domingo, 7 de agosto de 2011

DO MUNDO À BARRIGA DAS GRANDES MÃES.

Hoje vamos falar sobre a barriga, entendida como tudo que diz respeito às “coisas de dentro.” Em outras palavras às entranhas Para alguns grupos africanos, a barriga reveste-se de particularidade. Ela goza de tanta importância que se encontra referendada na natureza por tudo que é redondo. Assim, panelas, cabaças, até mesmo algumas frutas e ainda a própria idéia de mundo podem ser entendidas a partir desta imagem. Na verdade, a “idéia da barriga” diz respeito a tudo que se organiza como sistema. Em muitas civilizações antigas a barriga é confundida com a própria terra que como a primeira imagem dar origem a todos os seres. Desta maneira ela é o grande ventre que “pare filhos e filhas de todos os tipos.”. Nos terreiros de candomblé, o culto às coisas de dentro, ao principio da transformação está relacionado com os princípios universais femininos, chamados Yabás. Todavia é sobre o culto à terra entendida como Grande Mãe, que isso pode ser melhor compreendido. Nos terreiros, pouco se fala sobre as Grandes Mães. Evocá-las consiste numa das maiores transgressões. Este fato vem apresentando modificações a partir dos anos 90. Como já tivemos oportunidade de lembrar, as religiões tradicionais africanas baseiam-se na noção de ancestralidade, entendida como princípios universais dos quais somos deslocamento. Esta ancestralidade é atravessada pelos nossos antepassados, pais e mães que nos antecederam que por sua vez surgem como manifestação desse Sagrado. Os antepassados que representam grandes famílias são cultuados em sociedades secretas, a exemplo da sociedade de Egungum preservada no Brasil. A Terra, reverenciada como Grande Mãe recebe culto em sociedades secretas semelhantes. Mesmo desaparecida no Brasil, tal conceito aparece de forma fragmentada em alguns momentos nos terreiros ou ainda num dos rituais mais complexos reelaborados pelos africanos iorubas, particularmente, e seus descendentes: o Ipadê, ou Padê, ocasião em que os antepassados de cada grupo são invocados como elementos fundantes das respectivas comunidades. Autores como Pierre Verger e Monique Augras, já chamaram a atenção sobre a reinterpretação do culto às Grandes Mães após o contato com o Cristianismo e o Islamismo. Entendidas como feiticeiras, ou ainda como algo que deve ser aplacado, tal culto que na origem era cercada de significado foi reduzido ao temor e às vezes ao medo. Desta maneira, temos, de fato, que retomar a imagem das Grandes Mães a partir de uma de suas representações mais antigas, a terra. Embora a representação do pássaro seja a que é hoje mais revisitada. Gosto muito de um poema registrado por Verger que diz que no inicio, Olodumaré enviou para criar o mundo, grupos liderados por Oxalá e Ogun. Estes grupos partiram acompanhados por uma mulher, que diante da missão dada a estes, retornou e interpelou Olodumaré para que ele definisse melhor a sua função. O poema segue contando que Olodumarë lhe disse que ela poderia segui-los em todos os lugares pois deveria ser “a mãe deles.” Como a imagem da terra, a figura da mãe, entendida como a terra, ventre aberto ao mundo foi perdendo significado dentre nós. Retomando fragmentos desse poema, podemos refletir sobre a importância das Mães Ancestrais, chamadas de “Minha Mãe” no universo religioso de alguns terreiros de candomblé. Desta maneira para que imagem mais fértil do que a barriga, “o mundo de dentro” e tudo que ele representa? Assim, a barriga recebe culto especial como a terra e algumas árvores. Ela é consagrada às Grandes Mães que mais do que principio de temor que deve ser aplacado estar para ser reverenciado como aquelas das quais nos desprendemos e ganhamos um corpo. Este é um dos maiores sentidos do silêncio que cerca seu culto, culto este que nas poucas vezes que é realizado é cercado de mistério onde palavras incompletas alternam-se com imagens tracejadas na terra que apenas poucos iniciados compreendem o significado. As Grandes Mães estão presentes, assim em tudo que tem vida, mas em especial é representada pelas mulheres graças à capacidade de gerar que desde o inicio foram investidas. Mulheres nos primórdios representadas como caçadoras atentas a qualquer ameaça à vida do grupo, daí a imagem do poema: “tu serás a mãe deles...”mulheres que desde o inicio receberam culto junto a terra pois dela dependia o equilíbrio e sustento do grupo, mas também que se relacionou com astros como o sol, a lua e constelações inteiras. É um pouco desse conhecimento que podemos refletir ao nos referirmos às Grandes Mães, diante das quais nos dobramos em direção a terra a fim de reconhecê-las como “minha mãe”, terra da qual somos parte e descendemos.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

“AOS PÉS DO ORIXÁ”

Dando continuidade à conversa sobre as “representações do corpo no universo afro-brasileiro”, vamos falar sobre os pés. Como as mãos e a cabeça, em momentos especiais, eles podem significar o corpo todo. Basta atentarmos para o ato de ungir, banhar, ou simplesmente lavá-los, presente nas culturas antigas significando purificação ou simplesmente um banho lustral que reverencia todo o corpo, lhe restaurando o aspecto de santidade.
Nos terreiros de candomblé, os pés, chamados “esé” são adorados como divindades. Estes a principio nos colocam numa relação direta com os antepassados, pais e mães dos quais descendemos. Daí a importância de está descalço para poder tocar na terra, a grande morada dos antepasados. Infelizmente sobre tal gesto recaiu uma série de preconceitos, desta maneira, andar descalço significou durante muito tempo uma espécie de sujeição, ou ainda um gesto demonstrativo de uma determinada condição social.
Ainda hoje, algumas pessoas conservam o hábito de deixar o calçado na porta da casa de quem está visitando. Assim fizeram durante muito tempo os ex-escravos ao chegar à porta de seu antigo dono. Tirar o calçado significava assim a expressão de sua eterna gratidão ao seu antigo senhor. Claro que tal gesto servia mais para o segundo, do que para os libertos e seus descendentes. Desta maneira, os pés foram ganhando outras representações.
Nos terreiros, os pés são consagrados a Oxalufan, o ancião, o mesmo que representa os primeiros grupos humanos que saíram caminhando para povoar a terra. Sábia associação de nossos tios e tias que desde cedo sacralizaram os passos lentos apoiados sobre cajados rituais de mães e pais reverenciados como avôs e avós de todos os grupos humanos.
Oxalufan é o verdadeiro corpo ancestral que esconde sob as suas vestes brancas, -que nada tem a ver com a paz propagada no ocidente- nossos antepassados. Graças a Oxalufan somos corpo. E para que representação melhor do que a imagem da pedra, base de sustentação das maiores construções que a humanidade teve noticias? Os pés sustentam o nosso corpo assim como Oxalufan como uma pedra angular sustenta os corpos que formam o mundo visível e mais aqueles que os nossos olhos nos tornam cegos para alcançá-los.
Estar em pé, saltar, correr são sinônimos de alegria, realizações. É estar saudável. É ter axé. É poder participar de momentos mágicos quando ainda os deuses e os homens juntos amassavam com os pés, o trigo, para fazer o pão; a cevada para fazer a cerveja e a uva para fazer o vinho.
Gosto muito da expressão: “lese orixá”, entendida literalmente como: “aos pés do orixá”. A imagem dos pés nas religiões de matriz africana antes de nos colocar numa posição de sujeição, nos dignifica ao nos situar; se não no mesmo nível da divindade, num plano onde as nossas relações com o Sagrado se realiza na sua totalidade. Estreitando os laços com nossa ancestralidade, os pés possibilitam-nos trilhar por outros caminhos, abrindo novos horizontes, nos tornando, no mínimo, mensageiros de sonhos semelhantes aos dos primeiros homens e mulheres que inventaram a geometria e a matemática, liderados pelos passos lentos e firmes do velho Orixá.

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.