sexta-feira, 13 de agosto de 2010

TURISMO ETNICO AFRO E CULINARIA


Como outras pessoas iniciadas no candomblé, não estou ainda muito bem familiarizado com a expressão “turismo étnico afro”. Termo que embora já goze de prestígio entre alguns estudiosos de certas áreas, carece de entendimento para o chamado “ povo de santo”. O turismo étnico prevê a transformação de nossos terreiros em hotéis? Os candomblés serão obrigados a organizar festas para os turistas? Embora entenda que o turismo étnico afro não se reduza aos terreiros de candomblés, trago aqui esta experiência como exemplo, pois a nossa fala sobre a culinária será a partir deles. Ou melhor, é inegável o fato de que as comunidades terreiros foram capazes de reunir aspectos sociais, políticos, econômicos, religiosos e culturais fragmentados pela escravidão expressos através da dança, culinária, da música e outras expressões. Estas e outras perguntas estão sem respostas para o povo de candomblé. Ou ainda: Quais os benefícios que o turismo étnico afro trará para os terreiros de candomblé? Terreiros que agonizam na cidade mais negra da diáspora pela falta de compromisso dos poderes públicos que faz questões como a regularização fundiária e isenção do IPTU se arrastarem durante anos sem nenhuma definição. Enquanto isso estas comunidades enfrentam a especulação imobiliária que não tendo mais para onde empurrá-las, vai reduzindo a reserva de mata atlântica que algumas destas comunidades conseguiram preservar. E a economia dos terreiros? Outro ponto que deve ser estudado. E o racismo e a intolerância religiosa que nos atingem? Em que o turismo étnico afro nos ajudará? Ou melhor, como a partir do fortalecimento do turismo étnico podemos propor medidas de enfrentamento de algumas dessas questões? Como os programas de incentivo ao turismo étnico afro ajudará a preservação do maior patrimônio vivo das comunidades terreiros: os velhos? Oxalá alguns desses temas possam está sendo debatidos no I Seminário de Turismo Étnico Afro. Se não, que fiquem agendados, como por exemplo, um seminário como este de três dias com o povo de santo para saber o que acham de tal proposta, como a vêem etc. Será que os nossos orixás não precisam ser consultados?

Com essa fala inicial não estou querendo abortar uma iniciativa que mais do que fortalecer ao Turismo, pode ser muito boa para o povo de candomblé. Confesso, todavia, que ainda não sei qual será a maior contribuição do turismo afro étnico para nossas comunidades terreiros diante de algumas questões levantadas anteriormente. Mas como descendente de africano, acredito que será bom para todos nós. Ou alguma vantagem trará para as religiões dos orixás. Quem sabe não teremos guias de turismo mais esclarecidos? Essa sempre foi uma demanda do povo de candomblé. Há agências de turismo indignas de nota, que incluem as nossas celebrações e transformam o nosso calendário litúrgico em passeios, juntam-se a isso, guias sem nenhuma formação que distorcem todo o nosso ritual. Assim, alguns de nossos Orixás transformam-se em diabo, outros em santos católicos. Isso não permite ao nosso visitante distinguir uma festa de candomblé de um show folclórico. Daí os constantes constrangimentos em terreiros que não permitem filmagem e fotografias dos rituais ou mesmo o aborrecimento de nossos visitantes por acharem que pagaram pelo assento como no teatro e alguém lhe tomou a frente. O resultado é o pior possível. Nossos visitantes retornam para os hotéis sempre após as 22 horas, horário que chega o microônibus. No barracão de nossos terreiros ficam apenas as garrafinhas de suco de laranja e os guardanapos que enrolaram o sanduíche. Que tal os órgãos de Turismo capacitar os nossos filhos de santo para falar as línguas de nossos visitantes? Afinal, ao lado da língua ritual, é bonito ver um filho ou filha de santo falando italiano, inglês, francês, espanhol, alemão. Seria tão bom se pudéssemos recepcionar os nossos visitantes. Falar sobre os orixás na língua do estrangeiro. Isso mais do que uma sugestão é uma reinvidicação. Talvez essa possa ser a maior contribuição dos Programas de incentivo ao Turismo Etnico Afro às comunidades terreiros. O turismo étnico afro pode nos ajudar a sermos interlocutores de nossas próprias histórias.

A partir da idéia de que o turismo étnico suscita através do contato com o outro, experiências da diversidade, mas ao mesmo tempo, fornece elementos para construção de uma identidade, gostaria de afirmar que essa realidade não é uma novidade para os povos africanos e nós seus descendentes. A novidade está no fato de que somente não muito distante de nós, começou-se observar essa modalidade de turismo. Que bom, pois isso nos dar visibilidade, ao mesmo tempo que reconhece a capacidade de nossas matrizes negro-africanas produzir imagens positivas sobre a maior população fora do seu pais de origem. E mais ainda, que esta experiência pode ser feita por qualquer pessoa, pois assim entendemos a etnicidade, algo em movimento, um coletivo vivido em particular por cada individuo a partir de sua experiência histórica e história de vida. Assim, o turismo étnico afro não somente nos abre para a humanidade, mas abre a humanidade, entendida como o modo como produzimos, rezamos, representamos o mundo, plantamos, para o mundo. Peço desculpas se nesta fala inicial esteja repetindo questões que aqui já foram explanadas, confesso que elas servem mesmo para mim situar num tema ainda espinhoso para os cientistas sociais: a identidade. Pela brevidade do tempo não vou entrar em tal questão, mas gostaria de assinalar que na contemporaneidade, tal expressão também tem se modificado, ganhado novos contornos.

Quero agora, para não fugir de meu estilo, evocar um mito africano que nos ajuda a pensar nisso que estamos falando. A história de um rei chamado Sobô que visitando as terras vizinhas, governadas por outro rei chamado Dan, gostou tanto do que viu que ao chegar a hora de partir, pediu para o hospedeiro para ficar mais um pouco. O mito diz que Sobô trouxe consigo muitas famílias que passaram anos nas terras de Dan, aprenderam a sua língua, seus costumes, a reverenciar seus antepassados e vice versa. Até que um dia Sobô retornou ao seu reino, trazendo consigo a experiência dos povos vizinhos.

Esse mito mantido por algumas comunidades terreiros nos ajuda a pensar na abertura para novas experiências que os povos africanos sempre tiveram. Basta olharmos as religiões de matriz africana reorganizada por nossos antepassados. Para que melhor exemplo de experiência de turismo étnico afro? Os terreiros de candomblé são verdadeiras experienciais multiculturais. Eles formam uma espécie de teia que foi capaz de somar experiências étnicas culturais provenientes do Continente Africano, além de junta-las a outras aqui encontradas como a ameríndia ou recém chegadas como a portuguesas, a cultura trazida pelos povos judeus, ciganos, mouros e tantos outros. Como não sou especialista em turismo étnico afro, apenas acredito que isso não seja uma experiência nova, vou ficar por aqui. Espero que o debate suscite algumas questões.

Vamos agora falar sobre a culinária, tema que sou admirador e especialista, ao mesmo tempo em que nos últimos anos tornei-me questionador. Em finais do século XIX quando Raimundo Nina Rodrigues precursor dos estudos sobre o negro, dentre nós, a menos para as Ciênciais Sociais, debruçou-se sobre os de comer de origem africana na cidade de Salvador, mesmo de forma diluída em seu trabalho, ele estava apontando luzes para entender a comida e o comer, temas que nos últimos anos vem gozando de prestigio, como algo capaz de revelar a identidade de um grupo. Afinal, como se afirma nos dias atuais. Comemos não apenas ingredientes, mas símbolos. Demonstrar isso é um dos meus objetivos na Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia a quem me vinculei recentemente. Impregnado de preconceitos, Nina Rodrigues acreditou que pouco havia restado dos grupos étnicos que participaram da elaboração dos de comer africanos no Brasil haja vista a inexistência de seus nomes nos pratos, salvo o arroz de haussá. Coube sem dúvidas a Manoel Querino não apenas registrar, mas refletir sobre o que sabiamente chamou: “dos alimentos puramente africanos”, descritos de forma sucinta e discreta; “do sistema alimentar da Bahia”, entendido como “os de comer” cotidiano da cidade de Salvador. Nos primeiros, Querino incluiu as comidas rituais e no segundo o que chamou de modificação que conferia cores, sabores e singularidade à “cozinha bahiana”. Cozinhas que já haviam se impregnado não apenas com o azeite de dendê e as pimentas, mas com sentimentos de pertença reconstruídos o tempo todo. Fato é que desde cedo os de comer de origem africana, ou “transformados em africanos” fizeram-se presente nas ruas de cidades como Salvador, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Porto Alegre. Acredito quer bem antes da organização das religiões trazidas pelos africanos como culto. Com isso já estou introduzindo um tema que tenho debatido muito nos últimos anos: a confusão gerada entre “comida afro-brasileira”, chamada de comida de azeite e a comida ritual, ou comida dos orixás.

Já até tornou-se um clichê a afirmação de que a origem da culinária afro-baiana, por exemplo, é uma espécie de secularização da comida sagrada, servida aos orixás em dias especiais. Tal confusão pode ter sido influenciada por uma observação de Arthur Ramos na década de 30 ao insistir que diante das modificações dessa culinária de origem africana, era nos terreiros de candomblé que ainda se podia comer certas iguarias na forma mais original. Acertadamente Arthur Ramos estava chamando a atenção para o fato de que nos terreiros de candomblé, a comida dos orixás é elaborada observando alguns cuidados, chamados de preceitos e isso ajudaria na manutenção do patrimônio negro africano reinventado no Brasil. Isso não justifica a confusão entre a “culinária baiana” e as comidas de orixás. Nem muito menos a afirmação de que os pratos que compõe a chamada cozinha baiana tem origem na cozinha dos orixás, chegando em alguns momentos a confundirem-se. As comidas dos orixás são mais elaboradas e a sua confecção é acompanhada pelas palavras de encantamento. É isso que a difere de qualquer outra. Essa concepção suscita até um alívio para os ramos do turismo e hotelaria, por não estarem entrando no terreno minado das religiões.

Certa ocasião fui questionado por uma jovem jornalista sobre a relação que existia entre o akarajé vendido pelas baianas e o akarajé de Yansã. Seus olhos saltaram quando afirmei que não existe relação nenhuma. Primeiro, porque Yansã não come akarajé, mas akará, bem diferente dos hambúrgueres que encontramos na cidade de Salvador acompanhado com o refrigerante de cola, jé é o verbo comer, expliquei. A jovem, todavia insistiu: “mais antigamente não era uma comida vendida apenas pelas filhas do orixá Oyá?” Lhe desapontei mais uma vez, dizendo-lhe que para mim, antigamente é uma temporalidade que não conheço, depois conforme as informações do Professor de grego Vilhena no final do século XVIII, africanos e africanas vendiam akará, lelê, abará, ekó, ekuru, mungunzá, efó, aberém, mocotó e outras iguarias, ao lado de bebidas como o aluá. Fato é que o akarajé ganhou a concorrência dentre as “comidas de rua”. Na moda, foi eleita a comida para representar a baianidade, outra construção problemática. Embora não possamos deixar de mencionar a sacralidade do mercado e da arte de mercar que não foi inventada pelos africanos. Para compreendermos isso basta prestarmos atenção à bolsa de valores, ela é imprevisível. Mesmo assim realcei que acumular capital ainda hoje continua sendo um dos maiores desafios para as comunidades terreiros e seus iniciados. É mais provável que os filhos de alguns orixás ligados ao azeite de dendê tivessem mais “cabeça de venda” para comercializar certas iguarias, o que não é uma regra, como nada é regra geral no candomblé. Eu mesmo conheci na cidade de Cachoeira, uma senhora já falecida, filha de Oxalá que nunca abdicou de suas vestes brancas, que construiu a sua família, formou todos os seus filhos vendendo acarajé. O que se precisa ter é “cabeça de venda”, em outras palavras, sair para a rua e voltar com dinheiro para casa. Como se diz na modernidade, ser empreendedor, fazer freguesia. Embora se tenha esquecido, o mesmo vale para os mingaus, iguarias que ainda hoje resistem nas ruas, contrariando o discurso “higienista”. Verdade é que, africanos e africanas e hoje seus descendentes mercaram tudo que podiam, pois disso dependia a sua economia, a sua sobrevivência, a formação de seus filhos(as), o custeio de um ritual que se pagava durante anos. Verdade é que quando isso é realizado, estes momentos são atravessados de sacralidade, onde o sistema de troca tradicional é alternado pelo inspirado nos universos africanos. Mais aqui na cidade de Salvador temos outro debate: o de quem pode vender akarajé? Debate iniciado nos anos noventa ante a presença de alguns tabuleiros de homens, retomado nos últimos anos ante a emergência do akarajé de Jesus, a proliferação de fast-food e a venda do akarajé por algumas delicatesse. Eu particularmente acho que qualquer pessoa e estabelecimento pode comercializar o que quiser e desconstruída a mentira de que só quem pode vender akarajé é gente de candomblé, não estou dizendo nenhuma heresia. A minha reação é ao acarajé de Jesus; não por não serem saborosos; ao contrário, mas por ser cristão, por afirmar-se desconstruindo a minha identidade negro-africana expressa na modificação do tabuleiro, no abandono do traje da baiana e de outros símbolos que remetem ao passadio africano.


Não estou certo que a afirmação de Arthur Ramos sobre a preservação de algumas técnicas culinárias observadas para a elaboração das comidas rituais continue valendo na atualidade quando o próprio conceito de comida passa por uma redefinição dentro dos terreiros que aos poucos vão substituindo as comidas de azeite pelas chamadas “comidas de branco” que antes ficavam restritas apenas ao dia a dia ou a ocasiões especiais. Não obstante o bom gosto e requinte que estas comidas são apresentadas ao público, acompanham este fato, a reação de algumas pessoas contra as chamadas “comidas de azeite”; ora evocando que fazem mal, ou porque não gostam, sem nenhuma justificativa. Ainda bem que não surgiu a palavra saudável, outra expressão que está em moda. Isso acontece, sobretudo entre os mais jovens. Esse fato abre uma série de questionamentos. Na maioria das vezes, as comidas de azeite ficam restritas aos orixás “que comem sozinhos”. Será que a popularidade das “comidas de azeite”, em dias como a sexta-feira, ou mesmo a presença dos restaurantes de “comidas típicas” explicaria o abandono do gosto pelas comidas votivas nos terreiro? Lembro que algumas dessas comidas chamadas baianas eram reservadas à ocasiões especiais como aniversário, por exemplo. Com o tempo foram desaparecendo, tornado-se inicialmente “comidas de pobre” e depois comidas que fazem mal por conta de problemas ou outras “doenças que estão na moda” e que por isso devemos evitá-las antes mesmo de passarmos pelos profissionais de saúde que decidem o que devemos comer, a quantidade e a hora. Refletir sobre este aspecto é interessante pois abre discussões pertinentes a preservação do universo afro-brasileiro legado por homens e mulheres que desafiando o seu tempo deram respostas a partir de suas tradições às situações desafios que foram expostas. Isso não significa dizer que entendemos a tradição como algo imutável, ao contrário, a recriação em alguns momentos se dá, não para recompor algo fragmentado, mas exibir prestígio. Depois do “desaparecimento da pedra de ralar”, sua substituição pelo moinho que depois foi motorizado, seguido do liquidificador e do multiprocessador capaz de conferir as massas diferentes texturas, assistimos por exemplo, algumas comidas rituais serem feitas a partir do refinamento de grãos, disponibilizados pelas indústrias de alimentos, a mesma que deu origem ao xarope de milho, um tipo de açúcar que o nosso organismo não é capaz de dissolver, gerando entre outras doenças o diabete melittus tipo II. E quando as comidas de azeite ceder de uma vez por todas dentro dos terreiros o seu lugar a culinária japonesa, italiana, francesa, mediterrânea, mexicana, o que teremos para mostrar aos nossos visitantes? Estas e outras questões os Programas de incentivo e fortalecimento do turismo étnico afro pode fornecer subsídios para enfrentá-lo. Que bom se a BAHIATURSA pudesse encabeçar esse movimento, não para nos privilegiar como homens e mulheres religiosos, mas descendentes de homens e mulheres que tiveram histórias interrompidas pela escravidão, mas que foram capazes de reconstruir estes mundos na diáspora. Afinal, comida é patrimônio. Ela como os símbolos sagrados, parafraseando o antropólogo Cliford Geertz, é capaz de realizar uma síntese entre o ethos de um povo e sua visão de mundo. Talvez essa concepção seja o maior legado de nós descendentes dos povos africanos para o Mundo e que bom que agora o turismo resolveu nos privilegiar.

2 comentários:

  1. Afinal, comida é patrimônio. Ela como os símbolos sagrados, parafraseando o antropólogo Cliford Geertz, é capaz de realizar uma síntese entre o ethos de um povo e sua visão de mundo. Talvez essa concepção seja o maior legado de nós descendentes dos povos africanos para o Mundo e que bom que agora o turismo resolveu nos privilegiar.

    Cada vez mais sua seguidora!
    Esta finalização do seu texto me dá a certeza da minha paixão por comida, não só como alimento x nutrição, mas, como expressão cultural individual e coletiva.

    Abçs.
    Linda

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  2. Prof. Vilson, sou turismóloga e estou envolvida em um projeto de Turismo Étnico Afro no Estado da Bahia. Gostaria de saber se existe a possibilidade de eu entrar em contato com o Sr. para falar mais detalhadamente acerca deste projeto, e, dependendo da sua disponibilidade, seria uma honra para tê-lo como convidado do nosso seminário.

    Um forte abraço,

    Alessandra

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.