terça-feira, 31 de maio de 2011

EM TORNO DA NOÇÃO DO CORPO NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS


Hoje vamos iniciar uma série de textos sobre o significado do corpo nas religiões de matriz africana. Corpo negro, a todo o tempo todo negado por estereótipos resignificado nestas religiões.
Uma das primeiras noções que aparece nos terreiros é a de que o corpo é um instrumento. Através dele, os ancestrais se fazem presente na comunidade, daí a sua vital importância.
Nas religiões de matriz africana através da iniciação o indivíduo aprende a perceber-se como corpo, em outras palavras: algo que está integrado no Universo. Exemplo dessa concepção encontramos na maioria das civilizações antigas, em especial, no Egito onde a mumificação e todos os ritos que lhe envolvia garantiam o renascimento, entendido como continuidade da vida. Assim em vários mitos podemos observar a relação entre este e a terra, outro conceito por excelência para os primeiros grupos humanos.
Nos terreiros de candomblé, acredita-se que Oxalá é o dono do corpo. Ele é corpo ancestral no qual participamos. Isso aparece contado em vários poemas como o que diz que este orixá teria modelado todos os seres a partir da mistura primordial da água com a terra, dois elementos de vital importância para as primeiras comunidades, ou se quisermos ir mais longe, um dos maiores anseios destas a fim de fundar as cidades. Diz o mito repetido pelos tios e tias do candomblé, que Oxalá teria modelado os seres vivos dessa mistura e logo após eles receberam o sopro da vida, aquilo que é “tirado” a fim de ingressarmos no mundo dos antepassados. Fato este que não diminui em nada a concepção do ara, corpo.
Diferente da concepção que encontramos em outras culturas ou mesmo da divisão formulada pela ciência moderna, o corpo, nem mesmo o “sopro vital” pode ser entendido como algo que antecede a existência do corpo, ou algo dotado de individualidade. O sopro vital não pode ser entendido também como uma memória cumulativa de experiências, pois ele só existe num corpo que quando desaparece. Quando o corpo “desaparece” aquilo que dar vida aos seres integra-se na Natureza, uma das expressões por excelência do Sagrado. Desta maneira nada antecede o corpo e não há outra forma de compreender o mundo sem este conceito.
Segue um dos poemas dizendo que o primeiro ser dotado de forma que Oxalá modelou foi uma pedra avermelhada, em seguida os astros e os demais seres. Assim através do nosso corpo participamos desses elementos. Liga-se também ao corpo, Exu, principio de comunicação. Segundo algumas histórias, ele seria esse primeiro ser dotado de forma, a pedra fundamental. Daí ser Exu o responsável pela realização de tudo no mundo e por manter o equilíbrio desse sistema no qual estamos integrados, o que é garantido através das várias oferendas denominadas por algumas tradições religiosas de ebó, ou bozó, termo que caiu em desuso graças à conotação pejorativa que adquiriu no decorrer do tempo.
Esclarecido isso, podemos agora transitar sobre outras expressões que envolvem o corpo como a expressão: “corpo fechado”. Ter o corpo fechado significa mantê-lo integrado com o universo. É o mesmo que estar saudável. A doença desta maneira é sempre interpretada como um desequilíbrio.
Uma vez que corpo além de instrumento pode ser entendido como uma pequena sociedade, sobre ele recai uma série de interdições, ou tabus já conhecidos por algumas pessoas através das palavras quizilas ou ewó. Chama-se quizilas tudo que enfraquece o nosso corpo ancestral. Daí ouvirmos repetidas vezes que algumas interdições que são descumpridas, podem até não refletirem diretamente no corpo que apalpamos o tempo toso, mas sobre a nossa ancestralidade, pois mais do que garantir a nossa identidade de pessoa, os tabus servem mesmo para cada vez mais estreitarmos os nossos laços com esta, com o momento inicial falado no mito, quando Oxalá concebeu o primeiro ser dotado de forma.
Outra noção que aparece ligada ao corpo é de poluição, através da expressão “sujar o corpo.” Nos últimos anos tenho refletido muito sobre esta. E logo de imediato acredito o islamismo juntamente com o judaísmo tenha nos influenciado. Isso não significa que a noção de sujeira e poluição não estivesse presente nas culturas africanas que nos emprestaram as suas matrizes. Este é um tema que ainda estou pensando. De qualquer maneira temos que repensar a forma como este aparece algumas ocasiões. Um fato positivo é que tal idéia nos faz refletir o tempo todo sobre a importância da “corporeidade.” Através dos banhos rituais, “mantemos o nosso corpo limpo”, ou se preferirmos reconstruímos o tempo todo o divino que está em nós.

Um comentário:

  1. Axé. Ótima introdução â um tema tão importante para o povo de terreiro. No culto da Jurema, o corpo é um tronco de árvore, a trunqueira que liga o material ao imaterial. Por isso cultuamos uma árvore sagrada, que é elo essencial com o universo das "cidades da jurema", cosmo onde vivem os caboclos e mestres etc. (o mundo espiritual). Contudo, fumaça, cachaça e outros elementos que para o candomblé na maioria das situações suja o corpo, na Jurema limpa e cura, levanta e derruba, encaminha e desencaminha. Estas questões, sugiro que em seus próximos escritos utilize para podermos ampliar as discussões interreligiosas entre o culto da Jurema Sagrada e o candomblé. O corpo e a trunqueira.

    Muita fumaça de nossa Jurema!!

    L'Omi.

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.