sexta-feira, 13 de agosto de 2010

“SE ENCONTRAREM UM VELHINHO NA ESTRADA TOME A BENÇÃO”

O mês de agosto na cidade de Salvador reveste-se de particularidade. As ruas do centro, suas íngremes ladeiras e os principais locais onde transitam número considerado de pessoas, são invadidos pelas tiras de chitão multicoloridas ou simplesmente pelos laços tão alvos que confundem-se com as próprias nuvens que podem ser vistas em dias ensolarados. Laços ou tiras de tecido, símbolos ancestrais que caem dos tabuleiros, verdadeiros altares suspensos sobre a cabeça e ombros de alguns iniciados que cumprem a chamada “missa pedida a São Roque.” O termo missa tomado emprestado do catolicismo português deve ser compreendido como uma obrigação, dever, ou mesmo sacrifício, oferenda, perpetuação de um ritual que ainda hoje pode ser encontrado em algumas cidades do Continente Africano: a chamada “esmola do velho.” Outro termo emprestado do catolicismo português que longe de remeter a idéia de caridade ou algo que serve para aproximar-se de Deus, evoca o valor simbólico que o gesto de dar estabelece com outras relações como a de receber e retribuir. Desta maneira, se doar, não importando a quantia é um valor, um dom, um presente, receber também é, afinal o Sagrado não tem preço. Em tempos passados os tabuleiros não ficavam parados, nem se quer eram arriados sobre um tripé em forma de X, a exemplo do que vemos hoje em alguns pontos da cidade, pois Obaluaiyê/Omolu são ancestrais ligados ao dinheiro, ao comércio, ao mercado, ao movimento. Ou como os orixás Ogun e Exu, Obaluaiyê é andarilho, em outras palavras, caminha em todas as direções, razão pela qual não possui forma definida de apresentação. Certo é que tal orixá a semelhança dos reis africanos adoram passear, demarcar seu território, dar voltas na cidade, enfim ir ao mercado. Se é certo que africanos e africanas não conseguiram recriar completamente suas feiras a exemplo daquelas que ainda hoje acontecem em cidades como Lagos, Togo e algumas outras, é digno de nota que seus ancestrais nunca abriram mão do contato com esta troca onde bens simbólicos se alternam o tempo todo com bens materiais, algumas dessas soluções temos a oportunidade de assistir nas ruas de capitais brasileiras como Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e São Paulo. O crescimento da cidade obrigou alguns ritos a passar por uma espécie de adaptação. Nos anos cinquenta por exemplo, o tabuleiro conduzindo Obaluaiyê/Omolu ia sempre a rua levado por duas pessoas. Não se podia “arriar” o altar no chão. Daí os iniciados revezavam. Saia-se geralmente bem cedo, antes do sol esquentar e retornava-se antes do meio dia, hora consagrada a Obaluaiyê, o sol. Esta prática pode ser observada em alguns bairros da cidade de Salvador, onde não se precisa tomar condução para levar o tabuleiro. Muitos se perguntam: mas para que serve o dinheiro? Geralmente apenas para comprar o milho vermelho que será torrado e oferecido na rua na próxima semana, ou para comprar ingredientes para se fazer um mingau, outra iguaria oferecida pelos orixás velhos. Não acreditamos que a exemplo de alguns guardadores de carro ou outros profissionais que transformaram a mendicância numa profissão sirva para acumular capital, até mesmo porque não é esse o objetivo. Graças a presença significativa do povo de candomblé cumprindo este ritual nas ruas, temos que também estar atentos à intolerância religiosa que no mês de agosto acirra-se. No ano passado acompanhei alguns casos em que o tabuleiro foi arremessado ao chão e quebrado por cristãos inflamados com tamanha afronta diante da emergência da volta de Cristo. Fato é que, passado um ano, Cristo ainda esta por vir para estes e os nossos tabuleiros estão ai, cumprindo dentre muitas funções a de afirmação de nossa identidade negra africana reconstruída na diáspora. Desta maneira se não pudermos externar reverência diante destes tabuleiros ao menos respeitemos os altares vivos que os sustentam na cabeça, evitando o constrangimento, o riso, o ar de deboche, práticas conhecidas muito bem por nós praticantes do candomblé quando tornamos as nossas práticas públicas. Já conhecemos bem a humilhação. A menos estendamos as mãos para recebermos a pipoca, afinal, ela foi feita para ser distribuída, jogada na rua. Sejamos no mínimo cordiais, desejemos um muito obrigado e sigamos em frente. Afinal, Obaluaiyê/Omolu são ancestrais tão ricos que ao contrário do que se pensa, não saem para pedir esmola, mas para distribuir a sua fortuna, simbolizada pelos grãos dos quais se produz desde a casa ao dinheiro. Cresci escutando a história que certa vez um homem saindo de seu comércio, de volta para a casa, viu cruzar na sua frente um tabuleiro desses. Mal foi interpelado a fazer a sua doação, saiu maldizendo a vida e xingando. A história diz que ele já chegou à sua casa levado pelas mãos de outras pessoas e ao chegar à sua porta não conheceu nem mais onde morava. Ficou muito doente. Embora seja bastante sugestiva não acredito que o medo seja a melhor forma de suscitar a experiência com o Sagrado. Bom mesmo é acreditar que Ele está em cada um de nós e em todos os lugares. Na dúvida, é melhor inclinarmos o nosso corpo e procurarmos ver o Deus em que acreditamos na experiência religiosa do outro. Ou se quisermos dar um passo adiante, como diz a cantiga: ao encontrarmos os velhos no caminho, tomemos a benção, afinal ela multiplica os anos de vida de quem responde e de quem pede.

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.