas, perderam a sua terra, foram mandados acorrentados para um local bem distante, em suma foram transformados em peças, “coisas” e mandados para a América.

A história que retomamos acima é a versão de um mito que já foi registrado e interpretado por vários autores. Não obstante este fato, ela é também é encontrada em alguns terreiros de Candomblé contada de várias formas. Para nós retomá-la neste momento introdutório é muito importante, pois nos abre várias questões.

Lendo ligeiramente, o mito recontado acima pode ser reduzido a uma explicação ingênua da escravidão que africanos e africanas tiveram que enfrentar durante mais de 300, pensando o caso brasileiro. Pode servir também para corroborar a idéia de que estes homens e mulheres foram também responsáveis pela escravidão de seus pares, ou ainda que “o continente africano já conhecia a escravidão.”

A conservação de um “relato sagrado” para dar sentido a escravidão que alguns povos do Continente Africano se depararam a partir de meados do século XV é algo que pode ser entendido a partir das funções que cumprem a própria mitologia, dar sentido as coisas. Em outras palavras, o impacto representado pela escravidão introduzida através dos europeus no Continente Africano foi tão perverso que no cotidiano não havia explicações. Não era possível encontrar nos aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais, uma explicação que desse sentido à desumanização de homens e mulheres, sua transformação em coisas, peças, destituídas de desejos, vontades e capacidade de atribuir sentido. Desta maneira, se pode ser aceita a premissa que alguns reinos africanos já conheciam e praticavam a muito tempo a escravidão, é digno de nota também acrescentar que, desconheciam todavia, a exploração do ser humano por outro ser humano através da negação de sua humanidade. Esta talvez seja uma das maiores perversidades introduzidas pelos europeus no continente africano.

Desta maneira, a idéia da escravidão como um castigo dos ancestrais pelo abandono as tradições mais antigas, servia não somente para atribuir significado ao “ter se tornado escravo”, supondo, assim uma “aceitação” dessa condição, mas ao mesmo tempo, ajudava-o a lutar contra esta condição que lhe foi imposta a partir da imagem de um momento inicial, aquele quando o grupo de Obatalá e Oduduwa caminhavam juntos.

Ao fragmentar as famílias africanas através da destruição de suas cidades, impérios e civilizações, o projeto colonial abalou significativamente as organizações africanas introduzindo ao lado das intervenções materiais, formas de pensamentos que justificavam a escravidão. Assim africanos e africanas tiveram de enfrentar um duplo problema, se de um lado estes representavam a escala mais baixa e a mais explorada da pirâmide social, estavam destituídos de sentimentos, desejos e vontades, por outro, cada vez mais ganhava força idéias que justificavam a escravidão portuguesa no Continente africano, ora como castigo dos ancestrais para o povo que era escravizado, ora como solução cristã para os descendentes de Caim, ou os marcados pela “Maldição de Cam”.

No Brasil o universo religioso trazido pelos diversos grupos africanos exerceram papel fundamental no processo de construção e reconstrução da identidade deste homem e mulher negro(a). Diferente do português que pode assistir na colônia, se não o translado de suas tradições, partes de algumas delas encarnada num catolicismo que desde cedo se revestiu de particularidades, os universos africanos como o dos ameríndios, tiveram que enfrentar a demonização de seus conteúdos e a repreensão institucionalizada em vários instrumentos de castigos. Diferentemente dos modelos religiosos que são capazes de fragmentar a vivência do Sagrado em momentos, para os diversos grupos africanos, ela é algo que se insere na vida toda. Este aspecto ao lado de outros foram bastante significativos no processo de reelaboração de uma religiosidade de matriz africana no Brasil pois serviu como elemento facilitador dos diálogos estabelecidos desde o inicio com o catolicismo, as religiões indígenas e as múltiplas visões de mundo africanas entradas no Brasil.

Dos diversos conceitos africanos responsáveis pela manutenção desta identidade inicialmente fragmentada, a noção de ancestralidade é algo fundamental. O ancestral significa algo comum. Ele está presente não somente em toda a comunidade, mas também cada indivíduo é parte dele. A exemplo da semente que traz dentre de si as informações genéticas sobre a árvore.

O impacto representado pela escravidão aos mais diversos povos africanos ainda está para ser avaliado, sem falar nos danos causados ao patrimônio material e imaterial negro-africano, ao ferir conceitos básicos ligados a identidade como a terra, a vida, a morte e a ancestralidade. Estes conceitos são, pois, subsídios que nos ajudam a entender as religiões chamadas de afro-brasileiras ou religiões de matriz africana. E mais ainda, o diálogo constante que estas diferentes tradições têm realizado na contemporaneidade. Diálogo este que algumas vezes torna-se enfrentamento político de questões construídas no contexto escravista e que persistiram cento e vinte anos após a abolição.

Coube, sem dúvida, ao médico legista, maranhense, Raimundo Nina Rodrigues, a menos dentro das Ciências Sociais, fazer um primeiro estudo dos chamados cultos organizados pelos africanos e seus descendentes ainda no século XIX através do discurso depreciativo sobre o negro. Amparado pelas pseudo-teorias científicas recém importadas da Europa e adaptadas ao cenário nacional, Nina se empenhou em provar a inferioridade dos africanos demonstrando aquilo que ele considerou elucidativo da suposta incapacidade mental dos chamados povos primitivos, a religião.

Não obstante o silêncio de mais de trinta anos que se abateu após a morte de Nina Rodrigues, um dos percussores das teorias raciais entre nós, as religiões organizadas pelos negros no Brasil, a partir da década de 30 denominadas pelos estudiosos de afro-brasileiras, continuaram sendo vítimas dos mais variados preconceitos e estereótipos negativos, imprimindo ao longo dos tempos nos descendentes de africanos termos como preguiçosos, atrasados e primitivos. Se não bastasse o Estado racista através da polícia que repreendia os cultos afro-brasileiros em nome da “civilização”, estas religiões em todas as partes do Brasil, respeitando as particularidades de cada região, tiveram que enfrentar o discurso ofensivo da imprensa escrita que além de reforçar uma série de preconceitos, responsabilizava negros e mestiços pelos males que afligiam a sociedade.

Muitos foram os trabalhos que se ocuparam dos terríveis anos 30, quando terreiros eram invadidos, sacerdotes eram presos e bens materiais das comunidades apreendidos, sem falar na humilhação provocada pela exposição pública que as lideranças negras, sobretudo as mulheres eram expostas. Como esquecer a famigerada Delegacia de Jogos e Costumes que obrigava os terreiros de candomblé a tirar licença para realizar culto aos ancestrais? Para algumas lideranças, não se submeter a esta Delegacia era sinal de prestígio.

Se é verdade que os anos 30, momento também em que se estava sendo gerada através do pensamento de Gilberto Freyre, a ilusão de uma cultura harmoniosa cujas diferenças eram dissolvidas pela miscigenação, as religiões afro-brasileiras tiveram que enfrentar um dos momentos mais terríveis para a preservação dos valores africanos no Brasil. É digno de nota que as acusações de falsa medicina, charlatanismo e primitivismo eram enfrentadas pelo povo de candomblé de forma contundente, seja pelos rituais realizados nas ruas próximas à redação dos jornais da época, à organizações que envolviam vários setores da sociedade civil. Isso equivale dizer que as lideranças religiosas, cada uma a sua maneira não ficaram inertes; ao contrário, reagiram ao discurso racista orquestrado ora pela medicina, ora pelo direito, ora pelo Estado, ora pela igreja católica, ora pela imprensa.

Os Congressos afro-brasileiros, realizados respectivamente na cidade de Recife em 1934 e na cidade de Salvador em 1937 tornaram-se espaços de reivindicação e luta pelo respeito à liberdade dos cultos afro-brasileiros. O segundo, organizado por Edson Carneiro, resguardando as severas críticas feitas a ele por Gilberto Freyre, organizador da primeira reunião, foi mais contundente, tanto na participação de lideranças religiosas quanto na reivindicação da liberdade de culto. É mister assinalar que Edson Carneiro exerceu papel significante na luta pelo reconhecimento das religiões de matriz africana.

Sobre a expressão candomblé, utilizada para designar os cultos de matriz africana organizados na cidade de Salvador que teriam migrado para outras regiões do Brasil, já há algum tempo, alguns estudos vem insistido na sua origem nas línguas kibundo e kikongo. Fato é que tal palavra, que ganhou popularidade a partir de estudos realizados sobre o negro no Brasil a partir do finais do século XIX e inícios do século XX, foi capaz de sintetizar a religiosidade de procedência africana no Brasil na sua forma mais originária tendo a cidade de Salvador como suposto centro de irradiação A última afirmação além de equivocada e carregada de preconceitos nos impede de perceber, sobretudo, a multiplicidade de expressões desta religiosidade presente no próprio Estado da Bahia, a exemplo de modelos encontrados no Recôncavo baiano e na Chapada Diamantina. Sem falarmos no Xangô e no Xambá Pernambucano; no Batuque do Rio Grande do Sul e no Tambor de Mina do Maranhão.

As religiões afro-brasileiras são expressões do esforço conjunto que desde cedo homens e mulheres, profundamente conhecedoras de suas tradições fizeram para manter vivas as suas culturas. Nem mesmo a “árvore do esquecimento”, o batismo cristão acompanhado da troca de nome, seguido da demonização das práticas africanas foi capaz de apagar da memória, elementos essenciais que mais tarde dariam origem a rituais religiosos de origem africana no Brasil. Estes homens e mulheres, a partir de suas matrizes culturais foram aos poucos reconstruindo os universos simbólicos fragmentados tendo em vista também outros referenciais.

Desde cedo, africanos e africanas perceberam que suas culturas lhes permitiam transitar entre universos simbólicos católicos ao lado de ameríndios, mouros, judeus e outros. Assim, quando o catolicismo lhes foi colocado como condição possível de ingresso na sociedade, os africanos lançaram mão desse recurso, aproveitando brechas deixadas pela religião oficial. Os africanos reelaboraram suas tradições a partir de vários universos culturais, pois eram eles quem lhes permitiam esse processo de construção social da realidade, criando assim, a possibilidades de jogar com papéis e identidades diversas.

No processo de elaboração destes modelos religiosos, o islamismo vivido de forma muito particular por alguns africanos chamados de malês, funcionou em alguns momentos como um aglutinador de vários grupos étnicos africanos no Brasil, a exemplo da revolta dos malês ocorrida na cidade de Salvador em janeiro de 1835 que dentre outras reivindicações, lutava contra a escravidão e a imposição da religião católica como religião oficial.

No momento de construção destes modelos rituais, africanos e africanas, ao lado de homens e mulheres que já haviam nascido no Brasil, foram “abrindo mão” de algumas particularidades étnicas, como o sugere o Professor Vivaldo da Costa Lima e construíram modelos mais amplos, baseados não apenas num princípio de consangüinidade, mas em laços religiosos, estabelecido e renovados ritualisticamente. Neste processo de elaboração de uma religião negra, embora desde cedo aberta para todos, ou a menos aos que estavam dispostos a tornarem-se negros, todas as matrizes africanas tiveram significado e contrariando alguns trabalhos, não houve supremacia de nenhuma sobre a outra. Desta maneira, elementos bantu, ( correspondente as culturas dos bakongos, ambundos, yagos, ovibundos etc) jeje (originários de povos euê-fom, de região do antigo Daomé, hoje república do Benim, designados em algumas regiões de mina), nagô (designação dos grupos que falam a língua iorubá) e mesmo malê influenciaram conjuntamente a construção de modelos que convencionou-se chamar de nações de candomblé, ou Batuque, Tambor, Xambá ou simplesmente de religiões afro-brasileiras.

Desde muito cedo, os africanos e seus descendentes se depararam com o processo de demonização de suas culturas, sendo obrigados a enfrentá-lo. Aos poucos, o discurso depreciativo do negro, iniciado pela igreja católica vai ganhando aliados como a polícia e a imprensa. São, pois, de fato, 122 anos de desafios, lutas, mas também de muitas vitórias e conquistas.

De fato, a referência a um passadio escravo não referencia os descendentes de africanos e africanas como pessoas, ao contrário. Não se trata de negar a história, todavia, a nossa história não começa com a escravidão, mas na chegada dos primeiros antepassados da humanidade nas Américas, antes do século XV; das civilizações encontradas pelos europeus; na desenvolvida tecnologia; na complexa medicina; na elaborada ciência em especial, a física e a matemática.

A história das populações negras espalhadas pelo mundo é a história de artistas, reis, rainhas, sacerdotes, médicos(as), arquitetos, pastores, agricultores, ferreiros. É a história dos grupos liderados por Obatalá e Oduduwa que saíram pelo mundo fundando cidades e instaurando civilizações organizadas desde cedo. Há, muita coisa para se contar sobre nós, diferentemente da história onde a figura do senhor branco é central.

São, pois, algumas dessas histórias que persistem como desafios 122 anos após a medida normativa que não somente jogou o homem negro e a mulher negra para fora do mercado de trabalho, mas também ajudou a imputar nestes, estigmas como: “não aptos” e preguiçosos.

São 122 anos de luta contra preconceitos. Contra uma abolição inacabada, onde as religiões afro-brasileiras ainda continuam sendo associadas a coisas do mal e quando aparecem nos meios de comunicação são retratadas de forma jocosa, atravessada de preconceitos. Após 122 anos elas ainda são apresentadas como exemplos de atraso e superstições, ou simplesmente reduzida à palavra seita num sentido pejorativo.

O povo de terreiro ainda continua sendo exposto e ridicularizado pela polícia, em ocasiões quando se é exigida a realização de alguns rituais nas vias públicas, sem falar das vezes em que acontece violência e prisões. Os símbolos destas religiões, muitos deles apreendidos nas invasões de casas de culto, ao lado de outros, continuam ainda sendo expostos em museus ou apenas somente entram em algumas escolas na semana do folclore, entendido como algo menor.

Dentro desses 122 anos, é bastante significativo e preocupante, não o crescimento de novas denominações cristãs, mas a postura agressiva que algumas delas vem desenvolvendo diante das religiões de matriz africana. Em muitos lugares, tem-se notícia de agressões físicas, invasão de casas de culto e até mesmo registro de casos seguido de morte de algumas lideranças. Este cenário que passa a se configurar a partir dos anos 80 nada traz de novo, apenas reforça o medo branco que se tem da cultura negra. A Lei Áurea não foi, de fato, de ouro para os negros e negras. Isso vale também para a própria Proclamação da República, um ano após a sua assinatura. Em outras palavras, a suposta “liberdade de culto” não incluía as religiões de matriz africana, nem ao menos as protegiam. Esta liberdade foi aos poucos conquistada em cada região do Brasil, cada uma, dentro de seu tempo. Aos poucos, o culto cantado baixo foi sendo alternado em alguns lugares com as palmas até chegar a vez dos atabaques.

São, pois, 122 anos de enfrentamento do medo branco que em nome do “progresso”e da civilização pagou a vinda de italianos, alemães, poloneses e outros estrangeiros para o Brasil; não contemplou os descendentes de africanos com a Lei de Terras, atribuiu a eles através de uma falsa ciência características como a preguiça, a indolência, certos vícios e algumas doenças. É esse medo que ainda hoje impede que sejam tomadas medidas mais enérgicas no combate ao racismo. É esse medo, por fim, que faz com que nos novos cenários delineados pela economia, esta população considerada inativa esteja à margem, sendo apenas a primeira em mortalidade infantil, analfabetismo, violência, doenças que já deveriam ter sido controladas, trabalho escravo e déficit habitacional.

Diante de um cenário que pode parecer desolador, as religiões afro-brasileiras continuam cumprindo seu papel de espaços de solidariedade a exemplo das antigas sociedades de proteção e amparo aos desvalidos ou ainda uma religião não apenas de negros, mas elaborada por visões de mundo negro-africanas que podem ser compartilhadas por todos.


Por fim, retomemos mais uma história:

Num lugar muito distante de nós, havia uma mulher que possuía muitos filhos e filhas. Ela fazia parte de uma grande família, seus parentes eram ferreiros, médicos, arquitetos, engenheiros, professores, cientistas, artistas, artesãos, comerciantes. Ela mesma era negociante, trabalhava com tecidos, colares, pulseiras, adornos em geral. O seu trabalho lhe obrigava conhecer pessoas de vários lugares diferentes. Esta mulher como todo o seu povo, gostava de contar muitas histórias e pelos lugares por onde passava, ela não somente contava “causos” do seu povo, mas também aprendia outros.

Certo dia, a mulher deu à sua filha mais nova uma boneca feita de milho. Contou a história daquela boneca, lhe ensinou a fazer outras bonecas e explicou que aquele presente era símbolo de todo o seu povo, lhe dizendo que tudo que existe tem vida e que tudo que nasce morre para renascer. Que as famílias são muito semelhantes ao milho, uma espiga é formada por muitos grãos e cada grão é uma nova planta.

Depois disso, a mulher fez uma viagem para bem distante de onde nunca mais retornou Todavia, seu povo não esquece dela, as pessoas continuam repetindo suas histórias, acreditando no seu retorno em cada pessoa que nasce e, sobretudo presente nas bonecas de milho que fez durante a sua vida.

Um fato terrível abateu-se sobre aquele povo: homens brancos vindos de toda a parte invadiram suas cidades. Primeiro lhes tiraram a terra, destruindo os palácios, as universidades, os centros comerciais, saquearam suas riquezas, “enganaram” os líderes das comunidades, lhes prometendo além de mais poder, um lugar bonito e melhor do que aquele que os antepassados haviam vivido e deixado.Depois estes homens vindos do além mar, como deuses, disseminaram a guerra entre as famílias e os filhos que antes voltavam para os seus pais, passaram agora a embarcar em grandes navios, verdadeiros “caixões flutuantes”, espalhando terror e morte. Reis, rainhas, príncipes, princesas, sacerdotes, sacerdotisas, artesãos, médicos, cirurgiões, guerreiros, guerreiras, mercadores, agricultores, pastores, famílias extensas, foram perdendo suas cidades, seus parentes, seus nomes e ganhando no corpo a triste marca que transformava o ser humano em peça, objeto, coisa... Estava, pois, instaurada a escravidão.

A jovem menina separada de sua família vivenciou toda esta história. Contudo, como a sua mãe, ela era uma rainha. Assim, quando pode, fez uma boneca de milho, esta agora mais colorida, mas era a mesma boneca que havia aprendido na sua terra, tornando-se assim um grande segredo, até que um dia seu presente foi descoberto, a menina castigada severamente e obrigada a sumir com a boneca. Ela então, escolheu uma árvore bem antiga, que fazia bastante sombra, fez um buraco aos seus pés, colocou a boneca e cobriu com terra. Em seguida uma chuva caiu e a menina entendeu que aquilo só podia ser um presente dos seus antepassados. Meses depois, uma planta começou a crescer, era sua comunidade que acabava de renascer naquele pé de milho. Mal havia saído as primeiras espigas cortaram por maldade a planta, mas a menina correu depressa para salvar algumas espigas que foram semeadas pelo caminho. Pássaros de todos os cantos vieram comer as sementes e passaram a cantar todos os dias para a menina, afinal tudo que existe tem vida e tudo que nasce morre para renascer.

A história que acabamos de contar é uma dentre muitas que podemos tomar emprestada da sabedoria popular para ajudar a compreender os complexos universos elaborados pelos africanos no Brasil a partir das várias referencias culturais, ora dos reinos Angola e Congo, ora dos reinos de fala ioruba, ou ainda do extinto império do Reino do Daomé ou de povos vindos da região sul do deserto de Saara.Trata-se de uma incalculável diversidade que aqui recebeu denominações de congo, angola, malê, jeje, hauça, axante, ewe, fon, ijexá, nagô e assim por diante. Nem a mais cruel das escravidões foi capaz de arrancar das populações negras seus elementos civilizatórios. São esses que ainda hoje mantêm-se vivo nas religiões afro-brasileiras como manancial que não apenas fortalece, mas confere identidade as manifestações de origem africana reorganizadas no Brasil. Se é verdade que a Abolição da Escravatura é algo ainda inacabado, é digno de nota também que homens e mulheres negros nunca esperaram por ela, a exemplo do insignificante número de escravos que foram beneficiados por ela, graças ao fato de que, contrariando a todas as idéias de acomodação que lhes foram impostas, homens e mulheres negras, sempre procuraram fazer; se não, a história imediata, a das próximas gerações, pois sabiam que destas dependiam a continuidade de suas histórias e o encontro das várias famílias que saíram nos primórdios para ocupar todas as partes da terra.

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.