O culto aos gêmeos reveste-se de particularidades em algumas partes do Continente Africano onde estes e outras crianças nascidas com alguma peculiaridade recebem tratamento especial a exemplo daquelas que chegam ao mundo com a placenta presa ao corpo, os que nascem com o cordão umbilical enrolado no pescoço ou mesmo aquelas que nascem após sucessivas mortes. Tenho insistido que tal culto liga-se a noção de continuidade, prosperidade e descendência, razão pela qual é associado à terra através da imagem do kolobô, um recipiente de barro. Talvez esta ligação nos ajude entender a afirmação de que “ ibeji, os gêmeos comem de tudo.” Desta maneira, o banquete anual dedicado a eles nos permite visualizar a grande variedade que compõe, se assim pudermos falar, “o cardápio dos orixás.” Em outras palavras, o conjunto de iguarias que compõem a cozinha ritual reconstruída no Brasil que ainda hoje pode ser apreciada em alguns terreiros de candomblé, demonstrando a habilidade que homens e mulheres africanas tiveram quando elaboraram a chamada cozinha de orixá no Brasil, pratos elaborados respeitando os chamados “preceitos”, fórmulas rituais mantidas pela tradição de cada grupo religioso. Ligado à terra, entendida como principio primordial de onde brota a vida, “os gêmeos”recebem todos os grão e algumas comidas a base de raízes. O banquete dedicado a estes ancestrais é servido com o caruru, espécie de molho de quiabos que acompanha as iguarias. Tenho insistido que particularmente, tal culto no Brasil ganhou dimensões bastante amplas. Desta maneira, a devoção aos gêmeos além de interferir na representação de santos católicos como Cosme e Damião ultrapassa o universo das religiões de matriz africana. Assim, seu culto pode ser encontrado com características próprias em todas as cidades brasileiras em oratórios particulares, guardados por famílias que ao longo de gerações mantém viva a promessa de oferecer o tradicional caruru que em algumas ocasiões é antecido por rezas e novenas.
terça-feira, 27 de setembro de 2011
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
QUIABO, A PLANTA DO RENASCIMENTO
Comida obrigatória dos faraós no Egito, o quiabo - Abelmoschus esculentus (L) Moench ocupa lugar de destaque na cozinha ritual dos terreiros de candomblé. A planta originária do continente africano chegou ao Brasil certamente como uma exigência do paladar africano que logo se impões no Brasil colônia. Nas comunidades terreiros tal verdura recebe tratamento especial, contituindo-se como base de várias comidas rituais, as chamadas comidas votivas dedicadas aos orixás em ocasiões especiais que visam reforçar, estreitar ou reconstruir os laços dos fiéis com o Sagrado. Esta verdura é tão importante que alguns terreiros conservam o hábito africano de não comer as suas sementes, à semelhança de muitos povos que sabiam da importância destas para garantir a continuidade de tal cultura. Como no Egito Antigo, recebem comidas à base de quiabos, os ancestrais ligados às dinastias e alguns que se relacionam com estes. A exemplo do orixá Xangô, um dos reis de Oyó, de culto trazido para o Brasil pelos reis, rainhas e sacerdotes que aqui entraram. Come também quiabo Oxalá, considerado um dos ancestrais mais antigos, representativo dos primeiros grupos humanos que saíram pelos continentes para povoar a terra e erguer as civilizações. Também recebe esta verdura, Nanã, ancestral do desenvolvimento e da transformação, considerada também principio criativo do Universo, motivo pelo qual participa de todos os seres vivos como celeiro que acolhe e guarda todo ser dotado de força vital. Dar-se comidas a base de quiabos Ibeji, literalmente, os gêmeos por conta de sua relação com a continuidade. Isto explica a prática que resiste ainda hoje em algumas famílias de colocar, conforme a promessa, de três a sete quiabos no tradicional caruru dedicado a Ibeji, onde os quiabos são cortados observando várias normas prescritas pela tradição, normas que lhe confere o nome “caruru de preceito.” Ainda está para ser discutido os “carurus” dedicados as orixás gêmeos feitos sob “encomenda”. Os chamados “vindos da rua”. Há algum tempo não muito distante de nós, o “caruru dos meninos”, outro nome dado ao conjunto de iguarias oferecidas aos gêmeos, era “encomendado a uma pessoa” que preparava toda a comida dentro da casa de quem estava oferecendo o prato, afinal como ainda acredita-se: “comida de orixá não pode atravessar encruzilhadas.” Certo que a chamada “modernidade” e a redefinição do tempo, somado aos produtos oferecidos pela indústria de alimentos, a exemplo dos fast food, faz urgir em algumas pessoas mudanças, ora para “aproveitar esse tempo”, que sempre tornar-se escasso, ora para ostentar prestígio, incluindo algumas modificações. Pela brevidade do tempo não vamos aprofundar este debate. Deixemos para outra ocasião. Retornando ao nosso tema, a base principal do caruru de Ibeji é o quiabo. Quiabo inteiro colocado na panela distribuído aleatoriamente no prato de alguns comensais que até certo tempo mantiam o compromisso de retribuir aquele banquete à família que estava oferecendo, prestando homenagem aos gêmeos. Isso garantia a presença do caruru “durante todo ano” por se acreditar que Ibeji não abre mão de receber suas comidas preferidas oferecidas pela pessoa escolhida, em outras palavras, “apontada” pelo quiabo inteiro, representando o próprio ancestral. Recebe também comida a base de quiabo, Oyá, ancestral do rio Niger por conta da sua relação com o orixá Xangô. Na verdade, as comidas feitas de quiabo oferecidas a ela representam o próprio rei. Nos terreiros de candomblé, ao menos nas casas de tradição ioruba, o quiabo se faz presente em todos os ritos de passagem, mesmo quando ele está ausente. Ele serve para marcar assim todas as cerimônias de renovação, continuidade. Come-se quiabo para fortalecer o axé. Quiabo é símbolo de prosperidade, êxito nos negócios e serve também para impedir que algumas coisas que atrapalham o nosso axé aconteçam. Há poemas que dizem, “que no meio das dificuldades encontremos quiabo.” A fim de garantirmos que nada de ruim nos aconteça. O quiabo neste trecho nos é apresentado se não, como uma pessoa, um ser individualizado. Isso nos remete a um mito já registrado por alguns autores, mantidos pelas comunidades terreiros. Conta-se que uma grande seca se abateu sobre a terra. Tudo começou a perecer, a começar pelas flores, as árvores depois de despir-se de suas folhas começaram morrer, as crias dos animais também padeceram, abateu-se sobre a humanidade a fome, doenças e a guerra, não tendo mais a quem recorrer, um ancestral chamado Okô, que nos ocuparemos na próxima semana, aquele que inventou a roça, cultivou, domesticou as primeiras plantas, saiu pelo mundo a procura de uma solução ante a emergência do desaparecimento da vida. Okô, então chegou diante do orixá Exu, aquele que havia entrado primeiro na cidade criada pelo fundador do Universo e lhe pediu que clamasse ao céu para enviar a chuva, o céu que anteriormente já havia entrado em disputa com a terra para ver quem era o mais importante.Exu aceitou o desafio e lhe pediu uma comida especial temperada com pimenta. Okô, assim fez e depositou a comida sobre Okê, a montanha, por ser o lugar mais alto. Exu fartou-se da iguaria demasiadamente apimentada e depois que percorreu todos os rios da terra, não encontrando água, tratou de reclamar ao céu que fizesse cair sobre a terra a chuva. O céu atendeu o pedido do velho amigo e entregou a Exu gotas de águas para serem derramadas sobre a terra. Atrapalhado, o poema diz que Exu no caminho, deixou cair algumas gotas de suas mãos e a chuva antecipou-se à sua chegada na terra. Quando desceu da montanha, ao parar diante de Okô, percebeu que o quiabo já havia lançado as primeiras folhas. Estava garantida assim a continuidade e a permanência da vida sobre a terra. Desta maneira, a exemplo do ilhame, do milho e da mandioca nas Américas e do arroz na Ásia, reconhecidos como raízes e grãos civilizatórios, o quiabo constituiu uma das plantas cultivadas de maior importância para algumas civilizações africanas, a menos para aquelas que afirmavam descender de um poder Divino representado pelo do rei. Além da fixação dos grupos humanos na terra, ele nos ajuda a pensar no esforço que as primeiras civilizações empreenderam para manter-se vivas através de noções como descendência e ancestralidade, mantidas vivas ora através do não consumo da sementes de algumas plantas a fim de semeá-las, ora através da sua distribuição inteiros em pratos de fiéis, devotos que transcendem às religiões afro-brasileiras e que ainda hoje oferecem o caruru aos meninos, referenciados as vezes nas figuras dos santos católicos Cosme e Damião transformados em gêmeos no dia vinte e sete de setembro. Vamos refletir sobre isso
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
ORIXÁ OKÊ, O QUE NOS VELA , NOS PROTEGE E NOS GUARDA
Hoje vamos falar sobre o orixá Okê. Nos terreiros de tradição jeje-nagô tal principio ancestral é lembrado como um dos mais antigos. Por isso recebe culto junto aos ancestrais criadores a exemplo de Oxalá. De acordo com algumas histórias, Okê foi um dos primeiros orixás a ser criado por Oduduwa, o Universo. Conta o poema que onde a substância escura atirada por Oduduwa sobre as águas se acumulava, ia formando os montes. Nascia, assim, o orixá Okê, as montanhas e tudo que elas significaram para os primeiros grupos humanos. Okê por ligar-se aos primeiros grupos humanos é representado por caçadores e caçadoras. Mais do que referência às alturas, ao distanciamento do grupo social, à solidão ou à fuga, as montanhas desde cedo significaram para estes grupos, espécies de guardiões e guardiães. Como olhos, sempre atentos, desde cedo, elas receberam culto especial como verdadeiros amigos, na linha ioruba chamados de adele, guardiões, guardiães, vigias. Basta observarmos como elas nos acompanham. Aos pés das montanhas, desde cedo, os primeiros grupos humanos levaram até o Sagrado as suas súplicas, porque uma das funções de Okê era conduzir os seus pedidos a alguns ancestrais como orun, o sol e oxu, a lua. Diz que quando Oduduwa criou Okê, lhe investiu também do poder de transformar-se, sumir e aparecer em lugares diferentes a fim de estar acompanhando o seu povo em todas as partes da terra. É por isso que algumas vezes temos a sensação de estarmos sendo seguidos pelas montanhas. Dos princípios ancestrais que recebem culto nas montanhas, destaca-se uma caçadora chamada Iyeye Okê, literalmente, a mãe da montanha. Acredita-se que Iyeye Okê anda sempre sozinha, mas na verdade ela acompanha cada um de nós. É ela quem protege os caçadores, caminha ao lado das caçadoras ao mesmo tempo em que confunde os homens aparecendo como uma grande caça. Iyeye Okê no principio da humanidade conduzia os primeiros grupos nas grandes caçadas e também protegia os animais das matanças desmedidas. Por ela está sempre fora de casa, acreditou-se que ela anda sozinha. Verdade é que a sua companhia é o orixá Okê, as montanhas, motivo pelo qual divide com ele as funções de amparo, guarda e proteção. Por fim, gostaria de lembrar uma história que nos ajuda a pensar sobre a importância de tal orixá. O mito que conta como as montanhas salvaram a humanidade. Diz que já há algum tempo, Iyemanjá, a barriga que pari filhos e filhas de todos os tipos, queria retornar de uma terra onde era muito maltratada. Suplicando a Olokum, os mares, choveu incessantemente dia e noite inundando aquela terra. Rodeada pelas águas, Iyemanjá fogiu por um volumoso rio que se formou. No meio do caminho as águas tiveram de parar diante de Okê, a montanha, que altiva colocou-se esguia à sua frente. A fim de prestar homenagem a Okê, Iyemanjá pediu a um de seus filhos que daquele momento em diante pratos feitos a base de quiabos, fossem oferecidos sobre as montanhas, em sinal de respeito e reconhecimento à sua antiguidade. Em retribuição, Okê dividiu-se em duas partes abrindo caminho para a fuga da mãe dos orixás. Por onde Iyemanjá passava, Okê ia se dividindo. Este é o motivo pelo qual encontramos ainda hoje montanhas “partidas” ao meio. Ao chegar diante de Okê, os grupos que procuravam Iyemanjá, a montanha lhes pareceu mais alta. Vendo a terra seca, concluíram que a mãe dos orixás só podia ter morrido na sua fuga. A humanidade assim estava salva. Iyemanjá pode voltar para o seu reino e fazer-se presente em todos os rios. Diante de Okê, o grupo que perseguia Iyemanjá tornou-se imóvel, encantados aos “pés da montanha” nunca mais saíram. Acredita-se que eles até hoje moram lá e se limitam a repetir as vozes daqueles que chegam diante do Orixá Okê.
terça-feira, 6 de setembro de 2011
O PRINCIPE DAS AGUAS
A pedido de um leitor hoje vamos falar sobre o orixa Logun ede. Dentre nós tal principio ancestral ganhou vários significados. Assim é comum ouvirmos várias histórias sobre o mesmo. Eu diria que Logun ede é um dos orixás que nos últimos anos mais se modificou. Como ouve-se dizer, cada um tem uma história para contar sobre ele, carinhosamente chamado de Logun. Em algumas destas histórias ele aparece como hermafrodita ou ainda um principio ora masculino, ora feminino. Não vamos, todavia entrar neste debate. Fato é que Logun ede é um dos orixás que nos foi legado pelo povo de igexá muito antigo e o seu culto pode ser encontrado em várias cidades africanas banhadas por um rio que recebe denominações como Einlé, Oxun e assim por diante. Verdade é que como um dos ancestrais fundadores do povo de igexá, Logun ede é um caçador e já tivemos oportunidade de falar sobre a importância de tal figura para os primeiros grupos humanos. Ele, porém guarda uma particularidade: sua relação com as águas. Isso aparece nos vários mitos. Logun relaciona-se com todas as Iabás, princípios femininos que garantem a fertilidade da terra e o equilíbrio do mundo. Como principio ancestral primordial do povo de igexá, como Obatalá e Oxumarê, Logun é a criação indiferenciada. Talvez seja este um dos motivos pelo qual ora ele aparece ligado à terra e ao mesmo tempo ligado às águas através da imagem do caçador que vive a beira do rio. Outra imagem bastante criativa guardada pela tradição é a associação de Logun às crianças. Na verdade, Logun relaciona-se a todos os seres vivos recém criados. Ele é a certeza da continuidade da criação renovada a cada dia. Daí entender o provérbio que diz: É santo menino que velho respeita. Outro símbolo desse ancestral ao lado do peixe, é o camarão. Há quem diga que Logun é o próprio camarão que enfeita as comidas votivas dedicadas a ele. Há terreiros também que associam Logun ede aos doces, razão pela qual recebe uma comida a base de milho quebrado chamada lêlê. Há quem refira-se a Logun como um pescador, mas gosto mesmo da imagem que diz ser Logun o leito que sustenta todos os rios. Desta maneira é ele quem garante o encontro das águas propiciando que todas elas sigam em direção ao mar. Logun é ainda mistério, mistério da transformação representado ora pela arma dos caçadores, ora pelo leque das Iabás. É por fim o buraco chamado Ibualama para onde corre todas as águas escuras do rio do mesmo nome, para retornarem cristalinas inspirando mais histórias sobre o príncipe das águas.
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Quem sou eu
- VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR
- Salvador, Bahia, Brazil
- Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.