sexta-feira, 22 de abril de 2011

ORIXA ILU E ORIXA IGBO



Neste texto vamos abordar o desconfortável tema do sincretismo afro-católico. Desconfortável não por ser algo revisitado suficiente por outros autores, mas pela série de estigmas que ao longo da história das religiões de matriz africana no Brasil, este conferiu a estas. Desta maneira, gostaríamos de iniciar esta reflexão retomando a afirmação de que o fenômeno do sincretismo é universal e por isso acompanha os grandes modelos religiosos do inicio de sua formação aos dias de hoje. Pena que tal tema, nos estudos afro-brasileiros, ao aparecer na década de 30 serviu dentre outras coisas para legitimar a idéia da suposta inferioridade do pensamento africano, elaborada no século XIX a partir das teorias racistas. Assim por muito tempo, tal assunto quando apareceu nos estudos afro-brasileiros sugeriu leituras preconceituosas que desautorizavam as visões de mundo africana, graças a relação que estes desce cedo estabeleceram com o catolicismo português. As leituras limitadas de tais relações se deram a partir da concepção de uma teoria conspiratória. Em outras palavras, alguns estudos apresentam as relações entre negros e brancos no Brasil colônia a exemplo de um campo de futebol, de um lado os negros, do outro lado os brancos. É certo que na colônia, como ainda hoje, as relações entre os não brancos e os que alto designaram-se brancos ainda continuam sendo algo predefinido. Atentar-se a isso talvez seja o primeiro passo para desmascarar o racismo brasileiro, racismo sutil, silencioso, cordial, camarada que empurra o homem e a mulher negra para o mundo do “deixa disso”, do “para com isso”, mas que sempre está ali constituindo as relações mais “familiares”. Essa suposição da teoria conspiratória, ou da ação dos indivíduos a partir de “um lugar” sugeriu a teoria da dissimulação, que seria uma espécie de “faz de conta”. Desta maneira, as relações estabelecidas desde cedo entre o universo religioso africano com outros grupos seria explicada a partir desse faz de conta onde, por exemplo, os santos católicos através de um jogo de correspondências, de analogias externas, seriam uma espécie de máscara branca no rosto de ancestrais africanos. Tal idéia nos anos 80, a partir da caminhada de quase vinte anos de movimentos negro e da presença de alguns intelectuais nos terreiro provocou uma espécie de mau estar no universo afro-brasileiro, ao menos para os participantes da II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, realizada na cidade de Salvador. Quando se refletia sobre a o retorno à África, foi elaborado um documento, na forma de manifesto que afirmava afim de garantir a África mítica e pureza africana, era necessário romper com o sincretismo afro-católico, expresso através da correspondência entre santos católicos e orixás, da ida das comunidades terreiros ao recinto católico por ocasião de algumas festas e da presença de altares católicos no barracão dos terreiros.Não estamos bem certo se o objetivo do documento produzido no encontro era mesmo desconstruir as relações entre o candomblé e catolicismo a fim de legitimar o primeiro como religião, mas com certeza quando algumas lideranças religiosas assinaram tal texto, transformado pela mídia num Manifesto anti-sincretismo, era a defesa de suas tradições como religião que tinham em mente. Esse fato foi abordado pela Prof. Dra. Josildeth Gomes Consorte que estudou tal documento durante dez anos. A partir das contribuições de seu trabalho realizamos uma pesquisa publicada sob forma de livro intitulado: Orixás Santos e Festas, onde chamamos a atenção para o fato de diferentemente de como se apresenta, o fenômeno do sincretismo é sentido de forma diversa pelas pessoas. Em outras palavras, ao contrário da idéia de “faz de conta”, mistura, fusão, justaposição, jogo de correspondências, analogias, confusão, dentre outras, o fenômeno do sincretismo tem a ver mesmo com atribuição de significados, com sentimentos. Desta maneira, a menos nas religiões de matriz africanas deve ser entendido como algo além das mascaras e disfarces, até mesmo porque não se reduz a apenas a vivências externas, ao contrário, em alguns momentos chega a ser constituidor de ritos específicos reconstruídos no Brasil, como fez o próprio Cristianismo quando se deparou com as religiões antigas, contemporâneas a sua formação. Dizer que o sincretismo afro-católico não pode ser reduzido a relações exteriores, nem ao faz de conta explicado a partir da teoria da dissimulação é ao mesmo tempo reconhecer a capacidade que homens e mulheres negros tiveram de contrariando a teoria conspiratória, romper com os lugares impostos a estes na sociedade e intervir a partir de seus lugares, tornando-os livres para criar, reinventar e dar continuidade a universos fragmentados pela escravidão que não foram destruídos graças a capacidade de diálogo com elementos simbólicos que se depararam numa verdadeira colônia. O viver em colônia facilitou o diálogo entre africanos, ameríndios, portugueses, mouros, ciganos, cristãos novos, espanhóis, holandeses e muitos outros povos. O resultado foi a produção de modelos religiosos onde símbolos provenientes de várias matrizes culturais não apenas circulam externamente, mas dentro do corpo dos próprios iniciados. É interessante também observar que tais relações só foram possíveis, graças à dinâmica de juntar do pensamento africano somado à proximidade do universo católico português.Em outras palavras, o catolicismo chegado da Península Ibérica, ao contrário do que havia se afirmado no século XIX era por exemplo tão sensual quanto o pensamento africano, basta olharmos para os santos barrocos que se não choravam nas igrejas, lamentavam a má sorte em alguns oratórios ao serem submetidos a um verdadeiro ritual de tortura pelos devotos. Depois, como chamou a atenção certa ocasião a Yalorixá Olga do Alaketu, orixás e santos da igreja no Brasil eram estrangeiros. Isso no seu entender significava o primeiro passo para o dialogo e entendimento de relações que não podiam ser reduzidas a algo superficial e externa. Em alguns terreiros de candomblé de tradição jeje-nagô, guarda-se ainda a expressão igbo para designar os não negros. Tal palavra também era utilizada por alguns povos de língua yorubá para chamar os seus vizinhos, os estrangeiros, aqueles vistos como “de fora”, categoria bem entendida pelas ciências sociais. Quanto às relações que desde cedo os universos africanos estabeleceram com os “estrangeiros” é algo que ainda esta para ser melhor estudada. Fato é que se não foram confundidos, desde cedo estes estrangeiros submetidos também a distância de suas terras de origem foram incorporados no universo religioso reconstruído no Brasil como estrangeiros, a semelhança dos ancestrais africanos. Talvez esse fato comece a explicar a presença não somente de altares católicos em locais públicos onde se realizam as festas de candomblé, como também a tradução de rezas católicas para as línguas africanas, sem falar na evocação de orações católicas e alguns santos em momentos rituais protegidos dos olhares até mesmo daqueles que elaboraram a teoria do faz de conta. Verdade é que até mesmo os santos católicos apresentados aos africanos no contexto da escravidão, não foram vistos por eles como seus senhores. Isso deu a possibilidade destes serem invocados ao lado dos orixás Ilu. Ilu, a terra distante, aquela deixada para trás, trazida apenas na memória e nas lembranças. Foram essas terras, o sentimento de fidelidade a elas que possibilitou às religiões de matriz africana juntar num mesmo sentimento religioso os orixás ilu com os orixás igbo, transformando essa experiência em algo que ainda hoje continua desafiando o pensamento ocidental greco-romano-cristão acostumado a dividir as coisas, a vida e o mundo.

domingo, 3 de abril de 2011

SALVADOR, A CIDADE INVENTADA PELOS AFRICANOS

Não obstante tudo que já se escreveu sobre o empreendimento português cuja planta foi trazida por Tomé de Sousa em 1549 para erguer a cidade que deveria tornar-se a cabeça da América Portuguesa, é digno de nota reafirmar que a cidade de Salvador é, de fato, a mais negra das Américas pois aqui, parafraseando um viajante do século XIX, desde cedo, tudo que caminhava, erguia-se e movimentava-se era negro. Negro não apenas na cor, mas nos diferentes sentidos impressos pelos africanos e seus descendentes aqui chegados. Fato é que esta cidade, não apenas a idealizada pelos portugueses, mas a vivida pelos degredados ao lado das populações indígenas que sobreviveram aos genocídios constantes que foram expostas, teve significativa contribuição dos universos culturais africanos que aqui fizeram-se presente. Mesmo nos momentos mais hostis, onde essas culturas estavam estigmatizadas e eram perseguidas, lá estava o negro e a negra, colocando não apenas a sua mão, mas o corpo inteiro, a fim de fazer da cidade de Salvador, local mais humano e acolhedor ou simplesmente aberto a diversidade. Desta maneira, se percorrermos a cidade com este olhar, logo perceberemos por traz das poucas árvores, águas e esquinas, que ainda nos restam, a profunda relação estabelecida entre esta e o sagrado por estes africanos. Sagrado presente nas Jaqueiras que outrora enchiam a cidade, dando-lhe aspecto de pomar, sem falar nas Gameleiras que uma vez por outra, ganham laços brancos especiais, denominados de ojás pelos terreiros de candomblé. Árvores, que mesmo desaparecidas continuam presentes no imaginário das pessoas como a “jaqueira do carneiro”. Pena que desapareceu de nossas memórias, a história da grande cobra que aparecia ora no bairro do Engenho Velho de Brotas, ora no Engenho Velho da Federação, à semelhança da serpente mítica que unia os reinos de Dahomé. Como não mencionar a Lagoa do Abaeté, referida pelo poeta como lagoa escura? O Abaeté era um complexo de lagoas que ao longo dos anos foram reduzidas graças ao crescimento urbano. Abaeté, é ainda,na verdade, morada de Iewa, o ancestral que escondeu um príncipe nas suas roupas, a fim de que a morte não lhe enxergasse. Certamente foram as negras que lavavam de ganho que levaram Iewa para a Lagoa do Abaeté, se não estas, foi uma negra quem contou pela primeira vez a história de que a origem da “lagoa escura arrodeada de areias brancas” seria as lágrimas de uma mulher que havia se recolhido para chorar a perda de um de seus filhos entre aquelas dunas. Talvez sejam mesmo as lágrimas das mulheres negras que choram a morte de seus filhos violentamente assassinados que alimentem a Lagoa. E como não mencionar o Dique, motivo ainda hoje de debate pelos historiadores? Holandês ou português? Não importa! “O Dique é africano” e para isso foi dividido em bacias, espaços imaginários conhecidos pelos donos de dois barquinhos que resistem, remando em direção às bacias de Oxun, de Yemanjá, de Nanan, ou àquelas sobre as quais não se falam. Pena que Oxumarê perdeu a sua Cachoeira para a poluição e depois que as “Matas de Pirajá” transformou-se num Parque, outro sinônimo de descaso, o culto aos orixás ficou sem esse espaço, atualmente controlado pelos traficantes e assaltantes, prova visível do descaso pelos “territórios afro-brasileiros” E as nossas ladeiras? Todas elas foram sacralizadas a exemplo das encontradas ainda hoje em cidades africanas. De forma especial, a Ladeira da Saúde e a Ladeira do Cabula. Nomes que também vão saindo de moda, caindo no esquecimento provocado pelo projeto de desafricanização que marcou a chamada “modernização das cidades”. Antes que as nossas esquinas, vulgarmente chamadas encruzilhadas se transformem em rotatórias, vamos lembrar das encruzilhadas das Sete Portas e do Largo do Tanque. Destaque também deve ser dado para as feiras de São Joaquim e do Japão, territórios negros onde circulam práticas africanas ao lado de tantas outras. Acredito que perceber a cidade de Salvador a partir também destes olhares que tem as religiões de matriz africana, como principal mantenedora, constitui um dos maiores desafios frente aos problemas sociais que atingem a cidade lhe fazendo ao mesmo tempo a mais negra da diáspora africana, a que também os descendentes de africanos lideram os índices de morte violenta, aglomerado populacional e déficit relacionados a saúde e educação. No mais, é continuar pedindo que Iemanjá, orixá, Mãe do Novo Mundo não abandone as pedras de praias que aos poucos vão desaparecendo como a do Rio Vermelho, de Itapuã e da Ponta do Humaitá a fim de que as suas areias possam ser convertidas em anos de felicidade para que possamos continuar contando histórias, renovadas quando reproduzidas, a semelhança de nossos pais e mães que antes mesmo de viver, idealizaram uma cidade. Acreditamos que estes sonhos sejam para a cidade seu maior legado e para nós, o maior presente.

À LIDER DAS MULHERES



Oba é um dos “orixás femininos” sobre a qual recaiu uma espécie de esquecimento. Todavia, não obstante este fato, ela goza de enorme significado no universo das religiões de matriz africana. Muito pouco se tem escrito sobre a mesma, talvez por ela nos remeter a um mito original que se repete em várias culturas que fala “de um tempo em que o mundo era governado pelas mulheres.” Em alguns terreiros de candomblé que ainda preservam a figura desse principio ancestral, Obá aparece como uma caçadora. Este fato faz alusão aos primórdios dos grupos humanos que tinham a atividade coletora como principal meio de sustento. Pena que ainda hoje quando retomamos esta imagem, logo nos vem à mente figuras masculinas, contrariando alguns mitos afro-brasileiros que trazem enfaticamente a presença de mulheres a frente de grupos que mais tarde darão origem às grandes civilizações. Em todos os mitos preservados no Brasil, Obá apresenta-se como caçadora ao lado de outras como Oyá e Iewá, daí a sua ligação direta com Odé, o caçador. Outra imagem que reforça a antiguidade do seu culto é a de que tal orixá também é um rio do mesmo nome que ainda hoje corta uma parte do território iorubá. Conta-se que, após vários dias de batalha, estando os orixás liderados por Ogum e Oxalá, fragilizados pela guerra, Obá não se contentando em reunir apenas as mulheres de seu tempo, convocou todas as fêmeas do mundo animal. Ao ver Obá chegar rodeada de animais, aquela guerra foi vencida porque os inimigos fugiram de seus postos. Afirma-se nos terreiros que Obá mantém relações profundas com os animais, outra imagem antiga preservada do tempo em que os primeiros grupos humanos acreditavam encantá-los através de seus desenhos. O tempo em que os caçadores e caçadoras confundiam-se com a própria caça. O culto a Obá é ainda hoje cercado de mistério. Mistério velado pelas cores escuras, representadas pelo vermelho encarnado que compõem seus elementos rituais nas poucas vezes em que aparece. Em alguns terreiros de tradição jeje nagô, a cantiga que diz “Obá, líder da sociedade Elekô comanda todas as mulheres guerreiras”, inicia a seqüência de músicas que dentre outras coisas, lembra a sua importância como representante das mulheres como caçadora, chamando para si funções sociais, políticas, culturais e religiosas. Em outras palavras, Obá, além de desempenhar um papel como desbravadora, cabia a ela defender o grupo, o protegendo em todos os sentidos, fomentar seu sustento e garantir a sua integridade política. Os caçadores eram ainda médicos, mágicos, verdadeiros entes divinos que sabiam que da relação de sua comunidade com os ancestrais dependia a sua permanência no mundo. Daí a expressão: “Obá Elekô”. Elekô, a exemplo de muitas outras sociedades secretas, era uma espécie de “maçonaria de mulheres”, que dentre outras funções, zelava pela preservação da relação entre estas e a terra, para alguns grupos humanos, a grande mãe ancestral. Pena que apenas persistiu dentre nós, fragmentos de uma história que diz ter sido Obá enganada por uma das mulheres de Xangô que a teria induzido cortar uma de suas orelhas. Acho mesmo que a imagem da orelha cortada por Obá neste mito é menos importante do que aquilo que considero tema principal: o amor. Obá é símbolo do amor, esse principio universal que por mais esforço já se tenha feito para traduzi-lo através das poesias, das filosofias, das religiões e recentemente da ciência, ainda é um mistério, talvez por ser ele um dos mais divinos. Gosto muito da história que diz que certa ocasião muito triste por ter perdido um de seus filhos, uma mulher adentrou-se na mata e pediu a Obá que o trouxesse de volta. Adormecida na floresta, a jovem sonhou com sementes que lhes eram trazidas por um enorme pássaro. Acordada do sono, a mulher foi procurá-las. Chegando a beira de um rio, mal pode conter a sua alegria ao deparar-se com as sementes que a noite havia sonhado, ao mesmo tempo em que se deu conta de que, era ela mesma o pássaro que a noite havia visto em sonho. Das sementes plantadas pela mulher arrebentou uma planta que se transformou numa árvore de tronco escuro a partir da qual a humanidade melhor podia se representar, trazendo presente na forma de esculturas seus antepassados: o ébano. Obá, dessa maneira é a “verdadeira deusa do ébano”, não somente da madeira escura, de brilho natural que tanto nos representa através das mãos dos artistas africanos, mas a verdadeira “deusa negra” presente em todas as mulheres, nossas irmãs e mães que hoje mais do que nunca vão ao enfrentamento para defender a sua dignidade através da garantia da integridade de seus filhos. Mulheres que embora tenham conquistado espaços nas sociedades contemporâneas ainda são aquelas mais estigmatizadas, violentadas e que tem seus direitos menos respeitados. Mulheres que como Obá amam, e por isso vão a luta pelos seus sonhos e são capazes não apenas de liderar quilombos, revoltas armadas, greves, movimentos sociais, mas grupos inteiros pois assim foi desde o inicio quando Obá saiu á frente convocando todas as mulheres para reconquistar o mundo.

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.