quarta-feira, 23 de novembro de 2011

CANDOMBLE E CRUELDADE (PARTE II)


Vamos dar continuidade à reflexão sobre o sacrifício de animais praticado pelas religiões de matriz africana que vem sendo considerado um ato de crueldade que pode está com os dias contatos no Estado de São Paulo caso um projeto de lei que tramita na Câmara de Deputados seja aprovado. A guisa de explicação vou retomar alguns conceitos. O primeiro diz respeito a própria noção de sacrifício que graças ao cristianismo e algumas praticas judaizantes ganhou ao longo dos tempos uma conotação de algo sangrento e violento. Para as religiões de matriz africana, a noção de sacrifício é algo mais amplo. Seguindo o principio básico de que as partes contêm o Todo e que cada ser individual é o deslocamento dessa matéria ancestral, o sacrifício, entendido como uma mudança da forma inicial significa o retorno às origens, servindo ele para manter a vida e o equilíbrio do Universo. Tomemos como exemplo a comida. “Nada no mundo mantêm-se vivo sem comer,” diz o provérbio. Assim, grãos, folhas, favas, frutas, flores, sejam eles esmagados, triturados, maceradas, cortadas, juntamente com a própria água derramada que escorre no chão são sacrifícios primeiros que antecedem aos ritos propiciatórios da vida. Assim, alargando a noção de sacrifício, à semelhança do judaísmo antigo, que o grande momento da celebração era sintetizado com “o pão partido”, podemos perceber a refeição como um dos momentos sacrificiais por excelência. Isso torna a cozinha como principal lugar de produção desse Sagrado. O problema está quando perdemos a noção de Sagrado, ora lhe opondo a outros conceitos, ou quando simplesmente o fazemos desaparecer, a fim de adequar nossa linguagem às questões mais modernas. De fato, quando nos afastamos de tal principio a relação com os animais e vegetais torna-se irresponsável, pois a primeira coisa a que renunciamos é o fato de também participarmos da teia da vida. A proibição do sacrifício de animais fundamentada na idéia de maus tratos não se sustenta se seguirmos a lógica a que estamos nos referindo. Talvez valha mesmo para os animais engordados em confinamento como bois e aves. Talvez isso se aplique bem ao Foie gras, fígado gordo, um dos pratos mais tradicionais da culinária francesa que obriga o pato a ingerir uma ração hiper calórica, empurrada “guela abaixo” com a ajuda de um funil a fim dele desenvolver uma esteatose hepática, uma doença, a gordura no fígado. Noticia que não nos espanta, tendo em vista que a produção de doenças tem tornado-se pratica comum da industria de alimentos. E a sopa chinesa feita com barbatana de tubarão que faz com que centenas destes animais sejam mutilados e soltos no Oceano, morrendo em seguida? Nada contra os franceses e os chineses, apenas tomei como exemplo dois animais que ocupam lugar especial no universo afro-brasileiro, o pato e o tubarão. Ambos seres encantados que desde cedo serviram como mensageiros dos Ancestrais cumprindo entre alguns povos africanos função semelhante a dos carneiros na cultura islâmica que ate hoje são sacrificados diante do silencio dos mesmos ativistas vegetarianos que bradam contra o sacrifício de animais nas religiões afro. Como se vê, estamos apenas iniciando uma longa discussão. A relação entre sacrifício e maus tratos, deve ser, de fato, colocado não somente no âmbito das religiões , como vem sendo feito de forma açodada e preconceituosa, reproduzindo antigos estigmas, mas deve ampliar-se para instancias mais amplas. Deve mesmo ser trazida para dentro de nós. Somente assim, apropriando-se desse Sagrado como parte de um Todo onde outros seres estão integradas, nos tornaremos mais responsáveis , ligando-nos a eles. Quem sabe assim não possamos abandonar a milenar linguagem sacrificial e encontremos oura maneira de expressar a forma como nos mantermos vivos no mundo?

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

CANDOMBLE E CRIME DE CRUELDADE (PARTE I)


Vem tomando fôlego no pais, inspirado pelo projeto do deputado estadual paulista Feliciano Filho que esta sendo analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Estado de São Paulo, mobilizações em torno da “proibição do sacrifício de animais em práticas rituais religiosas.” O texto não cita explicitamente as religiões afro-brasileiras, vinculação que está sendo feita por alguns grupos e alguns meios de comunicação. Já tivemos a oportunidade de falar sobre o sacrifício neste espaço, um ano atrás, artigo que foi publicado no livro: Na palma da mão: temas afro-brasileiros e questões contemporâneas, pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). Desta maneira não vamos nos repetir aqui. Projeto semelhante foi vetado por “inconstitucionalidade” na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo há um ano. Estas idéias chegaram à cidade de Salvador através da denuncia de uma ambientalista de maus tratos e comércio de animais silvestres na Feira de São Joaquim recentemente reconhecida como patrimônio cultural, fato que foi averiguada pela 3 Delegacia Territorial situada no Bonfim. O caso gerou revolta e polêmica entre alguns feirantes que vivem do “comércio sagrado.” Já há algum tempo, as religiões de matriz africana vem se deparando com assunto que uma vez ou outra entra em pauta, sempre reproduzindo o discurso falso - cientifico, higienista e racista que existe em torno dos elementos civilizatórios negro-africanos reorganizados no Brasil, presente em várias expressões sobretudo nas religiões de matriz africana, seja elas o Batuque do Rio Grande de Sul, o Tambor de Mina do Maranhão, os Candomblés de São Paulo e Rio de Janeiro, a própria Umbanda espalhada por todo Brasil, o Xangô, o Xambá e a Jurema de Pernambuco, Paraíba e outras cidades do Norte e Nordeste brasileiro, as casas nagôs do Recôncavo Baiano, os terreiros de Egun baianos, o Jarê da Chapada Diamantina e tantas outras. Tive oportunidade de ouvir depoimentos sobre isso em cidades como Porto Alegre, que concentra o maior numero de casas afro-brasileiras no pais, em Belém do Pará e em Belo Horizonte. Em todos estes lugares, a denuncia baseava-se no Artigo 3, inciso 1 e 2 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO de 27 de janeiro de 1978 que reza: “Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos crués. Se for necessário matar um animal, ele deve ser morto instantaneamente sem dores e de modo a não provocar-lhe angustia”. E ainda no Artigo 9 que fala: “Quando o animal é criado para alimentação, ele deve ser alimentado , alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor.” Vamos alargar esta discussão na próxima semana. No momento vamos ficar com a pergunta de uma sábia sacerdotisa que interpelada sobre o assunto, respondeu: “pena que não fazem a mesma afirmação quando se chega nos açougues ou mesmo na sessão de frios dos grandes supermercados. Isso nos faz pensar dentre outros temas contemporâneos na industria de alimentos, na produção de carnes e outros derivados inventados. Como sugere Michael Pollan, “os animais criados para o corte vira seu estilo de vida passar por uma revolução nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial” graças ao confinamento, a alimentação a base de milho, suplementos de proteínas e gordura, o que resultou em animais mais doentes, em carnes menos saudáveis e na redução do tempo para abate. Não vamos entrar no mérito de como isso é feito. Por que tema semelhante não é colocado nas portas das industrias de alimentos? Em entrevista a um jornalista da Folha de São Paulo, trouxe a idéia de que ao contrário do que se afirma nos terreiros, uma das condições para o sacrifício, conceito amplo e de vários significados, longe da conotação violenta e sangrenta judaico-cristão, é que os animais estejam saudáveis para assim fazermos a experiência do sagrado que há neles. Assim repetir uma velha frase que diz que nos terreiros os animais “morrem” com mais dignidade do que nos abatedouros. Dignidade porque fazem parte como todos os seres da teia da vida e por isso pode representá-los mantendo como os grão a relação com nossos ancestrais, mas essa é uma conversa que apenas estamos começando.



Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.