Não obstante o sentimento cívico que envolve o Estado da Bahia, particularmente em cidades como Salvador, do Recôncavo Baiano e do Baixo Sul, a data do 2 de julho, comemorada no sábado passado é mesmo consagrada ao Caboco. Resolvemos privilegiar essa expressão porque é ela que aparece no cotidiano das comunidades terreiros. Este fato me traz à memória uma ocasião em que fui “corrigido” por um de meus informantes numa de minhas idas a campo. Ao questioná-lo sobre onde haveria festa de caboclo, o mesmo me respondeu: “não é caboclo, mas caboco”. Ele nunca me explicou o significado do segundo nome, mas me definiu o que seria o primeiro, afirmando enfaticamente: não é caboclo, mas caboco. Caboco é o índio do candomblé. O apelo desse informante no mínimo nos ajuda refletir sobre a natureza de nossos sujeitos, homens e mulheres que possuem também seus conceitos e visões de mundo, ao mesmo tempo em que nos convida a pensar sobre as relações entre o índio e as religiões de matriz africana, fato que ainda está para ser melhor compreendido pelos estudos afro-brasileiros, longe dos estereótipos que a partir dos anos 90 reduziu a presença do “índio do candomblé”, como uma espécie de releitura africana das tradições indígenas, ou ainda algo que a fim de legitimar uma africanidade deveria ser expurgado para o mundo do faz de conta e da dissimulação. Esse pensamento orientou a maioria dos estudos afro-brasileiros realizados a partir de finais do século XIX. No entender de alguns autores, a presença do caboco em algumas tradições religiosas corrompia o conceito de tradição acabado de ser reinventado nesse período. Todavia, o índio se faz presente em todos os modelos reorganizados no Brasil, as vezes de forma mais contundente, outras de forma mais discreta, mas estão lá, chamando, sobretudo a atenção para relações que deste cedo africanos e povos indígenas estabeleceram diante de questões históricas semelhantes as quais foram expostos. Gosto muito de uma música entoada pelos cabocos que diz: “irmão, irmão meu, tem dó de mim, tem dó de eu.” Esta canção nos permite pensar, dentre outras coisas, mesmo com “ possíveis estranhamentos” desses grupos, ao menos que africanos e povos indígenas em algumas ocasiões foram obrigados a construir relações de solidariedade. Não estamos ignorando o fato de que algumas pessoas podem achar algumas de nossas afirmações ingênuas. Na verdade elas servem mesmo para chamar a atenção para a capacidade de articulação de sujeitos históricos sobre os quais recaíram preconceitos de que não foram capazes de lutar pela sua liberdade. Vejamos algumas possibilidades de encontros. Povos indígenas e africanos partilhavam a “espiritualidade da terra”. Como muitas civilizações antigas, a terra era mais do que o sustento de seus pés e fonte de sobrevivência. Ela sustentava o céu e era reverenciada como grande genitora de onde saíram as primeiras famílias. E o saber da medicina? Outro lugar de encontro. Um saber mágico religioso baseado em noções complexas sobre o corpo e um elaborado sistema de classificação de plantas. Exemplo disso pode ser encontrado nos “rituais de curas” espalhados por todo Brasil, batizados ora como afro, ora como indígena. Palavras emprestadas dos povos indígenas desde cedo circularam nos modelos afro-brasileiros reorganizados pelos africanos e seus descendentes. E a comida ritual dos terreiros? Outro exemplo dessa relação onde desde cedo, os povos indígenas forneceram elementos como alguns tipos de feijão, o milho (Zea Mays) de todas as cores e a mandioca, sem falar em algumas técnicas incorporadas pela “cozinha dos orixás.” E as visões de mundo diversas? Outro lugar de encontro, a exemplo de conceitos como o de “encantado,” chamado em algumas ocasiões como “um vento”, algo que não consegue ser definido. Encantar-se é modificar-se, é poder aparecer, mostrar-se de outra forma, ao mesmo tempo esconder-se. Encantar-se é ter poder. Encantar-se é encher-se de Divino. Alguns terreiros estão cheios de histórias de tios e tias que se transformavam em pássaros ou apareciam em vários lugares ao mesmo tempo. Tupinambá, Ubirajara, Pena Branca, Rompe Mato, Jurema, Flecheiro, Gentil, Boiadeiro, Rei das ervas, Jaguaraci, o desaparecido caboco Eru são alguns nomes que persistem na memória dos terreiros, tratados de senhor, ao lado de caboclas como Jussara e Jurema, “confundida” ora com um pássaro, ora com a árvore de onde se extrai a bebida do encantamento. Jurema em alguns locais emprestou seu nome para designar alguns modelos religiosos. Como não mencionarmos neste texto cabocos que deram nomes a seus filhos como Sr. Jubiabá, Neive Branca, ou ainda que ficaram imortalizados em seus sacerdotes como Sr. Pedra Pedra, caboco do saudoso Joãozinho da Goméia? Como não falar do caboco da Iyalorixá Olga do Alaketu? Junta-se a isso imagens como a de Baba Iaô que aparece ao raiar do dia nos terreiros de Egungum. Como explicar a presença dessa figura num modelo reconhecidamente “africano”? Apenas como um índio do candomblé, semelhante à aparição de alguns orixás em alguns terreiros “vestidos de índio”. Mais do que “o dono da terra”, o índio do candomblé pode nos ajudar refletir sobre a capacidade que estes grupos tiveram de dialogar entre si, valorizando o que tinham de mais importante, a diversidade cultural e os múltiplos universos. No mais, estes encontros aconteceram observando mesmo relações de “camaradagem”, outro conceito fundamental para compreendermos esses diálogos. Isso ajuda explicar a expressão que diz: onde os africanos tiravam os pés, o índio colocava o dele. Xeturá!!!!!