segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

QUEM VAI SALVAR OYA DO FOGO ? INÃ KI JOYA



Vamos começar o texto desta semana de forma bem imperativa: Oyá é água. Ela é o rio Níger que corta com suas águas escuras vários Estados que atualmente compõem a Nigéria. Assim conta-se a sua origem: Após vários dias cercado por inimigos, o rei de Ijebu consultou os ancestrais e estes determinaram que uma oferenda deveria ser feita: “Um pano escuro deveria ser rasgado por uma virgem.” O rei escolheu a sua própria filha e após alguns procedimentos lhe entregou o pano que assim que era rasgado, as tiras que caiam iam transformando-se em correntes de água que juntando-se formaram o rio Niger, rodeando o reino de Ijebu que a partir de tal episódio passou a ser uma ilha circundada pelas águas chamadas de Oyá. História semelhante vamos encontrar para dar explicação ao culto do Orixá Oxun no rio que leva o mesmo nome e atravessa Oxogbo e até mesmo o culto a Yemanjá na cidade de Abeokutá. Retomar essa história que até já foi registrada no trabalho de Siriku Salamim King intitulado: Os orixás africanos, publicado pela editora Oduduwa é muito importante num momento em que tal ancestral enfrenta uma acelerada mudança de concepção. Se é verdade como sugeriu Roger Bastide que a escravidão impões às religiões trazidas pelos africanos a seleção dos ancestrais cultuados no Brasil, ora reforçando algumas características, resultando o desaparecimento ou o fortalecimento de outros, é digno de nota também que na atualidade, a representação desses ancestrais recebem “acréscimos” que na maioria das vezes visam atender as expectativas da “modernidade”, da “globalização”e da demanda turística. Se no início, os missionários católicos, juntamente com os traficantes tiveram participação na construção de algumas concepções confusas sobre alguns ancestrais, na atualidade isso fica por conta particularmente dos antropólogos ou outros simpatizantes que se antes haviam confundido os ancestrais com “deuses divinizados”, agora os tratam como “arquétipos universais”, uma espécie de tipologia, imagem, resumindo “formas de classificação.” Se por um lado isso atrai um público que ver as religiões afro-brasileiras como algo que vai além da preservação e afirmação dos elementos negro-africanos, tal fato não deixa de causar danos às matrizes culturais que formaram estas religiões. No caso de Oyá, as imagens oscilam entre a sensualidade, reduzida à sexualidade e à vulgaridade, depravação, estereótipos que desde cedo acompanharam a mulher negra. Não sei em que momento padronizou-se que a cor de Oyá é o vermelho. Venho insistido que orixá não tem cor, exceto para os órgãos de Turismo que atualmente vêem organizando festas religiosas na cidade de Salvador. Gilberto Freyre, por exemplo, nos vai informar o significado do uso do “encarnado” para a cultura portuguesa e espanhola. Era a cor das paixões, da atração, que inflamava os corações, utilizada pelas cortesãs no século XVI. O vermelho também era utilizado na prevenção ou combate de algumas enfermidades. Diferentemente, a “cor de coral”, remete à terra, representada pelo cobre ou outros metais. Fato é que esse apelo a sensualidade no orixá Oyá, acontece em detrimento da retirada desta de Orixás como Oxun e Yemanjá, ancestrais guerreiros que graças à sua aproximação com imagens tomadas emprestadas do Cristianismo, perdem também as suas características. Certa ocasião presenciei a comparação entre Oyá e a deusa romana Diana, caçadora, guerreira, que possuía várias formas. Lhe chamei a atenção afirmando que “Oyá ficaria mais contente” se fosse comparada a Isis, a deusa africana da imortalidade, que emprestou à Imaculada Conceição o título de Mater Dei , mãe de Deus. Assim como Mitra, o Deus Sol, celebrado no dia 25 de dezembro cedeu lugar para os cristãos comemorarem no seu dia, o nascimento de Jesus. Oyá é de fato, o ancestral da imortalidade. Como Isis, ela é responsável pela continuidade da vida. Se compararmos os dois mitos, Isis através dos bálsamos e perfumes garante a continuidade da vida através da mumificação e Oyá, da mesma maneira reunindo os pertences de seu pai, o velho caçador, após vários dias de festa, garante a sua memória. Mais uma vez o seu elemento é água, pois elas garantem a continuidade. Lembremos que o ar, nada mais é do que água condensada e os ventos, este ar fazendo movimentos rápidos. Como Isis, que ajuda-nos na travessia sobre o mundo dos mortos, Oyá leva como vento o último suspiro de cada um de nós, entregando-o a Olodumaré. Além disso, ela espalha as sementes como a borboleta que distribui o pólen entre as flores, misturando as cores, mantendo a vida. Oyá relaciona-se diretamente com os olhos, os mesmos que nos separa do mundo dos antepassados. Destes apenas podemos enxergar tiras de pano que balançam graças à força emprestada por Oyá. Esse fato é lembrado num mito que conta que certa ocasião, o povo do Dahomé, ou povo da cobra, marchou contra o seu reino a fim de destruí-lo. Em pleno dia claro, Oya apareceu toda vestida de cobre e o reflexo do sol sobre suas vestes foi de tal maneira que cegou o exercito e o fez recuar. Oyá liga-se ao mercado. Ela é o principio ancestral da troca, da moeda. Esta característica é evocada em vários mitos onde ela aparece como uma búfala ou um leopardo. Certamente por este motivo desde cedo africanos e africanas lhe evocou no momento das vendas. Oya, na verdade, surge de várias formas. Ela está em todos os lugares, daí um de seus títulos: Ya mesan Orun. Aquela que está em todos os espaços que nossos olhos não alcançam. Mas como o elemento fogo aparece ligado a Oya? Ora, tal elemento reveste-se de significado particular nas civilizações mais antigas. Enquanto as águas remetem à continuidade, o fogo diz respeito à transformação, mudança, movimento. Inã, fogo, é atributo por excelência do Orixá Exu. Como lembra o provérbio: “Um corpo que possui calor esta vivo, quando ele esfria está morto.” Já tivemos a oportunidade de explicar como Exu “anima” o corpo. Izô são as chamas, labaredas. Esfregando uma pedra na outra, ou dois gravetos, temos a faísca. Em seguida, abanando, por exemplo, temos as labaredas. Izô significa encontro, disputa, tudo que a fogueira, o fogareiro, o fogão de lenha, o moquém representou para a humanidade. Há apenas um mito onde aparece a relação de Oyá com o fogo, o qual já trabalhamos com o nome: O dia que o mundo pegou fogo. Trata-se da história que fala que Xangô pediu a Oyá que fosse à terra dos Baribas buscar algo que faria todos os reinos dobrar-se diante de sua presença. Porém, Oyá não deveria abrir a encomenda. Assim Oyá fez. Retornando, todavia, diante da recomendação de seu esposo, Oya abriu a caixa e provou a “fórmula mágica” que estava conduzindo. Ao entregar ao Rei, este se apressou logo em experimentar. Para sua surpresa, “Oya mal podia abrir a boca pois ela era um fogo só.” Graças a sua “ousadia” todos os reinos estavam salvos, pois passariam a dividir com o Rei o principio da transformação. Conta-se ainda que Xangô, não satisfeito com este feito, procurou o local mais alto do reino e começou a manipular a fórmula trazida por Oyá. Fogo, então, passou a descer do céu como chuva, sob a forma de meteoros e raios, incendiando Oyó. Após o desaparecimento do Rei, as lágrimas de Oyá deram origem ao rio onde hoje ela é cultuada. Com isso, encerramos nosso texto explicando que o título: Quem vai salvar Oyá do fogo é uma provocação para que reflitamos sobre como estamos nos apropriando das imagens produzidas ora pela academia, ora pela mídia. A descaracterização do Orixá Oyá é apenas um exemplo. Este tem me incomodado muito. Salvar do fogo significa procurar ir além das leituras que reduzem este orixá a tal elemento, afinal, “o fogo não queima Oyá, Inã ki joya. Não queimou na presença de Xangô, não queimou quando as labaredas desceram do céu contra o seu reino porque ela é água, é continuidade, garantida pela boca que comeu o fogo como Exu que comeu tudo e depois devolveu as coisas, agora, cheias desse principio divino transformador. Epa hei!!!!!

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

CANDOMBLÉ PARA ALEM DO BEM E DO MAL



O problema do mal é difícil e complicado de ser entendido, um mistério que ainda hoje está para ser desvendado. Em linhas gerais, quando nos referimos ao mal, nos remetemos à figura do Diabo entendido como adversário de Deus, espírito sedutor, enganador e aniquilador de almas. Se não podemos prever o momento do surgimento da noção do mal, a imagem do Diabo, ao contrário é algo historicamente construída, fruto do encontro de crenças antigas vindas, ora o Judaísmo, da Grécia, de Roma, dos Persas, dos Iranianos e por fim do Cristianismo que a partir do século XVIII recorreu à imagem do Deus grego Pã, deus dos campos, dos camponeses, com chifres, cascos, rabo, orelhas e partes inferiores do corpo peluda. O tridente teria vindo de Netuno, deus dos mares. Não vamos, todavia, nos deter nesta discussão que contemporaneamente foi abandonada pelos seus principais difusores dentre nós, a exceção das chamadas igrejas neo-pentecostais onde tal figura aparece com “toda força”, provocando desgraça na vida das pessoas ou até mesmo se apoderando do corpo delas, daí a importância do chamado exorcismo, termo que ao passar do tempo sede lugar para a palavra “expulsão”, esta certamente mais forte. Desde a Antiguidade, o que muda quando nos referimos ao mal é apenas a sua concepção. Em outras palavras, há momentos em que o mal faz parte da natureza do sagrado, e outro onde ele é personificado. Esta última abre uma série de problemas a começar pela idéia de que se o Diabo não foi criado por Deus, então ele se auto criou, logo ocuparia o mesmo nível da Divindade do Bem. Aqui paramos esta discussão, pois tanto os povos ameríndios quantos os povos africanos não conheciam estas idéias, embora nunca tivessem ignorado a noção do mal. Pena que quando esse mal personificado atravessou o Oceano Atlântico com os missionários católicos ele ganhou a aparência de nossos índios e africanos, ele foi colocado no nosso corpo, legitimado pelas nossas características físicas. Ainda hoje, as religiões de matriz africana são associadas ao mal. Eu mesmo, cresci ouvindo que “candomblé era coisa do Diabo.” Não poucas vezes sou interrogado: “porque o candomblé faz o mal para as pessoas?”, sem contar a série de artifícios narradas por alguns para justificar a falta de dinheiro, doença, separação,até mesmo a morte realizada pelos chamados “candomblezeiros”, em outros estados “macumbeiros”, “catimbozeiros”, “juremeiros”, assim por diante. Nestas ocasiões antes mesmo de irmos ao embate com a pessoa é melhor ouvir, quem sabe não aprendemos alguma coisa. Fato é que vivemos no mundo do medo. O medo no mundo moderno é uma realidade, sem falar do fato que historicamente demonizamos sempre o diferente, aquilo que achamos feio. Demonizamos para dominar. É bem certo que se não tivéssemos o desejo de impor as nossas verdades, o Diabo como uma personificação do Mal não existiria e esse ultimo seria visto no mundo como contingente, passageiro, algo em que não nos ocuparíamos nem com a sua origem nem com o seu começo, mas infelizmente temos que enfrentá-lo. Vários autores se debruçaram a fim de dar uma explicação sobre a associação da figura do Diabo ao orixá Exu, ou ao Nkice Nzila, ou ao Vodun Elegbara. Como não sou especialista em Demonologia, estudo sobre as representações do demônio, vou me limitar a falar sobre estes princípios de comunicação, pois esta é a função que estes ancestrais cumprem dentro das religiões afro-brasileiras. Para que imagem mais bonita do que a de Nzila, literalmente o “caminho”, mas não qualquer caminho, “todos os caminhos”, caminhos que formam as linhas, demarcam os pontos cardeais, caminhos que se atravessam, se recortam, se redefinem, se criam, recriam-se o tempo todo, caminhos que se encontram no centro de todos os caminhos para dali partirem novamente para o mundo, a encruzilhada. Geralmente quando vou falar especialmente sobre o ancestral Exu utilizo a seguinte imagem: quando você envia uma carta para alguém, há um remetente e um destinatário. Exu é o caminho imaginário entre estes dois, sem Exu, a carta nunca chegaria ao seu destino, mas é Ele mesmo que nos faz andar, pular, saltar, ter êxito, vontade, alegria, falar, daí um de seus nomes Elegbara, senhor do corpo, corpo negro e negra que dança, samba, ginga, é lugar de oração, mas é o tempo todo estigmatizado porque é negro. Bara significa corpo, caminhos. Exu é tudo isso. Sem esse principio nada se concretiza. Infelizmente algumas pessoas ainda concebem esses ancestrais como a personificação do mal sugerida pelos missionários católicos e atualmente as igrejas neopentencostais. Assim são chamados de “escravos dos orixás”. É digno de nota que no contexto da escravidão, momento onde as religiões de matriz africana foram reelaboradas, o medo também foi utilizado pelos africanos como defesa e certamente, acabada todas as esperanças apenas lhe restaram estes ancestrais cuja concepção estava ligado ao próprio corpo. Num período mais adiante quando os ancestrais foram concebidos por uma religião brasileira que acabava de nascer, a Umbanda, Exu foi de fato identificado com o Diabo, mas não com a personificação do mal, se de um lado ganhava-se, como alguns acreditam, com a valorização de algumas classes marginalizadas, deixava-se de lado parte de uma das maiores contribuições das religiões tradicionais africanas às religiões afro-brasileiras ao incorporar velhas dicotomias como bem/mal; luz/trevas; dia/noite; espírito/matéria. E a chamada Pombagira?. Nada mais é do que a expressão Npombo Nzila mau ouvida, o que chamamos de corruptela do nome, o que nada tem a ver com a sua representação, uma mulher de saia que exibe sensualidade. Maria Padilha é outra imagem a parte. Essa sim, ora é portuguesa, ora é espanhola. No romance surgido no século XIX aparece como uma das amantes do rei de Castela. Foi trazida ao Brasil na memória das órfãs ou mulheres degredadas que tiveram contato com o imaginário que inspirou o escritor a escrever a obra chamada Carmem que conta a paixão de um homem por uma cigana que arruína a sua vida. São apenas dois exemplos de “santos que a África não viu”, ao lado de tantos outros que são associados ao Diabo porque estão mais próximos dos seres humanos. Mas voltemos à questão do mal. Em linhas gerais ele não é personificado, o que não nega a sua existência. Como se ouve em alguns terreiros “a tentação está no mundo”. Devemos fugir dela. Devemos passar pelo mundo sempre fazendo o bem, fazendo o bem a tudo e todos. Diante de algumas situações devemos demonstrar fraqueza, para assim irmos levando a vida. Mas o que é o bem? O bem também está no mundo, devemos buscá-lo sempre. Se estivermos sempre em busca do bem, o mal nunca chegará até nós, nunca nos enxergará, pois eles andam um ao lado do outro. O bem esta ligado a tudo que junta, ou como se ouve dos tios e tias “que ajunta”. O bem é tudo que mantém o universo integrado, pois fomos feitos para compor o Universo. É o ajô, por exemplo, a união, integração, tudo que faz retornar à comunidade. O contrário é o ejó, o que separa, o que rompe, o que desintegra. Se somos parte da teia, o princípio é que devemos sempre procurar estarmos agarrados a ela. Há um provérbio que nos ajuda a entender um pouco mais esta visão: “Não há bem que seja puro bem e não há mal que seja puro mal. Ou ainda aquele que diz: “não há mal que sempre dure, não há bem que sempre perdure.” Talvez isso nos ajude também a entender a história de um viajante que atravessou dois continentes para chegar até uma casa de candomblé para “colocar uma mesa”, como se falava anteriormente antes da expressão jogar búzios entrar na moda. Antes mesmo do viajante chegar até o local onde se realizava as consultas, a sábia Iyalorixá, profundamente conhecedora e respeitadora de suas tradições, já havendo sido alertada pelos orixás, após ter submetido o viajante a algumas horas de espera a fim de “descansar o corpo da rua”, ou mesmo fazer-lo desistir da intenção, saiu rapidamente olhou para a pessoa e com voz forte altiva falou: “Estava mesmo lhe esperando, já chegou até aqui, veio de tão longe, descansou o corpo, esfriou a cabeça, agora vá em paz meu filho, você já encontrou a resposta que queria, nesta casa não tem o que você veio buscar, pois eu não conheço segredo para o mal.” A pessoa baixou a cabeça, lacrimejou e entendeu que caminho semelhante ele poderia ter feito para buscar o bem. Entendeu também que o mal na vida deve ser visto como contingente, ele é o que menos importa, ele serve muito mais para quem acredita que pode realizá-lo, do que para quem é capaz de receber. Na dúvida era melhor retornar ou sair pelo mundo a procura do bem, pois somente este garante a nossa permanência na teia da vida. TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A TARDE.


Orixás Santos e Festa é uma abordagem sobre o tema da "dupla pertença" na cidade de Salvador-Ba, tema carregado de preconceitos que acompanharam os estudos sobre as religiões afro-brasileiras. A partir de um diálogo com a história, o autor demonstra como o chamado sincretismo afro-católico não pode ser reduzido a relações externas entre estes dois cultos, sem falar que o entrelaçamento que desde cedo africanos e seus descendentes estabeleceram com os varios modelos religiosos com os quais se depararam na diáspora, ajuda-nos a entendê-los como sujeitos de sua própria história, não obstante o fato da escravidão moderna os ter reduzido a coisas. LIVRO ESGOTADO

ESTUDO ABORDA OS TERREIROS DE CANDOMBLÉ DO RECONCAVO BAIANO



Vencedor do Prêmio Erico Vanucci no ano de 2006, o livro é resultado de uma pesquisa de Pós Doutorado apresentada a Universidade Estadual Paulista (UNESP) Campus de Marília pelo Dr. Vilson Caetano. É o primeiro estudo sobre as "casas de candomblé" do Recôncavo Baiano, envolvendo cidades como Santo Amaro, Cachoeira, São Gonçalo, São Félix, Maragogipe e Muritiba. O estudo demonstra que africanos, africanas e seus descendentes construíram modelos religiosos diferentes dos exaltados na década de 30 a partir dos estudos realizados na cidade de Salvador. Nestas religiões, caracterizada por um culto doméstico e um curto ciclo de festas, orixás e vodus "misturam-se" a ancestrais brasileiros. Soma-se a isso a presença dos chamados "orixás igbós". Santos estrangeiros como os ancestrais dos africanos. Trata-se de santos católicos evocados através de ladainhas antes de iniciar a festa. Quer saber mais sobre o assunto? Entre em contato com o autor através do e-mail: vilsonjr@uol.com.br e adquira este livro.

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O livro aborda a chamada cozinha ritual de alguns terreiros de candomblé. Espaço cheio de significados onde várias visões de mundo africanas dialogam com outras matrizes culturais. Na opinião do Prof. Dr. Vivaldo da Costa Lima, o trabalho é pioneiro no assunto pela sistematização que faz de temas relacionados a "Antropologia da Alimentação"

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COMIDA DE SANTO E COMIDA DE BRANCO


Embora algumas pessoas reajam à expressão “comida de santo”, aqui ela será tomada como o mesmo que comidas rituais dedicadas nas comunidades terreiros aos nikices, vodus e orixás. Num trabalho publicado em forma de livro intitulado: Banquete Sagrado, notas sobre “os de comer” em terreiros de candomblé, já tive a oportunidade de demonstrar a importância, o papel e o significado das comidas votivas dedicadas aos ancestrais nas comunidades/terreiros. Em linhas gerais, no candomblé, costuma-se dizer que tudo come, recebe alimentos especiais preparados para cada ocasião, comem desde a cumeeira ao chão, este último principalmente. Isso é explicado através da concepção de que nada se mantém vivo sem a comida. Por outro lado, já demonstramos no texto em que abordamos o sacrifício nas religiões de matriz africana que esta comida é ao mesmo tempo, força vital, axé, mas também um contra dom, uma espécie de contra presente que as primeiras civilizações estabeleceram com o Sagrado, pois desde cedo se acreditou que “a fertilidade da terra dependia dos antepassados, tornando-se estes os primeiros seres com os quais as civilizações foram obrigadas a trocar”. Alguns trabalhos já se debruçaram sobre a origem destas comidas rituais que nos terreiros aparecem como africanas, ou de origem africana. Há, todavia outros que insistem ser mesma a base do cardápio servido aos orixás, por exemplo, nacional. A falta de tempo não nos permite entrar neste debate, o que já nos ocupamos no trabalho citado anteriormente, mas gosto sempre de afirmar que o que torna a “comida de santo” africana, é muito menos os ingredientes que entram na sua preparação, mas um conjunto de técnicas transmitidas de forma iniciática e secreta, somadas às visões de mundo evocadas através da comida, os significados, os sentidos, os sentimentos, o Sagrado construído e reconstruído a todo momento a partir da experiência histórica de cada comunidade. Assim, se aceitarmos que esta cozinha ritual é afro-brasileira fugimos ao menos da busca pela pureza e nos tornamos mais abertos para entender a dinâmica do pensamento africano, dinamismo este que permitiu ao lado de permanências africanas no Brasil, recriações e invenções feitas não de forma aleatória, mas fiéis a visões de mundo posta a prova em cada indivíduo na diáspora negra pelo mundo. Já no final do século XIX, autores como Manoel Querino já fazia uma distinção entre as comidas que considerava “puramente africanas”, do “sistema alimentar da Bahia”. É, todavia na década de 30, sobretudo a partir do pensamento de Arthur Ramos que surge uma má interpretação sobre a origem, presença e popularização destas comidas nas ruas, por alguns autores. Ora, o velho Ramos atento as modificações de algumas iguarias afro-brasileiras, sugeriu que nos afamados candomblés ainda podiam ser encontradas comidas de “origem africana” num estado mais original, constatação que acredito valer até hoje. A partir desta idéia alguns autores que lhe seguiram entenderam que a comida comercializada na rua desde finais do século XVIII teria uma origem sagrada. Certa ocasião fui questionado por uma jovem jornalista sobre a relação que existia entre o akarajé vendido pelas nossas tradicionais baianas e o akarajé de Yansã. Seus olhos saltaram quando afirmei que não existe relação nenhuma. Primeiro, porque Yansã não como akarajé, mas akará, bem diferente dos hambúrgueres que encontramos na cidade de Salvador acompanhado com o refrigerante de cola, jé é o verbo comer, expliquei. A jovem, todavia insistiu: “mais antigamente não era uma comida vendida apenas pelas filhas do orixá Oyá?” Lhe desapontei mais uma vez. Antigamente é uma temporalidade que não conheço, depois é bem provável que africanos e africanas, conforme informações do Professor de grego Vilhena no final do século XVIII, vendiam, além de akará, lelê, abará, ekó, ekuru, mungunzá, efó, aberém, mocotó e outras iguarias, ao lado de bebidas como o aluá. Fato é que o akarajé está na moda, foi eleita comida para representar a baianidade, outra construção problemática. Porém não deixei de mencionar a sacralidade do mercado e da arte de mercar que não foi inventada pelos africanos. Para compreendermos isso basta prestarmos atenção à bolsa de valores, ela é imprevisível. Mesmo assim realcei que acumular capital ainda hoje continua sendo um dos maiores desafios para as comunidades terreiros e seus iniciados; para os negros(as) em geral é mais provável que os filhos de alguns orixás ligados ao azeite de dendê tivessem mais “cabeça de venda” para comercializar certas iguarias, o que não é uma regra, como nada é regra geral no candomblé. Eu mesmo conheci na cidade de Cachoeira, uma senhora já falecida, filha de Oxalá que nunca abdicou de suas vestes brancas, que construiu a sua família, formou todos os seus filhos vendendo acarajé. É preciso ter, de fato, “cabeça de venda”, em outras palavras, sair para a rua e voltar com dinheiro para casa. Resumindo, ser empreendedor, fazer freguesia. Embora se tenha esquecido, o mesmo vale para os mingaus, iguarias que ainda hoje resistem nas ruas, contrariando o discurso “higienista”. Verdade é que, africanos e africanas e hoje seus descendentes mercaram tudo que podiam, pois disso dependia a sua economia, a sua sobrevivência, a formação de seus filhos(as), o custeio de um ritual que se pagava durante anos. Verdade é que quando isso era realizado, estes momentos eram atravessados de sacralidade, onde em algumas vezes o sistema de troca tradicional era alternado pelo inspirado nos universos africanos. Mais o que difere a comida de santo das comidas comercializadas nas ruas? Gosto muito da explicação do professor Vivaldo da Costa Lima que sempre lembra: “os santos comem o que os homens comem; apenas estes recebem comidas mais elaboradas.” Assim é diferente um feijão de azeite de um “omolocum” oferecido ao Orixá Oxun, este requer mais atenção no seu preparo, exige pessoas especiais pois varia até a textura dos grãos obtida através do cozimento, sem falar nas palavras de encantamento e orações evocadas antes, durante e na hora do oferecimento ao ancestral. Lembro de um sacerdote que disse: se fosse assim, eu escrevia a nota para o cliente e ele fazia na casa dele. Orixá não tem cardápio, menu, receita. Isso é menos uma preocupação para os chefs, assim não terão que concorrer com a Yabassé, “a velha que cozinha”, sacerdotisa da comida, única autorizada a informar sobre estas. Como sempre são escolhidas entre as que menos falam, a comida sagrada está resguardada . Esclarecida esta parte, vamos falar agora das chamadas “comidas de branco”, o que não é o mesmo no sistema de classificação das coisas comestíveis e não comestíveis do povo de candomblé, “comidas brancas.” Esta última expressão reserva-se às comidas que não levam azeite de dendê. São iguarias votivas que remetem aos primeiros grupos humanos que saíram para povoar a terra. Comidas a base de raízes e grãos, conservadas na forma de farinhas que se transformam em papas, massas e mingaus. A primeira expressão é reservada às comidas do cotidiano, como por exemplo, o tradicional feijão com arroz. As comidas de branco não são novidade nos terreiros de candomblé, ao contrário, estão presente como constitutivas de momentos especiais como o café oferecido em dias festivos, ou na ocasião de rituais fúnebres quando se come aquilo que o morto gostava. A novidade é que estas comidas estão paulitaneamente substituindo as comidas de santo nos dias de festa. Não obstante o bom gosto e requinte que estas comidas são apresentadas ao público, acompanham este fato a reação de algumas pessoas contra as chamadas “comidas de azeite”; ora evocando que fazem mal, ou porque não gostam, sem nenhuma justificativa. Ainda bem que não surgiu a palavra saudável, outra expressão que está em moda. Isso acontece, sobretudo entre os mais jovens. Esse fato abre uma série de questionamentos. Nada contra aos buffets organizados por alguns terreiros, afinal, a máxima de que a comida exibe prestigio, poder e status social vale também para o candomblé. O questionamento está no desaparecimento das comidas de santo em detrimento das comidas de branco. Na maioria das vezes, as primeiras ficam restritas aos orixás “que comem sozinhos”, e acaba fazendo desaparecer rituais realizados no dia seguinte. Será que a popularidade das “comidas de azeite”, em dias como a sexta-feira, ou mesmo a presença dos restaurantes de “comidas típicas” explicaria a não apreciação do gosto pelas comidas de azeite, nos terreiros comidas votivas, por algumas pessoas? Lembro que algumas dessas comidas chamadas baianas eram reservadas à ocasiões especiais como aniversário, por exemplo. Com o tempo foram desaparecendo, tornado-se inicialmente “comidas de pobre” e depois comidas que fazem mal por conta de problemas ou outras “doenças que estão na moda” e que por isso devemos evitá-las antes mesmo de passarmos pelos profissionais de saúde que decidem o que devemos comer, a quantidade e a hora. Refletir sobre este aspecto é interessante pois abre discussões pertinentes a preservação do universo afro-brasileiro legado por homens e mulheres que desafiando o seu tempo deram respostas a partir de suas tradições às situações desafios que foram expostas. Isso não significa dizer que entendemos a tradição como algo imutável, ao contrário, a recriação em alguns momentos se dá não para recompor algo fragmentado, mas para exibir prestígio. Depois do “desaparecimento da pedra de ralar”, sua substituição pelo moinho que depois foi motorizado, seguido do liquidificador e do multiprocessador, que graças aos diferentes cortes conferem as massas texturas diferentes, assistimos algumas comidas rituais sendo feita a partir do refinamento de grãos, oferecidas pelas indústrias de alimentos. Mesma indústria que deu origem ao xarope de milho, um tipo de açúcar que o nosso organismo não é capaz de dissolver, gerando entre outras doenças o diabete melittus tipo II. Mesmo respeitando a frase sábia de uma sacerdotisa que nos disse que “os vodus mudam porque as pessoas mudam”, temos que refletir como as comidas votivas estão dialogando com os ingredientes produzidos por esta indústria que com certeza não os fez para atender a demanda dos orixás. Adoro os buffets nos terreiros, mas é bom ver também a comida dos orixás dividida entre as pessoas. Certa ocasião deparei-me com uma comunidade terreiro que não sabia mais enrolar o akassá, chamado de ekó, tal iguaria representa o corpo, uma porção de massa individualizada na folha de banana. A massa era despejada numa bandeja ou sobre uma pedra de mármore e cortada de forma triangular. Se nós, povo de candomblé ainda não estamos preparados para entender o processo químico que envolve os alimentos durante o seu cozimento, ao menos temos que atentar para o fato de que quando uma comida “desaparece” segue também com ela visões de mundo. Nada contra a introdução nas cozinhas rituais de eletrodomésticos, diálogo que o povo de candomblé já vem fazendo muito bem já há algum tempo. A preocupação maior deve está com fato de que o que vai restar da nossa ancestralidade; o que passaremos e quais histórias contaremos aos nossos filhos quando as comidas de santo ceder lugar de uma vez por todas às comidas de branco? E os ancestrais será que mudarão de gosto?

VILSON CAETANO

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.