Não obstante tudo que já se escreveu sobre o empreendimento português cuja planta foi trazida por Tomé de Sousa em 1549 para erguer a cidade que deveria tornar-se a cabeça da América Portuguesa, é digno de nota reafirmar que a cidade de Salvador é, de fato, a mais negra das Américas pois aqui, parafraseando um viajante do século XIX, desde cedo, tudo que caminhava, erguia-se e movimentava-se era negro. Negro não apenas na cor, mas nos diferentes sentidos impressos pelos africanos e seus descendentes aqui chegados. Fato é que esta cidade, não apenas a idealizada pelos portugueses, mas a vivida pelos degredados ao lado das populações indígenas que sobreviveram aos genocídios constantes que foram expostas, teve significativa contribuição dos universos culturais africanos que aqui fizeram-se presente. Mesmo nos momentos mais hostis, onde essas culturas estavam estigmatizadas e eram perseguidas, lá estava o negro e a negra, colocando não apenas a sua mão, mas o corpo inteiro, a fim de fazer da cidade de Salvador, local mais humano e acolhedor ou simplesmente aberto a diversidade. Desta maneira, se percorrermos a cidade com este olhar, logo perceberemos por traz das poucas árvores, águas e esquinas, que ainda nos restam, a profunda relação estabelecida entre esta e o sagrado por estes africanos. Sagrado presente nas Jaqueiras que outrora enchiam a cidade, dando-lhe aspecto de pomar, sem falar nas Gameleiras que uma vez por outra, ganham laços brancos especiais, denominados de ojás pelos terreiros de candomblé. Árvores, que mesmo desaparecidas continuam presentes no imaginário das pessoas como a “jaqueira do carneiro”. Pena que desapareceu de nossas memórias, a história da grande cobra que aparecia ora no bairro do Engenho Velho de Brotas, ora no Engenho Velho da Federação, à semelhança da serpente mítica que unia os reinos de Dahomé. Como não mencionar a Lagoa do Abaeté, referida pelo poeta como lagoa escura? O Abaeté era um complexo de lagoas que ao longo dos anos foram reduzidas graças ao crescimento urbano. Abaeté, é ainda,na verdade, morada de Iewa, o ancestral que escondeu um príncipe nas suas roupas, a fim de que a morte não lhe enxergasse. Certamente foram as negras que lavavam de ganho que levaram Iewa para a Lagoa do Abaeté, se não estas, foi uma negra quem contou pela primeira vez a história de que a origem da “lagoa escura arrodeada de areias brancas” seria as lágrimas de uma mulher que havia se recolhido para chorar a perda de um de seus filhos entre aquelas dunas. Talvez sejam mesmo as lágrimas das mulheres negras que choram a morte de seus filhos violentamente assassinados que alimentem a Lagoa. E como não mencionar o Dique, motivo ainda hoje de debate pelos historiadores? Holandês ou português? Não importa! “O Dique é africano” e para isso foi dividido em bacias, espaços imaginários conhecidos pelos donos de dois barquinhos que resistem, remando em direção às bacias de Oxun, de Yemanjá, de Nanan, ou àquelas sobre as quais não se falam. Pena que Oxumarê perdeu a sua Cachoeira para a poluição e depois que as “Matas de Pirajá” transformou-se num Parque, outro sinônimo de descaso, o culto aos orixás ficou sem esse espaço, atualmente controlado pelos traficantes e assaltantes, prova visível do descaso pelos “territórios afro-brasileiros” E as nossas ladeiras? Todas elas foram sacralizadas a exemplo das encontradas ainda hoje em cidades africanas. De forma especial, a Ladeira da Saúde e a Ladeira do Cabula. Nomes que também vão saindo de moda, caindo no esquecimento provocado pelo projeto de desafricanização que marcou a chamada “modernização das cidades”. Antes que as nossas esquinas, vulgarmente chamadas encruzilhadas se transformem em rotatórias, vamos lembrar das encruzilhadas das Sete Portas e do Largo do Tanque. Destaque também deve ser dado para as feiras de São Joaquim e do Japão, territórios negros onde circulam práticas africanas ao lado de tantas outras. Acredito que perceber a cidade de Salvador a partir também destes olhares que tem as religiões de matriz africana, como principal mantenedora, constitui um dos maiores desafios frente aos problemas sociais que atingem a cidade lhe fazendo ao mesmo tempo a mais negra da diáspora africana, a que também os descendentes de africanos lideram os índices de morte violenta, aglomerado populacional e déficit relacionados a saúde e educação. No mais, é continuar pedindo que Iemanjá, orixá, Mãe do Novo Mundo não abandone as pedras de praias que aos poucos vão desaparecendo como a do Rio Vermelho, de Itapuã e da Ponta do Humaitá a fim de que as suas areias possam ser convertidas em anos de felicidade para que possamos continuar contando histórias, renovadas quando reproduzidas, a semelhança de nossos pais e mães que antes mesmo de viver, idealizaram uma cidade. Acreditamos que estes sonhos sejam para a cidade seu maior legado e para nós, o maior presente.
Vilson,
ResponderExcluirEu quero fazer um bate-papo com voce. Nao sei se vc me lembrou, mais estava a casa de Vivaldo com vc, Claudio P e vc quando estava terminado seu tesis pro livro que fez. Agora mesmo estou em Salvador pruma semana antes de a Festa da Boa Morte. Se tem tempo posivelmente nos podemos fazer contatos e aranjar uma reuniao...-pos e? Vc pode me mandar um email: sab577@nyu.edu ou faz uma ligacao, 8610-0365. Muito obrigado. Abracos, tchau. Xicote
Scott Alves Barton