terça-feira, 22 de dezembro de 2009

CANDOMBLÉ PARA ALEM DO BEM E DO MAL



O problema do mal é difícil e complicado de ser entendido, um mistério que ainda hoje está para ser desvendado. Em linhas gerais, quando nos referimos ao mal, nos remetemos à figura do Diabo entendido como adversário de Deus, espírito sedutor, enganador e aniquilador de almas. Se não podemos prever o momento do surgimento da noção do mal, a imagem do Diabo, ao contrário é algo historicamente construída, fruto do encontro de crenças antigas vindas, ora o Judaísmo, da Grécia, de Roma, dos Persas, dos Iranianos e por fim do Cristianismo que a partir do século XVIII recorreu à imagem do Deus grego Pã, deus dos campos, dos camponeses, com chifres, cascos, rabo, orelhas e partes inferiores do corpo peluda. O tridente teria vindo de Netuno, deus dos mares. Não vamos, todavia, nos deter nesta discussão que contemporaneamente foi abandonada pelos seus principais difusores dentre nós, a exceção das chamadas igrejas neo-pentecostais onde tal figura aparece com “toda força”, provocando desgraça na vida das pessoas ou até mesmo se apoderando do corpo delas, daí a importância do chamado exorcismo, termo que ao passar do tempo sede lugar para a palavra “expulsão”, esta certamente mais forte. Desde a Antiguidade, o que muda quando nos referimos ao mal é apenas a sua concepção. Em outras palavras, há momentos em que o mal faz parte da natureza do sagrado, e outro onde ele é personificado. Esta última abre uma série de problemas a começar pela idéia de que se o Diabo não foi criado por Deus, então ele se auto criou, logo ocuparia o mesmo nível da Divindade do Bem. Aqui paramos esta discussão, pois tanto os povos ameríndios quantos os povos africanos não conheciam estas idéias, embora nunca tivessem ignorado a noção do mal. Pena que quando esse mal personificado atravessou o Oceano Atlântico com os missionários católicos ele ganhou a aparência de nossos índios e africanos, ele foi colocado no nosso corpo, legitimado pelas nossas características físicas. Ainda hoje, as religiões de matriz africana são associadas ao mal. Eu mesmo, cresci ouvindo que “candomblé era coisa do Diabo.” Não poucas vezes sou interrogado: “porque o candomblé faz o mal para as pessoas?”, sem contar a série de artifícios narradas por alguns para justificar a falta de dinheiro, doença, separação,até mesmo a morte realizada pelos chamados “candomblezeiros”, em outros estados “macumbeiros”, “catimbozeiros”, “juremeiros”, assim por diante. Nestas ocasiões antes mesmo de irmos ao embate com a pessoa é melhor ouvir, quem sabe não aprendemos alguma coisa. Fato é que vivemos no mundo do medo. O medo no mundo moderno é uma realidade, sem falar do fato que historicamente demonizamos sempre o diferente, aquilo que achamos feio. Demonizamos para dominar. É bem certo que se não tivéssemos o desejo de impor as nossas verdades, o Diabo como uma personificação do Mal não existiria e esse ultimo seria visto no mundo como contingente, passageiro, algo em que não nos ocuparíamos nem com a sua origem nem com o seu começo, mas infelizmente temos que enfrentá-lo. Vários autores se debruçaram a fim de dar uma explicação sobre a associação da figura do Diabo ao orixá Exu, ou ao Nkice Nzila, ou ao Vodun Elegbara. Como não sou especialista em Demonologia, estudo sobre as representações do demônio, vou me limitar a falar sobre estes princípios de comunicação, pois esta é a função que estes ancestrais cumprem dentro das religiões afro-brasileiras. Para que imagem mais bonita do que a de Nzila, literalmente o “caminho”, mas não qualquer caminho, “todos os caminhos”, caminhos que formam as linhas, demarcam os pontos cardeais, caminhos que se atravessam, se recortam, se redefinem, se criam, recriam-se o tempo todo, caminhos que se encontram no centro de todos os caminhos para dali partirem novamente para o mundo, a encruzilhada. Geralmente quando vou falar especialmente sobre o ancestral Exu utilizo a seguinte imagem: quando você envia uma carta para alguém, há um remetente e um destinatário. Exu é o caminho imaginário entre estes dois, sem Exu, a carta nunca chegaria ao seu destino, mas é Ele mesmo que nos faz andar, pular, saltar, ter êxito, vontade, alegria, falar, daí um de seus nomes Elegbara, senhor do corpo, corpo negro e negra que dança, samba, ginga, é lugar de oração, mas é o tempo todo estigmatizado porque é negro. Bara significa corpo, caminhos. Exu é tudo isso. Sem esse principio nada se concretiza. Infelizmente algumas pessoas ainda concebem esses ancestrais como a personificação do mal sugerida pelos missionários católicos e atualmente as igrejas neopentencostais. Assim são chamados de “escravos dos orixás”. É digno de nota que no contexto da escravidão, momento onde as religiões de matriz africana foram reelaboradas, o medo também foi utilizado pelos africanos como defesa e certamente, acabada todas as esperanças apenas lhe restaram estes ancestrais cuja concepção estava ligado ao próprio corpo. Num período mais adiante quando os ancestrais foram concebidos por uma religião brasileira que acabava de nascer, a Umbanda, Exu foi de fato identificado com o Diabo, mas não com a personificação do mal, se de um lado ganhava-se, como alguns acreditam, com a valorização de algumas classes marginalizadas, deixava-se de lado parte de uma das maiores contribuições das religiões tradicionais africanas às religiões afro-brasileiras ao incorporar velhas dicotomias como bem/mal; luz/trevas; dia/noite; espírito/matéria. E a chamada Pombagira?. Nada mais é do que a expressão Npombo Nzila mau ouvida, o que chamamos de corruptela do nome, o que nada tem a ver com a sua representação, uma mulher de saia que exibe sensualidade. Maria Padilha é outra imagem a parte. Essa sim, ora é portuguesa, ora é espanhola. No romance surgido no século XIX aparece como uma das amantes do rei de Castela. Foi trazida ao Brasil na memória das órfãs ou mulheres degredadas que tiveram contato com o imaginário que inspirou o escritor a escrever a obra chamada Carmem que conta a paixão de um homem por uma cigana que arruína a sua vida. São apenas dois exemplos de “santos que a África não viu”, ao lado de tantos outros que são associados ao Diabo porque estão mais próximos dos seres humanos. Mas voltemos à questão do mal. Em linhas gerais ele não é personificado, o que não nega a sua existência. Como se ouve em alguns terreiros “a tentação está no mundo”. Devemos fugir dela. Devemos passar pelo mundo sempre fazendo o bem, fazendo o bem a tudo e todos. Diante de algumas situações devemos demonstrar fraqueza, para assim irmos levando a vida. Mas o que é o bem? O bem também está no mundo, devemos buscá-lo sempre. Se estivermos sempre em busca do bem, o mal nunca chegará até nós, nunca nos enxergará, pois eles andam um ao lado do outro. O bem esta ligado a tudo que junta, ou como se ouve dos tios e tias “que ajunta”. O bem é tudo que mantém o universo integrado, pois fomos feitos para compor o Universo. É o ajô, por exemplo, a união, integração, tudo que faz retornar à comunidade. O contrário é o ejó, o que separa, o que rompe, o que desintegra. Se somos parte da teia, o princípio é que devemos sempre procurar estarmos agarrados a ela. Há um provérbio que nos ajuda a entender um pouco mais esta visão: “Não há bem que seja puro bem e não há mal que seja puro mal. Ou ainda aquele que diz: “não há mal que sempre dure, não há bem que sempre perdure.” Talvez isso nos ajude também a entender a história de um viajante que atravessou dois continentes para chegar até uma casa de candomblé para “colocar uma mesa”, como se falava anteriormente antes da expressão jogar búzios entrar na moda. Antes mesmo do viajante chegar até o local onde se realizava as consultas, a sábia Iyalorixá, profundamente conhecedora e respeitadora de suas tradições, já havendo sido alertada pelos orixás, após ter submetido o viajante a algumas horas de espera a fim de “descansar o corpo da rua”, ou mesmo fazer-lo desistir da intenção, saiu rapidamente olhou para a pessoa e com voz forte altiva falou: “Estava mesmo lhe esperando, já chegou até aqui, veio de tão longe, descansou o corpo, esfriou a cabeça, agora vá em paz meu filho, você já encontrou a resposta que queria, nesta casa não tem o que você veio buscar, pois eu não conheço segredo para o mal.” A pessoa baixou a cabeça, lacrimejou e entendeu que caminho semelhante ele poderia ter feito para buscar o bem. Entendeu também que o mal na vida deve ser visto como contingente, ele é o que menos importa, ele serve muito mais para quem acredita que pode realizá-lo, do que para quem é capaz de receber. Na dúvida era melhor retornar ou sair pelo mundo a procura do bem, pois somente este garante a nossa permanência na teia da vida. TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A TARDE.

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.