terça-feira, 7 de junho de 2011

O MUNDO NA PALMA DAS MÃOS

Na semana passada iniciamos uma conversa sobre o corpo nas religiões de matriz africana. Lembramos a sua noção como “instrumento” e algo que deve ser visto na sua totalidade, além de concepções sobre “limpeza” e “sujeira” que envolvem o corpo. Hoje vamos nos ocupar das mãos. Para compreendermos isto, temos antes que retomar a idéia de que o corpo não apenas é uma espécie de “réplica” da sociedade, mas também “um deslocamento de matérias ancestrais”. Desta maneira, cada um de nós traz a marca de nossos antepassados. Daí se dizer que o nosso lado esquerdo corresponde à nossas mães e o lado direito à nossos pais. Dentro desta visão de totalidade de mundo porque somos corpo, situam-se as mãos que em algumas ocasiões especiais podem significar juntamente com os pés o corpo todo. Por isso, as mãos gozam de prestígio dentro das religiões de matriz africana e recebem culto especial. Logo pode-se entender a expressão que diz: tudo nestas religiões inicia-se através das mãos. Mãos dos sacerdotes e sacerdotisas que após a invocação dos orixás arremessam os búzios a fim de revelar ao consulente a “vontade dos orixás”. Mãos que são estendidas o tempo todo pelos iniciados pedindo a benção dos mais velhos, que em algumas tradições as acenam da direita para a esquerda, “respondendo” o pedido. Mãos que são beijadas o tempo todo, trocando gentilezas ou expressando um dos maiores conceitos das religiões afro-brasileiras: o presente, “algo que deve ser retribuído”, garantindo o equilíbrio das relações. Afinal, como se ouve dizer: “é dando que se recebe.” Ou ainda “ninguém é tão pobre que não tenha o que dar e ninguém é tão rico que não venha precisar.” Daí a importância de doar e receber com as duas mãos. Como a cabeça que significa o corpo todo, as mãos, recebe culto particular que visa garantir as suas funções ou antes, lembrar aos iniciados a sua importância. Bastante ilustrativa a imagem do criador como oleiro, “aquele cujas as mãos é seu principal instrumento.” São nas mãos abertas que as comidas dedicadas aos orixás são colocadas e não podemos esquecer que bem distante de nós, civilizações milenares observando atentamente as linhas de nossas mãos nos legaram conhecimentos que afirmaram ser estas linhas espécies de sínteses de histórias individuais. Talvez por elas assemelhar-se aos caminhos que se entrecruzam na encruzilhada, outro conceito de vital importância para os universos afro-brasileiros. Caminhos que nos permitem refletir sobre a diversidade de saberes dispersos no mundo, ou se assim preferirmos, diversidade de conhecimentos presentes em cada indivíduo de forma particular. É um pouco dessa concepção que o nosso trabalho intitulado: Na palma da minha mão, temas afro-brasileiros e questões contemporâneas, que será lançado no próximo dia 9 de junho na Biblioteca Pública dos Barris tenta enfrentar. Trata-se de reflexões em sua maioria apresentadas nesta coluna que abordam temas relacionados às religiões de matriz africana, atentando-se para o valor de cada pessoa como responsável pela produção do conhecimento. Daí a imagem das mãos que hoje nos ocupamos. A novidade do trabalho está nas ilustrações. No trabalho do artista Rodrigo Siqueira que “diviniza”o texto através do desenho, uma das formas mais antigas de traduzir algo. Através das mãos do artista, das linhas tracejadas por este e das cores misturadas sobre a tela, o mundo vai ganhando sentido através de uma linguagem que durante tempo ficou de fora das “concepções tradicionais de produção de saber e conhecimento.” Desta maneira, a riqueza do livro assenta-se não no trabalho escrito, mas nas ilustrações que -rememorando o mito primordial que diz que no inicio do mundo o orixá Oxun, a mesma que combinou os sons, inventando a música, atribuiu cores às coisas, através das mãos, transformou o mundo numa grande tela, através de suas linhas- nos presenteia com uma exposição de óleo sobre telas intitulada: Na palma de minha mão, chamando a atenção para a necessidade de descobrirmos em nós mesmos o ponto de partida de trajetórias que nos conduzirão a diversos caminhos. E este inicio pode estar nas nossas mãos; se não, ao seu alcance.

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.