quinta-feira, 26 de agosto de 2010

CANDOMBLÉ E TRANSPLANTE (I PARTE)


Em linhas gerais, entende-se por transplante o ato de implantar um órgão ou parte dele num outro indivíduo. Às vezes, a mesma pessoa doadora pode ser receptora dos próprios tecidos, é o que acontece em algumas cirurgias reconstrutivas. Tal ato para a sociedade ainda é cercado por preconceitos culturais, sociais e religiosos. Esse assunto já esteve presente, embora abordado de forma tímida, em algumas reuniões do “povo de santo” que nas poucas vezes que é interrogado sobre o assunto, opta por não falar, ou evoca o provérbio que lembra que “o corpo deve ser entregue a terra inteiro”. Temos assim, diante de nós duas posturas: a do silêncio e a da omissão diante de algo tão importante para a vida de algumas pessoas. Verdade é que tal assunto não é simples nem fácil de ser enfrentado. Vamos, assim buscar outros caminhos, procurar outras leituras, ou simplesmente ouvir falas menos preconceituosas. Já a algum tempo venho refletindo sobre tal assunto, sobretudo quando me deparo com a triste realidade das filas de transplantes que reúne contingente significativo de pessoas de baixa renda. Certa ocasião interroguei a um Babalorixá sobre o que ele achava sobre tal assunto. Até lhe questionei sobre a idéia que recentemente tinha escutado de que a pessoa que recebe um órgão ou parte de um órgão transplantado, começa ser influenciado pelo doador. O sacerdote, sabiamente, fez um gesto com a cabeça, sorriu e disse: “olhe meu filho, no meu tempo não se falava sobre isso, por que não se tinha isso, ninguém nem falava, não se ouvia nem falar. Mas isso não quer dizer que não é certo ou errado.” Na maioria das vezes, a oposição ao transplante é explicada pelo medo de ter a morte apressada em algumas ocasiões, ou ainda incentivar o tráfico de pessoas para tal fim, situações conhecidas pelos negros e negras nas favelas das grandes cidades, diante da crescente onda de violência e tráfico de drogas que nos colocam em situações de risco. Antes de tomarmos qualquer posição, devemos fazer uma leitura histórica. Afirmar que não é certo ou errado pressupõe a necessidade de um olhar atento sobre a história de grupos humanos que fizeram dos transplantes uma realidade antiga de suas civilizações. A fim de demonstrar isso, gosto de evocar o mito africano que narra a trajetória da vida de Isis e Osiris, perseguidos por Set, filho também do Sol. Após prender vivo o irmão numa urna mortuária jogada rio abaixo, depois que descobriu que Isis havia conseguido imortalizar Osiris através dos seus perfumes e bálsamos, Set, corta o corpo de seu irmão em vários pedaços e o espalhou por todo Egito. Incansável, Isis percorre todo país e vai recuperando os pedaços do corpo de Osiris, exceto o pênis que havia sido devorado por um peixe. O mito diz que Isis reconstruiu o pênis de Osiris com quem teve posteriormente Horus, o deus que se ocupou de vingar a morte do pai. Esse mito, embora de forma bastante resumida se não nos ajuda construir uma opinião a respeito do transplante, ao menos serve para desconstruir a idéia de que os africanos ignoravam tal noção. E que tal evocar a imagem de Olorum arrancando as partes do seu corpo para formar a terra, as casas, as pedras, as pessoas, as árvores, enfim tudo que existe? Esse mito é bastante sugestivo, pois nos permite pensarmos como Divinos, partes do Sagrado e ao mesmo tempo responsáveis pelos outros. Se lermos estes textos com mais atenção acredito que descobriremos outras possibilidades de compreensão dos transplantes. Afinal todos não somos parte do Divino? E se ao invés de interpretarmos o provérbio: “o corpo deve ser entregue inteiro a terra” como algo individual e particular, o meu corpo; esse corpo pudesse ser entendido como algo mais amplo, em outras palavras, não como um corpo, mas um verdadeiro “ara”, algo que pode ser representado por tudo, pois tudo que existe participa dele, ou simplificando se parece com ele. A integridade do corpo estaria ligada na verdade à permanência nesse corpo divino. Corpo primeiro, corpo inicial, corpo místico, corpo ancestral do qual partem todos os corpos. Idéia essa que atravessa as práticas mágicas religiosas dos terreiros de candomblé e constituem base para o tratamento e cura de doenças. Não seria essa a lógica da comunidade que cuida de uma recém nascida acometida de uma doença de pele, utilizando folhas de mamona, chamadas em algumas comunidades terreiros de ewe lara, “folha do corpo”? A folha da mamoma ( Ricinus communis) para o povo de candomblé, mais do que representar o corpo humano, é o próprio corpo. Graças a isso ela é utilizada em algumas ocasiões para substituir ou estimular os tecidos da pele humana. Fato que só é possível graças à participação de todas as coisas, no corpo inicial. O provérbio que diz: “o corpo deve ser devolvido a terra inteiro” não pode ser entendido como uma referencia ao mito que nos referimos anteriormente? “ cada vez que o corpo fragmentado de Olorun caia, ia ganhando novas formas”? Estar inteiro aqui então não poderia ser um convite para refletirmos sobre a nossa participação como corpo, ara, no Corpo do Sagrado? Se assim pensássemos não abriríamos uma possibilidade de dialogo para entendermos o transplante de maneira diferente? Fato é que a partir do universo afro-brasileiro dificilmente fundamentaremos alguns preconceitos que se opõem aos transplantes ou não permitem se quer pensar sobre práticas que acompanharam, se não a história das comunidades mais antigas, a vida daquelas que desde o começo entenderam o corpo, o ara, as pessoas e tudo que existe como algo amplo e de responsabilidade de todos, desta maneira elaborou sistemas sócio, culturais, políticos e econômicos entrelaçados com o Sagrado. Afinal se somos pedaços do Divino, cada parte é este corpo inteiro, assim estamos e podemos está em todos os lugares. Não parecemos com tudo que foi criado? Quem sabe esse segundo principio possa ser entendido a partir das histórias sobre exu, dono do corpo, primeiro ara aiyê criado, presente em tudo que existe? Mais isso conversaremos na próxima semana.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

AINDA SOBRE OS VELHOS(AS), O POVO DO MINGAU


Ao lado de algumas iguarias que ganharam prestígio e fama, projetando-se no cenário brasileiro como símbolos de identidade, estão os “tímidos” mingaus. Tímidos pela forma de apresentação conservada até hoje, não variando nas cores e sabores. Razão pela qual recai sobre estes uma espécie de silêncio. É como se eles não existissem ou não fizessem parte da “economia da cidade”. Não continuassem produzindo o sustento de uma população que as cinco horas da manhã já esta labutando. Acredito que das comidas de rua, também chamadas “comidas de tabuleiro”, os mingaus foram os que menos se modificaram. Desta maneira, ainda hoje tanto a arrumação do tabuleiro, quanto a forma de servi-lo continua a mesma dos finais do século XIX. A modificação mais significativa foi a substituição dos papéis de embrulho coloridos, chamados “papel caderno”, que eram recortados e ficavam semelhantes a rendas, por toalhas alvas, através das quais acredita-se transmitir idéias de “higiene” e “limpeza”, atributos por excelência do “discurso higienista” das cidades inventadas no século XIX. Ainda hoje encontramos estas toalhas cobrindo os tabuleiros, verdadeiros altares onde na maioria das vezes, as panelas são literalmente “vestidas”, como se costuma dizer, a semelhança do que acontece nos terreiros de candomblé onde as mesmas recebem saias, panos e laços, representando o próprio sagrado. Não podemos esquecer que as panelas chamadas igbá, como tudo que é redondo representam o mundo. Há quem diga que moramos dentro de uma panela. Ela representa a cabeça e a cabeça representa o corpo todo. Sabiamente africanos e africanas guardaram seus ancestrais dentro de panelas, terrinas, gamelas, pratos, cabaças, utensílios indispensáveis na cozinha. Desta maneira, é provável que uma das motivações que levou a humanidade inventá-la foi para manter próximos seus antepassados e ancestrais. Nas panelas que compõem o tabuleiro estão os mingaus, uma das comidas mais simples e menos elaborada que a humanidade desenvolveu. Isso não significa que sejam menos complexas, mas refletem histórias de grupos nômades e seminômades, povos que estavam sempre a caminho. Os mingaus refletem histórias de caçadores, guerreiros, comunidades anteriores ao desenvolvimento da agricultura e ao surgimento da domesticação de algumas plantas. Nos tabuleiros, o branco das toalhas confundem-se com a cor prata do alumínio das panelas e suas tampas. Ali estão o mugunzá, o mingau de puba, também chamado mingau de carimã, o mingau de milho e o mingau de tapioca. Em algumas ocasiões pode-se encontrar ainda um mingau chamado de lelê, feito de arroz. Acredita-se nos terreiros que estas iguarias remete-nos aos primórdios das civilizações, quando a humanidade ainda não possuía uma comida mais elaborada, mas alimentava-se de farinhas e papas. Farinhas na maioria das vezes conduzidas como único mantimento, salvo as pressas, daí o apelido: “farinha de guerra”. Desta maneira, “não deixar faltar a farinha”, significava resistir, sobreviver, garantir o sustento, manter-se vivo durante a jornada. Não teria sido esta a função cumprida pelos mingaus quando estes foram para a rua? E hoje, não é ainda esta a função que estes cumprem em algumas cidades brasileiras? Afinal, mingau é comida considerada forte. Mingau serve para fechar o corpo. Acredita-se que mingau cura algumas doenças. Mingau literalmente sustenta o corpo. É comida que através do amido dar energia, conferindo força a exaustivas horas de trabalho. Nas ruas os mingaus não resistem mais do que seis horas, salvo alguns que passaram a circular nos últimos anos em carrinhos que exibem a identidade de 100% negro. Nos terreiros de candomblé, os mingaus são iguarias consagradas aos “ancestrais velhos”, aqueles que agrupam as famílias que saíram para povoar os quatro cantos do mundo. Há até algumas casas que organizam a festa dos mingaus, comida que acompanha todos os rituais de nascimento. Mingau é assim considerado comida/bebida que faz memória aos velhos como Oxalá e Nanã, o remédio que cura. Dois princípios que significam o universo indiferenciado. Dois ancestrais representados por uma espécie de cedro, cajado ritual. O primeiro, chamado de opaxorô é uma síntese do mundo visível e invisível. O segundo, chamado de ibiri, possui o mesmo significado. O ibiri através do entrelaçamento das nervuras das folhas do dendezeiro que se torcem sem partir faz menção ao eterno renascimento garantido quando nós homens e mulheres negras nos voltamos para a nossa ancestralidade, na certeza que somente ela, como os grãos e raízes garantirá a nossa presença dentro desse grande panela que é o mundo. Sirva-se.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

ORIXA ILU E ORIXA IGBO


Neste texto vamos abordar o desconfortável tema do sincretismo afro-católico. Desconfortável não por ser algo revisitado suficiente por outros autores, mas pela série de estigmas que ao longo da história das religiões de matriz africana no Brasil, este conferiu a estas. Desta maneira, gostaríamos de iniciar esta reflexão retomando a afirmação de que o fenômeno do sincretismo é universal e por isso acompanha os grandes modelos religiosos do inicio de sua formação aos dias de hoje. Pena que tal tema, nos estudos afro-brasileiros, ao aparecer na década de 30 serviu dentre outras coisas para legitimar a idéia da suposta inferioridade do pensamento africano, elaborada no século XIX a partir das teorias racistas. Assim por muito tempo, tal assunto quando apareceu nos estudos afro-brasileiros sugeriu leituras preconceituosas que desautorizavam as visões de mundo africana, graças a relação que estes desce cedo estabeleceram com o catolicismo português. As leituras limitadas de tais relações se deram a partir da concepção de uma teoria conspiratória. Em outras palavras, alguns estudos apresentam as relações entre negros e brancos no Brasil colônia a exemplo de um campo de futebol, de um lado os negros, do outro lado os brancos. É certo que na colônia, como ainda hoje, as relações entre os não brancos e os que alto designaram-se brancos ainda continuam sendo algo predefinido. Atentar-se a isso talvez seja o primeiro passo para desmascarar o racismo brasileiro, racismo sutil, silencioso, cordial, camarada que empurra o homem e a mulher negra para o mundo do “deixa disso”, do “para com isso”, mas que sempre está ali constituindo as relações mais “familiares”. Essa suposição da teoria conspiratória, ou da ação dos indivíduos a partir de “um lugar” sugeriu a teoria da dissimulação, que seria uma espécie de “faz de conta”. Desta maneira, as relações estabelecidas desde cedo entre o universo religioso africano com outros grupos seria explicada a partir desse faz de conta onde, por exemplo, os santos católicos através de um jogo de correspondências, de analogias externas, seriam uma espécie de máscara branca no rosto de ancestrais africanos. Tal idéia nos anos 80, a partir da caminhada de quase vinte anos de movimentos negro e da presença de alguns intelectuais nos terreiro provocou uma espécie de mau estar no universo afro-brasileiro, ao menos para os participantes da II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, realizada na cidade de Salvador. Quando se refletia sobre a o retorno à África, foi elaborado um documento, na forma de manifesto que afirmava afim de garantir a África mítica e pureza africana, era necessário romper com o sincretismo afro-católico, expresso através da correspondência entre santos católicos e orixás, da ida das comunidades terreiros ao recinto católico por ocasião de algumas festas e da presença de altares católicos no barracão dos terreiros. Não estamos bem certo se o objetivo do documento produzido no encontro era mesmo desconstruir as relações entre o candomblé e catolicismo a fim de legitimar o primeiro como religião, mas com certeza quando algumas lideranças religiosas assinaram tal texto, transformado pela mídia num Manifesto anti-sincretismo, era a defesa de suas tradições como religião que tinham em mente. Esse fato foi abordado pela Prof. Dra. Josildeth Gomes Consorte que estudou tal documento durante dez anos. A partir das contribuições de seu trabalho realizamos uma pesquisa publicada sob forma de livro intitulado: Orixás Santos e Festas, onde chamamos a atenção para o fato de diferentemente de como se apresenta, o fenômeno do sincretismo é sentido de forma diversa pelas pessoas. Em outras palavras, ao contrário da idéia de “faz de conta”, mistura, fusão, justaposição, jogo de correspondências, analogias, confusão, dentre outras, o fenômeno do sincretismo tem a ver mesmo com atribuição de significados, com sentimentos. Desta maneira, a menos nas religiões de matriz africanas deve ser entendido como algo além das mascaras e disfarces, até mesmo porque não se reduz a apenas a vivências externas, ao contrário, em alguns momentos chega a ser constituidor de ritos específicos reconstruídos no Brasil, como fez o próprio Cristianismo quando se deparou com as religiões antigas, contemporâneas a sua formação. Dizer que o sincretismo afro-católico não pode ser reduzido a relações exteriores, nem ao faz de conta explicado a partir da teoria da dissimulação é ao mesmo tempo reconhecer a capacidade que homens e mulheres negros tiveram de contrariando a teoria conspiratória, romper com os lugares impostos a estes na sociedade e intervir a partir de seus lugares, tornando-os livres para criar, reinventar e dar continuidade a universos fragmentados pela escravidão que não foram destruídos graças a capacidade de diálogo com elementos simbólicos que se depararam numa verdadeira colônia. O viver em colônia facilitou o diálogo entre africanos, ameríndios, portugueses, mouros, ciganos, cristãos novos, espanhóis, holandeses e muitos outros povos. O resultado foi a produção de modelos religiosos onde símbolos provenientes de várias matrizes culturais não apenas circulam externamente, mas dentro do corpo dos próprios iniciados. É interessante também observar que tais relações só foram possíveis, graças à dinâmica de juntar do pensamento africano somado à proximidade do universo católico português.Em outras palavras, o catolicismo chegado da Península Ibérica, ao contrário do que havia se afirmado no século XIX era por exemplo tão sensual quanto o pensamento africano, basta olharmos para os santos barrocos que se não choravam nas igrejas, lamentavam a má sorte em alguns oratórios ao serem submetidos a um verdadeiro ritual de tortura pelos devotos. Depois, como chamou a atenção certa ocasião a Yalorixá Olga do Alaketu, orixás e santos da igreja no Brasil eram estrangeiros. Isso no seu entender significava o primeiro passo para o dialogo e entendimento de relações que não podiam ser reduzidas a algo superficial e externa. Em alguns terreiros de candomblé de tradição jeje-nagô, guarda-se ainda a expressão igbo para designar os não negros. Tal palavra também era utilizada por alguns povos de língua yorubá para chamar os seus vizinhos, os estrangeiros, aqueles vistos como “de fora”, categoria bem entendida pelas ciências sociais. Quanto às relações que desde cedo os universos africanos estabeleceram com os “estrangeiros” é algo que ainda esta para ser melhor estudada. Fato é que se não foram confundidos, desde cedo estes estrangeiros submetidos também a distância de suas terras de origem foram incorporados no universo religioso reconstruído no Brasil como estrangeiros, a semelhança dos ancestrais africanos. Talvez esse fato comece a explicar a presença não somente de altares católicos em locais públicos onde se realizam as festas de candomblé, como também a tradução de rezas católicas para as línguas africanas, sem falar na evocação de orações católicas e alguns santos em momentos rituais protegidos dos olhares até mesmo daqueles que elaboraram a teoria do faz de conta. Verdade é que até mesmo os santos católicos apresentados aos africanos no contexto da escravidão, não foram vistos por eles como seus senhores. Isso deu a possibilidade destes serem invocados ao lado dos orixás Ilu. Ilu, a terra distante, aquela deixada para trás, trazida apenas na memória e nas lembranças. Foram essas terras, o sentimento de fidelidade a elas que possibilitou às religiões de matriz africana juntar num mesmo sentimento religioso os orixás ilu com os orixás igbo, transformando essa experiência em algo que ainda hoje continua desafiando o pensamento ocidental greco-romano-cristão acostumado a dividir as coisas, a vida e o mundo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

TURISMO ETNICO AFRO E CULINARIA


Como outras pessoas iniciadas no candomblé, não estou ainda muito bem familiarizado com a expressão “turismo étnico afro”. Termo que embora já goze de prestígio entre alguns estudiosos de certas áreas, carece de entendimento para o chamado “ povo de santo”. O turismo étnico prevê a transformação de nossos terreiros em hotéis? Os candomblés serão obrigados a organizar festas para os turistas? Embora entenda que o turismo étnico afro não se reduza aos terreiros de candomblés, trago aqui esta experiência como exemplo, pois a nossa fala sobre a culinária será a partir deles. Ou melhor, é inegável o fato de que as comunidades terreiros foram capazes de reunir aspectos sociais, políticos, econômicos, religiosos e culturais fragmentados pela escravidão expressos através da dança, culinária, da música e outras expressões. Estas e outras perguntas estão sem respostas para o povo de candomblé. Ou ainda: Quais os benefícios que o turismo étnico afro trará para os terreiros de candomblé? Terreiros que agonizam na cidade mais negra da diáspora pela falta de compromisso dos poderes públicos que faz questões como a regularização fundiária e isenção do IPTU se arrastarem durante anos sem nenhuma definição. Enquanto isso estas comunidades enfrentam a especulação imobiliária que não tendo mais para onde empurrá-las, vai reduzindo a reserva de mata atlântica que algumas destas comunidades conseguiram preservar. E a economia dos terreiros? Outro ponto que deve ser estudado. E o racismo e a intolerância religiosa que nos atingem? Em que o turismo étnico afro nos ajudará? Ou melhor, como a partir do fortalecimento do turismo étnico podemos propor medidas de enfrentamento de algumas dessas questões? Como os programas de incentivo ao turismo étnico afro ajudará a preservação do maior patrimônio vivo das comunidades terreiros: os velhos? Oxalá alguns desses temas possam está sendo debatidos no I Seminário de Turismo Étnico Afro. Se não, que fiquem agendados, como por exemplo, um seminário como este de três dias com o povo de santo para saber o que acham de tal proposta, como a vêem etc. Será que os nossos orixás não precisam ser consultados?

Com essa fala inicial não estou querendo abortar uma iniciativa que mais do que fortalecer ao Turismo, pode ser muito boa para o povo de candomblé. Confesso, todavia, que ainda não sei qual será a maior contribuição do turismo afro étnico para nossas comunidades terreiros diante de algumas questões levantadas anteriormente. Mas como descendente de africano, acredito que será bom para todos nós. Ou alguma vantagem trará para as religiões dos orixás. Quem sabe não teremos guias de turismo mais esclarecidos? Essa sempre foi uma demanda do povo de candomblé. Há agências de turismo indignas de nota, que incluem as nossas celebrações e transformam o nosso calendário litúrgico em passeios, juntam-se a isso, guias sem nenhuma formação que distorcem todo o nosso ritual. Assim, alguns de nossos Orixás transformam-se em diabo, outros em santos católicos. Isso não permite ao nosso visitante distinguir uma festa de candomblé de um show folclórico. Daí os constantes constrangimentos em terreiros que não permitem filmagem e fotografias dos rituais ou mesmo o aborrecimento de nossos visitantes por acharem que pagaram pelo assento como no teatro e alguém lhe tomou a frente. O resultado é o pior possível. Nossos visitantes retornam para os hotéis sempre após as 22 horas, horário que chega o microônibus. No barracão de nossos terreiros ficam apenas as garrafinhas de suco de laranja e os guardanapos que enrolaram o sanduíche. Que tal os órgãos de Turismo capacitar os nossos filhos de santo para falar as línguas de nossos visitantes? Afinal, ao lado da língua ritual, é bonito ver um filho ou filha de santo falando italiano, inglês, francês, espanhol, alemão. Seria tão bom se pudéssemos recepcionar os nossos visitantes. Falar sobre os orixás na língua do estrangeiro. Isso mais do que uma sugestão é uma reinvidicação. Talvez essa possa ser a maior contribuição dos Programas de incentivo ao Turismo Etnico Afro às comunidades terreiros. O turismo étnico afro pode nos ajudar a sermos interlocutores de nossas próprias histórias.

A partir da idéia de que o turismo étnico suscita através do contato com o outro, experiências da diversidade, mas ao mesmo tempo, fornece elementos para construção de uma identidade, gostaria de afirmar que essa realidade não é uma novidade para os povos africanos e nós seus descendentes. A novidade está no fato de que somente não muito distante de nós, começou-se observar essa modalidade de turismo. Que bom, pois isso nos dar visibilidade, ao mesmo tempo que reconhece a capacidade de nossas matrizes negro-africanas produzir imagens positivas sobre a maior população fora do seu pais de origem. E mais ainda, que esta experiência pode ser feita por qualquer pessoa, pois assim entendemos a etnicidade, algo em movimento, um coletivo vivido em particular por cada individuo a partir de sua experiência histórica e história de vida. Assim, o turismo étnico afro não somente nos abre para a humanidade, mas abre a humanidade, entendida como o modo como produzimos, rezamos, representamos o mundo, plantamos, para o mundo. Peço desculpas se nesta fala inicial esteja repetindo questões que aqui já foram explanadas, confesso que elas servem mesmo para mim situar num tema ainda espinhoso para os cientistas sociais: a identidade. Pela brevidade do tempo não vou entrar em tal questão, mas gostaria de assinalar que na contemporaneidade, tal expressão também tem se modificado, ganhado novos contornos.

Quero agora, para não fugir de meu estilo, evocar um mito africano que nos ajuda a pensar nisso que estamos falando. A história de um rei chamado Sobô que visitando as terras vizinhas, governadas por outro rei chamado Dan, gostou tanto do que viu que ao chegar a hora de partir, pediu para o hospedeiro para ficar mais um pouco. O mito diz que Sobô trouxe consigo muitas famílias que passaram anos nas terras de Dan, aprenderam a sua língua, seus costumes, a reverenciar seus antepassados e vice versa. Até que um dia Sobô retornou ao seu reino, trazendo consigo a experiência dos povos vizinhos.

Esse mito mantido por algumas comunidades terreiros nos ajuda a pensar na abertura para novas experiências que os povos africanos sempre tiveram. Basta olharmos as religiões de matriz africana reorganizada por nossos antepassados. Para que melhor exemplo de experiência de turismo étnico afro? Os terreiros de candomblé são verdadeiras experienciais multiculturais. Eles formam uma espécie de teia que foi capaz de somar experiências étnicas culturais provenientes do Continente Africano, além de junta-las a outras aqui encontradas como a ameríndia ou recém chegadas como a portuguesas, a cultura trazida pelos povos judeus, ciganos, mouros e tantos outros. Como não sou especialista em turismo étnico afro, apenas acredito que isso não seja uma experiência nova, vou ficar por aqui. Espero que o debate suscite algumas questões.

Vamos agora falar sobre a culinária, tema que sou admirador e especialista, ao mesmo tempo em que nos últimos anos tornei-me questionador. Em finais do século XIX quando Raimundo Nina Rodrigues precursor dos estudos sobre o negro, dentre nós, a menos para as Ciênciais Sociais, debruçou-se sobre os de comer de origem africana na cidade de Salvador, mesmo de forma diluída em seu trabalho, ele estava apontando luzes para entender a comida e o comer, temas que nos últimos anos vem gozando de prestigio, como algo capaz de revelar a identidade de um grupo. Afinal, como se afirma nos dias atuais. Comemos não apenas ingredientes, mas símbolos. Demonstrar isso é um dos meus objetivos na Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia a quem me vinculei recentemente. Impregnado de preconceitos, Nina Rodrigues acreditou que pouco havia restado dos grupos étnicos que participaram da elaboração dos de comer africanos no Brasil haja vista a inexistência de seus nomes nos pratos, salvo o arroz de haussá. Coube sem dúvidas a Manoel Querino não apenas registrar, mas refletir sobre o que sabiamente chamou: “dos alimentos puramente africanos”, descritos de forma sucinta e discreta; “do sistema alimentar da Bahia”, entendido como “os de comer” cotidiano da cidade de Salvador. Nos primeiros, Querino incluiu as comidas rituais e no segundo o que chamou de modificação que conferia cores, sabores e singularidade à “cozinha bahiana”. Cozinhas que já haviam se impregnado não apenas com o azeite de dendê e as pimentas, mas com sentimentos de pertença reconstruídos o tempo todo. Fato é que desde cedo os de comer de origem africana, ou “transformados em africanos” fizeram-se presente nas ruas de cidades como Salvador, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Porto Alegre. Acredito quer bem antes da organização das religiões trazidas pelos africanos como culto. Com isso já estou introduzindo um tema que tenho debatido muito nos últimos anos: a confusão gerada entre “comida afro-brasileira”, chamada de comida de azeite e a comida ritual, ou comida dos orixás.

Já até tornou-se um clichê a afirmação de que a origem da culinária afro-baiana, por exemplo, é uma espécie de secularização da comida sagrada, servida aos orixás em dias especiais. Tal confusão pode ter sido influenciada por uma observação de Arthur Ramos na década de 30 ao insistir que diante das modificações dessa culinária de origem africana, era nos terreiros de candomblé que ainda se podia comer certas iguarias na forma mais original. Acertadamente Arthur Ramos estava chamando a atenção para o fato de que nos terreiros de candomblé, a comida dos orixás é elaborada observando alguns cuidados, chamados de preceitos e isso ajudaria na manutenção do patrimônio negro africano reinventado no Brasil. Isso não justifica a confusão entre a “culinária baiana” e as comidas de orixás. Nem muito menos a afirmação de que os pratos que compõe a chamada cozinha baiana tem origem na cozinha dos orixás, chegando em alguns momentos a confundirem-se. As comidas dos orixás são mais elaboradas e a sua confecção é acompanhada pelas palavras de encantamento. É isso que a difere de qualquer outra. Essa concepção suscita até um alívio para os ramos do turismo e hotelaria, por não estarem entrando no terreno minado das religiões.

Certa ocasião fui questionado por uma jovem jornalista sobre a relação que existia entre o akarajé vendido pelas baianas e o akarajé de Yansã. Seus olhos saltaram quando afirmei que não existe relação nenhuma. Primeiro, porque Yansã não come akarajé, mas akará, bem diferente dos hambúrgueres que encontramos na cidade de Salvador acompanhado com o refrigerante de cola, jé é o verbo comer, expliquei. A jovem, todavia insistiu: “mais antigamente não era uma comida vendida apenas pelas filhas do orixá Oyá?” Lhe desapontei mais uma vez, dizendo-lhe que para mim, antigamente é uma temporalidade que não conheço, depois conforme as informações do Professor de grego Vilhena no final do século XVIII, africanos e africanas vendiam akará, lelê, abará, ekó, ekuru, mungunzá, efó, aberém, mocotó e outras iguarias, ao lado de bebidas como o aluá. Fato é que o akarajé ganhou a concorrência dentre as “comidas de rua”. Na moda, foi eleita a comida para representar a baianidade, outra construção problemática. Embora não possamos deixar de mencionar a sacralidade do mercado e da arte de mercar que não foi inventada pelos africanos. Para compreendermos isso basta prestarmos atenção à bolsa de valores, ela é imprevisível. Mesmo assim realcei que acumular capital ainda hoje continua sendo um dos maiores desafios para as comunidades terreiros e seus iniciados. É mais provável que os filhos de alguns orixás ligados ao azeite de dendê tivessem mais “cabeça de venda” para comercializar certas iguarias, o que não é uma regra, como nada é regra geral no candomblé. Eu mesmo conheci na cidade de Cachoeira, uma senhora já falecida, filha de Oxalá que nunca abdicou de suas vestes brancas, que construiu a sua família, formou todos os seus filhos vendendo acarajé. O que se precisa ter é “cabeça de venda”, em outras palavras, sair para a rua e voltar com dinheiro para casa. Como se diz na modernidade, ser empreendedor, fazer freguesia. Embora se tenha esquecido, o mesmo vale para os mingaus, iguarias que ainda hoje resistem nas ruas, contrariando o discurso “higienista”. Verdade é que, africanos e africanas e hoje seus descendentes mercaram tudo que podiam, pois disso dependia a sua economia, a sua sobrevivência, a formação de seus filhos(as), o custeio de um ritual que se pagava durante anos. Verdade é que quando isso é realizado, estes momentos são atravessados de sacralidade, onde o sistema de troca tradicional é alternado pelo inspirado nos universos africanos. Mais aqui na cidade de Salvador temos outro debate: o de quem pode vender akarajé? Debate iniciado nos anos noventa ante a presença de alguns tabuleiros de homens, retomado nos últimos anos ante a emergência do akarajé de Jesus, a proliferação de fast-food e a venda do akarajé por algumas delicatesse. Eu particularmente acho que qualquer pessoa e estabelecimento pode comercializar o que quiser e desconstruída a mentira de que só quem pode vender akarajé é gente de candomblé, não estou dizendo nenhuma heresia. A minha reação é ao acarajé de Jesus; não por não serem saborosos; ao contrário, mas por ser cristão, por afirmar-se desconstruindo a minha identidade negro-africana expressa na modificação do tabuleiro, no abandono do traje da baiana e de outros símbolos que remetem ao passadio africano.


Não estou certo que a afirmação de Arthur Ramos sobre a preservação de algumas técnicas culinárias observadas para a elaboração das comidas rituais continue valendo na atualidade quando o próprio conceito de comida passa por uma redefinição dentro dos terreiros que aos poucos vão substituindo as comidas de azeite pelas chamadas “comidas de branco” que antes ficavam restritas apenas ao dia a dia ou a ocasiões especiais. Não obstante o bom gosto e requinte que estas comidas são apresentadas ao público, acompanham este fato, a reação de algumas pessoas contra as chamadas “comidas de azeite”; ora evocando que fazem mal, ou porque não gostam, sem nenhuma justificativa. Ainda bem que não surgiu a palavra saudável, outra expressão que está em moda. Isso acontece, sobretudo entre os mais jovens. Esse fato abre uma série de questionamentos. Na maioria das vezes, as comidas de azeite ficam restritas aos orixás “que comem sozinhos”. Será que a popularidade das “comidas de azeite”, em dias como a sexta-feira, ou mesmo a presença dos restaurantes de “comidas típicas” explicaria o abandono do gosto pelas comidas votivas nos terreiro? Lembro que algumas dessas comidas chamadas baianas eram reservadas à ocasiões especiais como aniversário, por exemplo. Com o tempo foram desaparecendo, tornado-se inicialmente “comidas de pobre” e depois comidas que fazem mal por conta de problemas ou outras “doenças que estão na moda” e que por isso devemos evitá-las antes mesmo de passarmos pelos profissionais de saúde que decidem o que devemos comer, a quantidade e a hora. Refletir sobre este aspecto é interessante pois abre discussões pertinentes a preservação do universo afro-brasileiro legado por homens e mulheres que desafiando o seu tempo deram respostas a partir de suas tradições às situações desafios que foram expostas. Isso não significa dizer que entendemos a tradição como algo imutável, ao contrário, a recriação em alguns momentos se dá, não para recompor algo fragmentado, mas exibir prestígio. Depois do “desaparecimento da pedra de ralar”, sua substituição pelo moinho que depois foi motorizado, seguido do liquidificador e do multiprocessador capaz de conferir as massas diferentes texturas, assistimos por exemplo, algumas comidas rituais serem feitas a partir do refinamento de grãos, disponibilizados pelas indústrias de alimentos, a mesma que deu origem ao xarope de milho, um tipo de açúcar que o nosso organismo não é capaz de dissolver, gerando entre outras doenças o diabete melittus tipo II. E quando as comidas de azeite ceder de uma vez por todas dentro dos terreiros o seu lugar a culinária japonesa, italiana, francesa, mediterrânea, mexicana, o que teremos para mostrar aos nossos visitantes? Estas e outras questões os Programas de incentivo e fortalecimento do turismo étnico afro pode fornecer subsídios para enfrentá-lo. Que bom se a BAHIATURSA pudesse encabeçar esse movimento, não para nos privilegiar como homens e mulheres religiosos, mas descendentes de homens e mulheres que tiveram histórias interrompidas pela escravidão, mas que foram capazes de reconstruir estes mundos na diáspora. Afinal, comida é patrimônio. Ela como os símbolos sagrados, parafraseando o antropólogo Cliford Geertz, é capaz de realizar uma síntese entre o ethos de um povo e sua visão de mundo. Talvez essa concepção seja o maior legado de nós descendentes dos povos africanos para o Mundo e que bom que agora o turismo resolveu nos privilegiar.

“SE ENCONTRAREM UM VELHINHO NA ESTRADA TOME A BENÇÃO”

O mês de agosto na cidade de Salvador reveste-se de particularidade. As ruas do centro, suas íngremes ladeiras e os principais locais onde transitam número considerado de pessoas, são invadidos pelas tiras de chitão multicoloridas ou simplesmente pelos laços tão alvos que confundem-se com as próprias nuvens que podem ser vistas em dias ensolarados. Laços ou tiras de tecido, símbolos ancestrais que caem dos tabuleiros, verdadeiros altares suspensos sobre a cabeça e ombros de alguns iniciados que cumprem a chamada “missa pedida a São Roque.” O termo missa tomado emprestado do catolicismo português deve ser compreendido como uma obrigação, dever, ou mesmo sacrifício, oferenda, perpetuação de um ritual que ainda hoje pode ser encontrado em algumas cidades do Continente Africano: a chamada “esmola do velho.” Outro termo emprestado do catolicismo português que longe de remeter a idéia de caridade ou algo que serve para aproximar-se de Deus, evoca o valor simbólico que o gesto de dar estabelece com outras relações como a de receber e retribuir. Desta maneira, se doar, não importando a quantia é um valor, um dom, um presente, receber também é, afinal o Sagrado não tem preço. Em tempos passados os tabuleiros não ficavam parados, nem se quer eram arriados sobre um tripé em forma de X, a exemplo do que vemos hoje em alguns pontos da cidade, pois Obaluaiyê/Omolu são ancestrais ligados ao dinheiro, ao comércio, ao mercado, ao movimento. Ou como os orixás Ogun e Exu, Obaluaiyê é andarilho, em outras palavras, caminha em todas as direções, razão pela qual não possui forma definida de apresentação. Certo é que tal orixá a semelhança dos reis africanos adoram passear, demarcar seu território, dar voltas na cidade, enfim ir ao mercado. Se é certo que africanos e africanas não conseguiram recriar completamente suas feiras a exemplo daquelas que ainda hoje acontecem em cidades como Lagos, Togo e algumas outras, é digno de nota que seus ancestrais nunca abriram mão do contato com esta troca onde bens simbólicos se alternam o tempo todo com bens materiais, algumas dessas soluções temos a oportunidade de assistir nas ruas de capitais brasileiras como Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e São Paulo. O crescimento da cidade obrigou alguns ritos a passar por uma espécie de adaptação. Nos anos cinquenta por exemplo, o tabuleiro conduzindo Obaluaiyê/Omolu ia sempre a rua levado por duas pessoas. Não se podia “arriar” o altar no chão. Daí os iniciados revezavam. Saia-se geralmente bem cedo, antes do sol esquentar e retornava-se antes do meio dia, hora consagrada a Obaluaiyê, o sol. Esta prática pode ser observada em alguns bairros da cidade de Salvador, onde não se precisa tomar condução para levar o tabuleiro. Muitos se perguntam: mas para que serve o dinheiro? Geralmente apenas para comprar o milho vermelho que será torrado e oferecido na rua na próxima semana, ou para comprar ingredientes para se fazer um mingau, outra iguaria oferecida pelos orixás velhos. Não acreditamos que a exemplo de alguns guardadores de carro ou outros profissionais que transformaram a mendicância numa profissão sirva para acumular capital, até mesmo porque não é esse o objetivo. Graças a presença significativa do povo de candomblé cumprindo este ritual nas ruas, temos que também estar atentos à intolerância religiosa que no mês de agosto acirra-se. No ano passado acompanhei alguns casos em que o tabuleiro foi arremessado ao chão e quebrado por cristãos inflamados com tamanha afronta diante da emergência da volta de Cristo. Fato é que, passado um ano, Cristo ainda esta por vir para estes e os nossos tabuleiros estão ai, cumprindo dentre muitas funções a de afirmação de nossa identidade negra africana reconstruída na diáspora. Desta maneira se não pudermos externar reverência diante destes tabuleiros ao menos respeitemos os altares vivos que os sustentam na cabeça, evitando o constrangimento, o riso, o ar de deboche, práticas conhecidas muito bem por nós praticantes do candomblé quando tornamos as nossas práticas públicas. Já conhecemos bem a humilhação. A menos estendamos as mãos para recebermos a pipoca, afinal, ela foi feita para ser distribuída, jogada na rua. Sejamos no mínimo cordiais, desejemos um muito obrigado e sigamos em frente. Afinal, Obaluaiyê/Omolu são ancestrais tão ricos que ao contrário do que se pensa, não saem para pedir esmola, mas para distribuir a sua fortuna, simbolizada pelos grãos dos quais se produz desde a casa ao dinheiro. Cresci escutando a história que certa vez um homem saindo de seu comércio, de volta para a casa, viu cruzar na sua frente um tabuleiro desses. Mal foi interpelado a fazer a sua doação, saiu maldizendo a vida e xingando. A história diz que ele já chegou à sua casa levado pelas mãos de outras pessoas e ao chegar à sua porta não conheceu nem mais onde morava. Ficou muito doente. Embora seja bastante sugestiva não acredito que o medo seja a melhor forma de suscitar a experiência com o Sagrado. Bom mesmo é acreditar que Ele está em cada um de nós e em todos os lugares. Na dúvida, é melhor inclinarmos o nosso corpo e procurarmos ver o Deus em que acreditamos na experiência religiosa do outro. Ou se quisermos dar um passo adiante, como diz a cantiga: ao encontrarmos os velhos no caminho, tomemos a benção, afinal ela multiplica os anos de vida de quem responde e de quem pede.

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.