quinta-feira, 26 de agosto de 2010

CANDOMBLÉ E TRANSPLANTE (I PARTE)


Em linhas gerais, entende-se por transplante o ato de implantar um órgão ou parte dele num outro indivíduo. Às vezes, a mesma pessoa doadora pode ser receptora dos próprios tecidos, é o que acontece em algumas cirurgias reconstrutivas. Tal ato para a sociedade ainda é cercado por preconceitos culturais, sociais e religiosos. Esse assunto já esteve presente, embora abordado de forma tímida, em algumas reuniões do “povo de santo” que nas poucas vezes que é interrogado sobre o assunto, opta por não falar, ou evoca o provérbio que lembra que “o corpo deve ser entregue a terra inteiro”. Temos assim, diante de nós duas posturas: a do silêncio e a da omissão diante de algo tão importante para a vida de algumas pessoas. Verdade é que tal assunto não é simples nem fácil de ser enfrentado. Vamos, assim buscar outros caminhos, procurar outras leituras, ou simplesmente ouvir falas menos preconceituosas. Já a algum tempo venho refletindo sobre tal assunto, sobretudo quando me deparo com a triste realidade das filas de transplantes que reúne contingente significativo de pessoas de baixa renda. Certa ocasião interroguei a um Babalorixá sobre o que ele achava sobre tal assunto. Até lhe questionei sobre a idéia que recentemente tinha escutado de que a pessoa que recebe um órgão ou parte de um órgão transplantado, começa ser influenciado pelo doador. O sacerdote, sabiamente, fez um gesto com a cabeça, sorriu e disse: “olhe meu filho, no meu tempo não se falava sobre isso, por que não se tinha isso, ninguém nem falava, não se ouvia nem falar. Mas isso não quer dizer que não é certo ou errado.” Na maioria das vezes, a oposição ao transplante é explicada pelo medo de ter a morte apressada em algumas ocasiões, ou ainda incentivar o tráfico de pessoas para tal fim, situações conhecidas pelos negros e negras nas favelas das grandes cidades, diante da crescente onda de violência e tráfico de drogas que nos colocam em situações de risco. Antes de tomarmos qualquer posição, devemos fazer uma leitura histórica. Afirmar que não é certo ou errado pressupõe a necessidade de um olhar atento sobre a história de grupos humanos que fizeram dos transplantes uma realidade antiga de suas civilizações. A fim de demonstrar isso, gosto de evocar o mito africano que narra a trajetória da vida de Isis e Osiris, perseguidos por Set, filho também do Sol. Após prender vivo o irmão numa urna mortuária jogada rio abaixo, depois que descobriu que Isis havia conseguido imortalizar Osiris através dos seus perfumes e bálsamos, Set, corta o corpo de seu irmão em vários pedaços e o espalhou por todo Egito. Incansável, Isis percorre todo país e vai recuperando os pedaços do corpo de Osiris, exceto o pênis que havia sido devorado por um peixe. O mito diz que Isis reconstruiu o pênis de Osiris com quem teve posteriormente Horus, o deus que se ocupou de vingar a morte do pai. Esse mito, embora de forma bastante resumida se não nos ajuda construir uma opinião a respeito do transplante, ao menos serve para desconstruir a idéia de que os africanos ignoravam tal noção. E que tal evocar a imagem de Olorum arrancando as partes do seu corpo para formar a terra, as casas, as pedras, as pessoas, as árvores, enfim tudo que existe? Esse mito é bastante sugestivo, pois nos permite pensarmos como Divinos, partes do Sagrado e ao mesmo tempo responsáveis pelos outros. Se lermos estes textos com mais atenção acredito que descobriremos outras possibilidades de compreensão dos transplantes. Afinal todos não somos parte do Divino? E se ao invés de interpretarmos o provérbio: “o corpo deve ser entregue inteiro a terra” como algo individual e particular, o meu corpo; esse corpo pudesse ser entendido como algo mais amplo, em outras palavras, não como um corpo, mas um verdadeiro “ara”, algo que pode ser representado por tudo, pois tudo que existe participa dele, ou simplificando se parece com ele. A integridade do corpo estaria ligada na verdade à permanência nesse corpo divino. Corpo primeiro, corpo inicial, corpo místico, corpo ancestral do qual partem todos os corpos. Idéia essa que atravessa as práticas mágicas religiosas dos terreiros de candomblé e constituem base para o tratamento e cura de doenças. Não seria essa a lógica da comunidade que cuida de uma recém nascida acometida de uma doença de pele, utilizando folhas de mamona, chamadas em algumas comunidades terreiros de ewe lara, “folha do corpo”? A folha da mamoma ( Ricinus communis) para o povo de candomblé, mais do que representar o corpo humano, é o próprio corpo. Graças a isso ela é utilizada em algumas ocasiões para substituir ou estimular os tecidos da pele humana. Fato que só é possível graças à participação de todas as coisas, no corpo inicial. O provérbio que diz: “o corpo deve ser devolvido a terra inteiro” não pode ser entendido como uma referencia ao mito que nos referimos anteriormente? “ cada vez que o corpo fragmentado de Olorun caia, ia ganhando novas formas”? Estar inteiro aqui então não poderia ser um convite para refletirmos sobre a nossa participação como corpo, ara, no Corpo do Sagrado? Se assim pensássemos não abriríamos uma possibilidade de dialogo para entendermos o transplante de maneira diferente? Fato é que a partir do universo afro-brasileiro dificilmente fundamentaremos alguns preconceitos que se opõem aos transplantes ou não permitem se quer pensar sobre práticas que acompanharam, se não a história das comunidades mais antigas, a vida daquelas que desde o começo entenderam o corpo, o ara, as pessoas e tudo que existe como algo amplo e de responsabilidade de todos, desta maneira elaborou sistemas sócio, culturais, políticos e econômicos entrelaçados com o Sagrado. Afinal se somos pedaços do Divino, cada parte é este corpo inteiro, assim estamos e podemos está em todos os lugares. Não parecemos com tudo que foi criado? Quem sabe esse segundo principio possa ser entendido a partir das histórias sobre exu, dono do corpo, primeiro ara aiyê criado, presente em tudo que existe? Mais isso conversaremos na próxima semana.

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.