quarta-feira, 25 de agosto de 2010

AINDA SOBRE OS VELHOS(AS), O POVO DO MINGAU


Ao lado de algumas iguarias que ganharam prestígio e fama, projetando-se no cenário brasileiro como símbolos de identidade, estão os “tímidos” mingaus. Tímidos pela forma de apresentação conservada até hoje, não variando nas cores e sabores. Razão pela qual recai sobre estes uma espécie de silêncio. É como se eles não existissem ou não fizessem parte da “economia da cidade”. Não continuassem produzindo o sustento de uma população que as cinco horas da manhã já esta labutando. Acredito que das comidas de rua, também chamadas “comidas de tabuleiro”, os mingaus foram os que menos se modificaram. Desta maneira, ainda hoje tanto a arrumação do tabuleiro, quanto a forma de servi-lo continua a mesma dos finais do século XIX. A modificação mais significativa foi a substituição dos papéis de embrulho coloridos, chamados “papel caderno”, que eram recortados e ficavam semelhantes a rendas, por toalhas alvas, através das quais acredita-se transmitir idéias de “higiene” e “limpeza”, atributos por excelência do “discurso higienista” das cidades inventadas no século XIX. Ainda hoje encontramos estas toalhas cobrindo os tabuleiros, verdadeiros altares onde na maioria das vezes, as panelas são literalmente “vestidas”, como se costuma dizer, a semelhança do que acontece nos terreiros de candomblé onde as mesmas recebem saias, panos e laços, representando o próprio sagrado. Não podemos esquecer que as panelas chamadas igbá, como tudo que é redondo representam o mundo. Há quem diga que moramos dentro de uma panela. Ela representa a cabeça e a cabeça representa o corpo todo. Sabiamente africanos e africanas guardaram seus ancestrais dentro de panelas, terrinas, gamelas, pratos, cabaças, utensílios indispensáveis na cozinha. Desta maneira, é provável que uma das motivações que levou a humanidade inventá-la foi para manter próximos seus antepassados e ancestrais. Nas panelas que compõem o tabuleiro estão os mingaus, uma das comidas mais simples e menos elaborada que a humanidade desenvolveu. Isso não significa que sejam menos complexas, mas refletem histórias de grupos nômades e seminômades, povos que estavam sempre a caminho. Os mingaus refletem histórias de caçadores, guerreiros, comunidades anteriores ao desenvolvimento da agricultura e ao surgimento da domesticação de algumas plantas. Nos tabuleiros, o branco das toalhas confundem-se com a cor prata do alumínio das panelas e suas tampas. Ali estão o mugunzá, o mingau de puba, também chamado mingau de carimã, o mingau de milho e o mingau de tapioca. Em algumas ocasiões pode-se encontrar ainda um mingau chamado de lelê, feito de arroz. Acredita-se nos terreiros que estas iguarias remete-nos aos primórdios das civilizações, quando a humanidade ainda não possuía uma comida mais elaborada, mas alimentava-se de farinhas e papas. Farinhas na maioria das vezes conduzidas como único mantimento, salvo as pressas, daí o apelido: “farinha de guerra”. Desta maneira, “não deixar faltar a farinha”, significava resistir, sobreviver, garantir o sustento, manter-se vivo durante a jornada. Não teria sido esta a função cumprida pelos mingaus quando estes foram para a rua? E hoje, não é ainda esta a função que estes cumprem em algumas cidades brasileiras? Afinal, mingau é comida considerada forte. Mingau serve para fechar o corpo. Acredita-se que mingau cura algumas doenças. Mingau literalmente sustenta o corpo. É comida que através do amido dar energia, conferindo força a exaustivas horas de trabalho. Nas ruas os mingaus não resistem mais do que seis horas, salvo alguns que passaram a circular nos últimos anos em carrinhos que exibem a identidade de 100% negro. Nos terreiros de candomblé, os mingaus são iguarias consagradas aos “ancestrais velhos”, aqueles que agrupam as famílias que saíram para povoar os quatro cantos do mundo. Há até algumas casas que organizam a festa dos mingaus, comida que acompanha todos os rituais de nascimento. Mingau é assim considerado comida/bebida que faz memória aos velhos como Oxalá e Nanã, o remédio que cura. Dois princípios que significam o universo indiferenciado. Dois ancestrais representados por uma espécie de cedro, cajado ritual. O primeiro, chamado de opaxorô é uma síntese do mundo visível e invisível. O segundo, chamado de ibiri, possui o mesmo significado. O ibiri através do entrelaçamento das nervuras das folhas do dendezeiro que se torcem sem partir faz menção ao eterno renascimento garantido quando nós homens e mulheres negras nos voltamos para a nossa ancestralidade, na certeza que somente ela, como os grãos e raízes garantirá a nossa presença dentro desse grande panela que é o mundo. Sirva-se.

Um comentário:

  1. Vilso, você parece o cara certo para responder a minha pergunta. Eu estou escrevendo um livro sobre culinária brasileira e estou engasgado no seguinte fato. O milho branco do mugunza vem da America Central. Como será que ele foi parar no Candomblé? É um substituto para alguma comida africana? Um adaptação nacional?

    Espero que você possa me dar uma luz.

    Um abraço,
    Nando

    ResponderExcluir

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.