domingo, 19 de dezembro de 2010

CANDOMBLE E HUMANIDADE



Desde o final do mês de outubro, circula entre as diversas mídias a notícia de uma violência ocorrida contra a comunidade do Assentamento Dom Helder Câmara situado no extremo sul do Estado. Confesso que de imediato me reservei a comentar o ocorrido e me mantive numa condição de ouvinte. Como não escutei nada de novo em se tratando de comentários sobre a ação da policia militar, ou sobre questões relacionadas aos orixás, resolvi apresentar algumas considerações. Duas suspeitas dividem a opinião das pessoas sobre o acontecimento do dia 23 de outubro. A primeira é sobre a atrocidade dos policiais e a segunda é sobre a hierofania (“a-presentação”) do orixá Oxossi. Quanto a primeira não temos muito a comentar porque as nossas corporações competem entre si para ver qual a mais cruel, se a mineira, a paulista, a carioca ou a baiana. Isso porque historicamente se estabeleceu uma relação entre poder, autoridade, prestigio e lugar na estratificada pirâmide social das corporações, onde o próprio policial torna-se vítima ao perseguir uma posição que nunca vai chegar e se alcançar jamais ocupara, continuando sendo o executor de ordens que primeiro bate, depois chuta e por fim atira, ou inverte estas ações. Atira, chuta e bate. Não obstante os elementos que estamos comentando, o fato ocorrido no Assentamento Dom Helder Câmara, apresenta cenas já bastante conhecidas por nós ao lado de outras imprevisíveis e até mesmo curiosidades. Como não atentar-se para a presença de um Jesus no assentamento? Obvio que não o nazareno, mas um acusado pela ironia do destino como um dos mais cruéis. Quanto a “cena” montada para demonstrar “força”, esta também é um velho cenário conhecido e fácil de ser montado, ultrapassando o campo das representações de indivíduos concebidos por uma civilização que se fascinou desde cedo pela dor e violência, transformadas em algumas teologias em algo que dignifica, ora purifica, ora eleve a humanidade. A Inquisição, os campos de concentração nazistas e as medidas punitivas foram inspiradas pela mesma motivação e vêem ao longo dos tempo dando fim a populações inteiras através do genocídio e da chacina. Quanto a utilização do formigueiro como prática de tortura, esta já é demasiadamente conhecida, se tratando especificamente da população negra e já foi até mesmo resignificada em algumas imagens como a que aparece no conto do negrinho do pastoreio. Também na história popular do negrinho do pastoreio, a função do formigueiro foi aumentar o castigo. Em algumas versões do negrinho do pastoreio, Nossa Senhora teria vindo em seu socorro. Em Ilhéus, “o abuso da autoridade”, confundida com atos de exorcismo foi interpelado pelo orixá Oxossi. Se não colocamos em dúvida a intervenção divina através dos missionários e ministros cristãos, ou ainda dos santos, anjos, sem falar na suposta presença do Espírito Santo, o que dificulta aceitar a possibilidade dessa intervenção através dos orixás? Talvez o fato de que esta acontece a partir do corpo, da humanidade. Desta maneira, o problema posto no assentamento invadido é de ordem humana. Tenho ouvido constantemente: Mas se esse tipo de manifestação tornar-se algo corriqueiro? Não vamos entrar no mérito dessa questão, embora ache que seria bom se os orixás se fizessem mais presentes entre nós. E será que eles já não estão? Podemos descobrir. Temos que nos ocupar não sobre a experiência religiosa, mas sobre as questões que envolvem a pessoa humana e as relações interpessoais. Não estou bem certo se o que provoca o sensacionalismo da mídia é o fato da pessoa envolvida fazer parte do povo do axé, ou junto a isso, a sua condição de Coordenadora de Educação num Assentamento que historicamente vem se destacando na luta pela implementação e discussão de políticas e ações que envolvem a apropriação da terra no Brasil. Como a sociedade vê as nossas lideranças negras? Os livros de Histórias silenciam sobre Felipa de Alcobaça, Maria Felipa e Zeferina, mulheres guerreiras que como Bernadete defenderam ideiais. Verdade é que a participação das mulheres nos espaços de decisões aumentam cada vez mais. Todavia, as práticas de coerção das mulheres é que continuaram as mesmas. Como nos séculos passados, ainda são julgadas como bruxas, feiticeiras ( vejamos que agora temos uma mãe de santo), são torturadas, tem seus cabelos puxados ( um dos componentes do ritual de exorcismo), seu pescoço pisado, enfim apontadas como “moradas do demônio”. Ainda escrevendo esse texto, sobre o meu ombro, um leitor apressado me perguntou: mas por que Oxossi apareceu? Respondi incisivamente: para superar a humilhação, a violência física, o escárnio, a vergonha, o dano psíquico e por fim para reafirmar que ele ainda continua sendo o dono da terra. Se isso não bastar que fiquemos então com a fala de uma das testemunhas: “Se Oxossi não tivesse lá, ela não ia agüentar”

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O DIA DO SOL NO ILE AXE MAROKETU


O culto ao sol é um dos mais antigos da humanidade. No Egito Antigo o Faraó era a personificação do sol. As culturas ameríndias também para este astro ergueram templos e compuseram cânticos. Em Roma, trazido de culturas antigas, o sol foi reverencia como o Deus Mitra, celebrado no dia 25 de dezembro, posteriormente incorporado pelo Cristianismo que passou a comemorar neste dia o nascimento de Jesus, considerado o “Grande Sol”. Nos cultos afro-brasileiros reorganizados a partir das religiões tradicionais africanas, embora possa aparecer de várias formas, Obaluaitê/Omolu é o sol, uma de suas representações pouco enfatizadas. A antropóloga Claude Lépine realizou uma pesquisa cuidadosa sobre os chamados orixás da terra ou a tríade: Obaluaiyê/Omolu/Nanan. Estes ancestrais agrupam famílias antigas, retratadas pelos objetos de seu culto. São estes ancestrais quem presidem o nascimento dos grãos, assim são eles quem quebram a “dormência das sementes” para que elas germinem. Entende-se por dormência o período entre o momento que elas caem na terra e começam a germinar. Acredita-se que graças ao calor da terra isso é possível. Obaluaiyê/Omolu/ Nanan, acolhe todos e grãos e mantém o ciclo da vida. Este é um dos motivos pelos quais a eles são oferecidos todas as sementes. Com as migrações e ocupações de suas terras, tal culto foi recebendo interferências e aos poucos, os donos da terra foram ganhando novas conotações, a exemplo de uma das que os acompanharam para o Brasil, a bexiga. Doença que mais fragilizou o Continente Africano e outras civilizações. Desta maneira, Obaluaiyê/Omolu/ Nanan, foram evocados por ocasião de pestes e calamidades como médicos(as). O professor Edison Carneiro num de seus trabalhos resume de forma breve a importância desses orixás para os negros, ao referir-se a eles como médicos dos pobres. E Nanan, a vacina, a que cuida, a que ampara, toma conta. Em alguns mitos Nanan aparece como princípio criador do mundo, a terra úmida, ato solene que fazemos para evocar os nossos ancestrais. Sem estes princípios nada acontece, nada se cria, ganha impulso vital. É sob a invocação do sol que Obaluaiyê/Omolu é reverenciado no Terreiro do Bonocô, atualmente conhecido como Ilê Axe Maroketu. O Ilê Axé Maroketu foi fundado em 1943 por Cecília Moreira de Brito após uma trajetória religiosa brilhante como médium espírita. Conhecida como Cecília da Liberdade, nome que fazia referencia ao bairro que ela morava, Cecília aparece descrita pelos pesquisadores que se ocuparam com as religiões de matriz africana na cidade de Salvador nas décadas de 30 e 40 como “uma grande vidente.” Cecília era mulher de poder, comando e prestígio. Era comerciante, abriu comércio com Maria de São Pedro e arrendou da Ordem dos Perdões um terreno de cinco tarefas próximo ao local onde se realizava o culto a um antepassado africano chamado Gunocô. Desde cedo Mãe Cecília estabeleceu relações com o povo de candomblé de seu tempo. Iniciou-se com uma senhora chamada Damiana Oxafalaquê a quem presenteou um terreno em frente à Antiga Fonte Nova, onde atualmente encontra-se uma residência tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico. Oxafalaquê era filha de Magebasã, africana, mãe de Martiniano Eliseu do Bonfim. Também ajudaram na solidificação do Terreiro do Bonocô, o Babalorixá Procópio de Ogun, membros da família Bangboxe, especialmente Mãe Caetana, que mantinha com Cecília relações de amizade e Nezinho do Portão, fundador do Terreiro Ibecê Alaketu na cidade de Muritiba. Foi Pai Nezinho quem trouxe o nome Maroketu. Na placa comemorativa aos 60 anos do Terreiro pode-se ler uma placa ditada pelo próprio dono da casa que diz: Foi em 14 de julho de 1941, num dia de terça feira, as cinco horas da manhã o dia que ele chegou. Era dia do solstício, nessa data o Orum, o sol em língua ioruba brilhava mais forte. Em 1943 foi inaugurado o Terreiro, também consagrado ao dono do fogo, Xangô. Era Natal. Durante muitos anos, a festa dedicada a Obaluaiyê/Omolu no Ilê Axe Maroketu foi celebrada no dia de Natal, dia do sol. As mudanças ocorridas na cidade obrigaram a comunidade a antecipá-la. Sucedeu o Ile Axe Maroketu, Iyá Joselina, filha consangüínea de Mãe Cecília. Tia Joselina era de Oxalá e iniciou muitos barcos. Após a sua morte, o axé foi liderado por Archanja Moreira de Brito, Iyá Pastora de Yemanjá, sua irmã consangüínea e atualmente uma das Yás mais lembradas pelos filhos(as) do Ilê Axe Moroketu pela doçura e determinação. Mãe Pastora, preocupada com a salvaguarda de sua tradição, como muitas lideranças religiosas do candomblé baiano, registrou elementos significativos de sua religião em cadernos que hoje constituem um dos maiores legados para o patrimônio cultural afro-brasileiro. Ao falecer, Yia Pastora deixou no comando, a sua filha, Cecília Conceição Moreira Soares, como sua avó, também consagrada aos “donos da terra”. Nos últimos anos, Iyá Cecília com carisma e dinamismo vem imprimindo a sua marca e solidificando o que não se cansa de chamar “tradição Maroketu”. Ela tem contado com o carinho e apoio do Babalorixá Air José, descendente da família Bangboxe, fundador do terreiro Ilê Odô Ogê no bairro da Boca do Rio. Pai Air é filho de Oxoguian e no próximo ano, a sua casa completa cinqüenta anos. Resultado do empenho de Iyá Cecília foi a certificação desta comunidade como Patrimônio do Brasil conforme Decreto 3551 de 4 de agosto de 2000 no ano de 2006 e posteriormente a inclusão do terreiro como patrimônio da cidade de Salvador. O Ilê Axe Maroketu enfrenta problemas semelhantes à maioria das casas de candomblé da cidade de Salvador que lutam para sobreviver à grilagem urbana, à especulação imobiliária, a violência e intolerância religiosa. Junta-se a isso a urbanização que aconteceu na íngreme ladeira na qual está situado o terreiro, realizada entre os anos 70 e 80 que o colocou em risco ao deslocá-lo para abaixo da rua, sem falar da encosta que circunda a roça de candomblé, ameaça constante, que não conta com a sensibilização dos órgãos públicos, mesmo após constantes solicitações de contenção e realização de vistorias. Não obstante estes fatos, a comunidade do Maroketu, continua viva, preservando as suas tradições na ladeira Antônio Viana, que poderia muito bem se chamar Cecília Brito, ou ladeira do sol. No próximo sábado de dezembro, relembrando o dia em que Obaluaiyê/Omolu chegou nesta casa, o Ilê Axe Maroketu abre mais uma vez as suas portas para receber todos aqueles que querem abrigar-se sob o sol, pedindo proteção para as suas vidas.

O CANDOMBLÉ E A FESTA DAS FRUTAS


Há tempos atrás, quando a cidade de Salvador era um pomar, no mês de dezembro por ocasião da festa de nossa Senhora da Conceição da Praia, realizada no dia 8 de dezembro, acontecia a festa das frutas. A festa das frutas ou como se dizia, a festa das frutas do ano (manga, lima, limão, figos e outras) é uma permanência no Novo Mundo de rituais antigos que celebra os ancestrais através do oferecimento dos primeiros frutos da terra. A festa das primícias é uma espécie de agradecimento aos antepassados, assim se acreditava que o consumo destas antes do dia 8 de dezembro “fazia mal.” As civilizações africanas desde os primórdios realizaram festas para de sacralizarem os frutos da terra, ou melhor, para colocarem o presente dos ancestrais num nível que pudesse ser tocado pelos seres humanos, a partir da concepção de que tudo que sai da terra pertence a esta e é tão sagrada quanto a mesma. Nas religiões de matriz africana, as frutas especialmente estão ligadas às Iyabás, pois como estas, são verdadeiros ventres que guardam as sementes. Nos terreiros de candomblé de tradição jeje nagô estes princípios ancestrais ligados à terra, aos rios, às cachoeiras, às matas, ao mar, aos ventos, são representadas como mulheres guerreiras, caçadoras, comerciantes, médicas e artistas. Afirma-se também que elas estão por toda a parte, no céu como a lua e as estrelas, no mar encantada em qualquer peixe, sobre a terra em todos os seres vivos e no ar, movimentando-se como o beija flor, a borboleta, as abelhas ou qualquer pássaro, um de seus símbolos por excelência. De acordo com algumas histórias preservadas nas comunidades terreiros, estão sempre se transformando em pássaros. O poder de transformar-se ou encantar-se é outra característica das Yiabás. Iyemanjá mesmo, a mãe dos orixás encanta-se como qualquer peixe. Ela teria se transformado num rio a fim de vencer uma montanha que se colocou como obstáculo no seu caminho. Oyá também se encanta ora num leopardo, ora num búfalo. E como não lembrar de Oxun, a Iyabá que “vestiu de planta”? E Ewá, a caçadora que tem o poder de ficar invisível. Assim, as Iyabás estão presentes em toda a nossa vida. Elas presidem todos os ritos de passagem, assim elas acompanham desde o nascimento à morte. Até mesmo aquelas sobre as quais pouco se fala como a velha Opaoká, cultuada nas centenárias jaqueiras, Agê Xalunga, a que preside o comércio, Obá , guardiã de todas a mulheres e Nanan, a mãe criadora e principio da transformação. Não obstante estes elementos que apresentamos, o símbolo por excelência das Iyabás mesmo é a terra. Ela é a grande mãe, a que nos sustenta, razão pela qual é saudada como Iyá mim, literalmente minha mãe. De acordo com a tradição ioruba, no principio do mundo, a terra, representada pela mulher foi o único antepassado que acompanhou os dois princípios ancestrais: Oxalá e Ogun. Isso nos leva a crer que para estes grupos as mulheres sempre desempenharam vital importância e sobre elas caíram a responsabilidade de como a terra sustentar o mundo. Como no mito que conta que Nanan ampara o mundo. É ela quem cuida, junta, ao mesmo tempo que separa para que o dia não se encontre com a noite, os planetas não se choquem e assim por diante. Acredita-se que a força da terra esteja presente em todos nós, mas de forma especial nas mulheres, talvez isso explique porque desde cedo as primeiras civilizações para estas compuseram cânticos, ou mesmo as chamaram de música, ou assim que puderam, as transformaram em objeto de adoração, ergueram para elas cultos, ou ainda estabeleceram relações entre estas mulheres e as frutas que como a terra guardam elementos geradores de vida.

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.