Vamos dar continuidade à reflexão sobre o sacrifício de animais praticado pelas religiões de matriz africana que vem sendo considerado um ato de crueldade que pode está com os dias contatos no Estado de São Paulo caso um projeto de lei que tramita na Câmara de Deputados seja aprovado. A guisa de explicação vou retomar alguns conceitos. O primeiro diz respeito a própria noção de sacrifício que graças ao cristianismo e algumas praticas judaizantes ganhou ao longo dos tempos uma conotação de algo sangrento e violento. Para as religiões de matriz africana, a noção de sacrifício é algo mais amplo. Seguindo o principio básico de que as partes contêm o Todo e que cada ser individual é o deslocamento dessa matéria ancestral, o sacrifício, entendido como uma mudança da forma inicial significa o retorno às origens, servindo ele para manter a vida e o equilíbrio do Universo. Tomemos como exemplo a comida. “Nada no mundo mantêm-se vivo sem comer,” diz o provérbio. Assim, grãos, folhas, favas, frutas, flores, sejam eles esmagados, triturados, maceradas, cortadas, juntamente com a própria água derramada que escorre no chão são sacrifícios primeiros que antecedem aos ritos propiciatórios da vida. Assim, alargando a noção de sacrifício, à semelhança do judaísmo antigo, que o grande momento da celebração era sintetizado com “o pão partido”, podemos perceber a refeição como um dos momentos sacrificiais por excelência. Isso torna a cozinha como principal lugar de produção desse Sagrado. O problema está quando perdemos a noção de Sagrado, ora lhe opondo a outros conceitos, ou quando simplesmente o fazemos desaparecer, a fim de adequar nossa linguagem às questões mais modernas. De fato, quando nos afastamos de tal principio a relação com os animais e vegetais torna-se irresponsável, pois a primeira coisa a que renunciamos é o fato de também participarmos da teia da vida. A proibição do sacrifício de animais fundamentada na idéia de maus tratos não se sustenta se seguirmos a lógica a que estamos nos referindo. Talvez valha mesmo para os animais engordados em confinamento como bois e aves. Talvez isso se aplique bem ao Foie gras, fígado gordo, um dos pratos mais tradicionais da culinária francesa que obriga o pato a ingerir uma ração hiper calórica, empurrada “guela abaixo” com a ajuda de um funil a fim dele desenvolver uma esteatose hepática, uma doença, a gordura no fígado. Noticia que não nos espanta, tendo em vista que a produção de doenças tem tornado-se pratica comum da industria de alimentos. E a sopa chinesa feita com barbatana de tubarão que faz com que centenas destes animais sejam mutilados e soltos no Oceano, morrendo em seguida? Nada contra os franceses e os chineses, apenas tomei como exemplo dois animais que ocupam lugar especial no universo afro-brasileiro, o pato e o tubarão. Ambos seres encantados que desde cedo serviram como mensageiros dos Ancestrais cumprindo entre alguns povos africanos função semelhante a dos carneiros na cultura islâmica que ate hoje são sacrificados diante do silencio dos mesmos ativistas vegetarianos que bradam contra o sacrifício de animais nas religiões afro. Como se vê, estamos apenas iniciando uma longa discussão. A relação entre sacrifício e maus tratos, deve ser, de fato, colocado não somente no âmbito das religiões , como vem sendo feito de forma açodada e preconceituosa, reproduzindo antigos estigmas, mas deve ampliar-se para instancias mais amplas. Deve mesmo ser trazida para dentro de nós. Somente assim, apropriando-se desse Sagrado como parte de um Todo onde outros seres estão integradas, nos tornaremos mais responsáveis , ligando-nos a eles. Quem sabe assim não possamos abandonar a milenar linguagem sacrificial e encontremos oura maneira de expressar a forma como nos mantermos vivos no mundo?
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
CANDOMBLE E CRIME DE CRUELDADE (PARTE I)
Vem tomando fôlego no pais, inspirado pelo projeto do deputado estadual paulista Feliciano Filho que esta sendo analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Estado de São Paulo, mobilizações em torno da “proibição do sacrifício de animais em práticas rituais religiosas.” O texto não cita explicitamente as religiões afro-brasileiras, vinculação que está sendo feita por alguns grupos e alguns meios de comunicação. Já tivemos a oportunidade de falar sobre o sacrifício neste espaço, um ano atrás, artigo que foi publicado no livro: Na palma da mão: temas afro-brasileiros e questões contemporâneas, pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). Desta maneira não vamos nos repetir aqui. Projeto semelhante foi vetado por “inconstitucionalidade” na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo há um ano. Estas idéias chegaram à cidade de Salvador através da denuncia de uma ambientalista de maus tratos e comércio de animais silvestres na Feira de São Joaquim recentemente reconhecida como patrimônio cultural, fato que foi averiguada pela 3 Delegacia Territorial situada no Bonfim. O caso gerou revolta e polêmica entre alguns feirantes que vivem do “comércio sagrado.” Já há algum tempo, as religiões de matriz africana vem se deparando com assunto que uma vez ou outra entra em pauta, sempre reproduzindo o discurso falso - cientifico, higienista e racista que existe em torno dos elementos civilizatórios negro-africanos reorganizados no Brasil, presente em várias expressões sobretudo nas religiões de matriz africana, seja elas o Batuque do Rio Grande de Sul, o Tambor de Mina do Maranhão, os Candomblés de São Paulo e Rio de Janeiro, a própria Umbanda espalhada por todo Brasil, o Xangô, o Xambá e a Jurema de Pernambuco, Paraíba e outras cidades do Norte e Nordeste brasileiro, as casas nagôs do Recôncavo Baiano, os terreiros de Egun baianos, o Jarê da Chapada Diamantina e tantas outras. Tive oportunidade de ouvir depoimentos sobre isso em cidades como Porto Alegre, que concentra o maior numero de casas afro-brasileiras no pais, em Belém do Pará e em Belo Horizonte. Em todos estes lugares, a denuncia baseava-se no Artigo 3, inciso 1 e 2 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO de 27 de janeiro de 1978 que reza: “Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos crués. Se for necessário matar um animal, ele deve ser morto instantaneamente sem dores e de modo a não provocar-lhe angustia”. E ainda no Artigo 9 que fala: “Quando o animal é criado para alimentação, ele deve ser alimentado , alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor.” Vamos alargar esta discussão na próxima semana. No momento vamos ficar com a pergunta de uma sábia sacerdotisa que interpelada sobre o assunto, respondeu: “pena que não fazem a mesma afirmação quando se chega nos açougues ou mesmo na sessão de frios dos grandes supermercados. Isso nos faz pensar dentre outros temas contemporâneos na industria de alimentos, na produção de carnes e outros derivados inventados. Como sugere Michael Pollan, “os animais criados para o corte vira seu estilo de vida passar por uma revolução nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial” graças ao confinamento, a alimentação a base de milho, suplementos de proteínas e gordura, o que resultou em animais mais doentes, em carnes menos saudáveis e na redução do tempo para abate. Não vamos entrar no mérito de como isso é feito. Por que tema semelhante não é colocado nas portas das industrias de alimentos? Em entrevista a um jornalista da Folha de São Paulo, trouxe a idéia de que ao contrário do que se afirma nos terreiros, uma das condições para o sacrifício, conceito amplo e de vários significados, longe da conotação violenta e sangrenta judaico-cristão, é que os animais estejam saudáveis para assim fazermos a experiência do sagrado que há neles. Assim repetir uma velha frase que diz que nos terreiros os animais “morrem” com mais dignidade do que nos abatedouros. Dignidade porque fazem parte como todos os seres da teia da vida e por isso pode representá-los mantendo como os grão a relação com nossos ancestrais, mas essa é uma conversa que apenas estamos começando.
terça-feira, 27 de setembro de 2011
IBEJI, ORIXÁ KOLOBÔ
O culto aos gêmeos reveste-se de particularidades em algumas partes do Continente Africano onde estes e outras crianças nascidas com alguma peculiaridade recebem tratamento especial a exemplo daquelas que chegam ao mundo com a placenta presa ao corpo, os que nascem com o cordão umbilical enrolado no pescoço ou mesmo aquelas que nascem após sucessivas mortes. Tenho insistido que tal culto liga-se a noção de continuidade, prosperidade e descendência, razão pela qual é associado à terra através da imagem do kolobô, um recipiente de barro. Talvez esta ligação nos ajude entender a afirmação de que “ ibeji, os gêmeos comem de tudo.” Desta maneira, o banquete anual dedicado a eles nos permite visualizar a grande variedade que compõe, se assim pudermos falar, “o cardápio dos orixás.” Em outras palavras, o conjunto de iguarias que compõem a cozinha ritual reconstruída no Brasil que ainda hoje pode ser apreciada em alguns terreiros de candomblé, demonstrando a habilidade que homens e mulheres africanas tiveram quando elaboraram a chamada cozinha de orixá no Brasil, pratos elaborados respeitando os chamados “preceitos”, fórmulas rituais mantidas pela tradição de cada grupo religioso. Ligado à terra, entendida como principio primordial de onde brota a vida, “os gêmeos”recebem todos os grão e algumas comidas a base de raízes. O banquete dedicado a estes ancestrais é servido com o caruru, espécie de molho de quiabos que acompanha as iguarias. Tenho insistido que particularmente, tal culto no Brasil ganhou dimensões bastante amplas. Desta maneira, a devoção aos gêmeos além de interferir na representação de santos católicos como Cosme e Damião ultrapassa o universo das religiões de matriz africana. Assim, seu culto pode ser encontrado com características próprias em todas as cidades brasileiras em oratórios particulares, guardados por famílias que ao longo de gerações mantém viva a promessa de oferecer o tradicional caruru que em algumas ocasiões é antecido por rezas e novenas.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
QUIABO, A PLANTA DO RENASCIMENTO
Comida obrigatória dos faraós no Egito, o quiabo - Abelmoschus esculentus (L) Moench ocupa lugar de destaque na cozinha ritual dos terreiros de candomblé. A planta originária do continente africano chegou ao Brasil certamente como uma exigência do paladar africano que logo se impões no Brasil colônia. Nas comunidades terreiros tal verdura recebe tratamento especial, contituindo-se como base de várias comidas rituais, as chamadas comidas votivas dedicadas aos orixás em ocasiões especiais que visam reforçar, estreitar ou reconstruir os laços dos fiéis com o Sagrado. Esta verdura é tão importante que alguns terreiros conservam o hábito africano de não comer as suas sementes, à semelhança de muitos povos que sabiam da importância destas para garantir a continuidade de tal cultura. Como no Egito Antigo, recebem comidas à base de quiabos, os ancestrais ligados às dinastias e alguns que se relacionam com estes. A exemplo do orixá Xangô, um dos reis de Oyó, de culto trazido para o Brasil pelos reis, rainhas e sacerdotes que aqui entraram. Come também quiabo Oxalá, considerado um dos ancestrais mais antigos, representativo dos primeiros grupos humanos que saíram pelos continentes para povoar a terra e erguer as civilizações. Também recebe esta verdura, Nanã, ancestral do desenvolvimento e da transformação, considerada também principio criativo do Universo, motivo pelo qual participa de todos os seres vivos como celeiro que acolhe e guarda todo ser dotado de força vital. Dar-se comidas a base de quiabos Ibeji, literalmente, os gêmeos por conta de sua relação com a continuidade. Isto explica a prática que resiste ainda hoje em algumas famílias de colocar, conforme a promessa, de três a sete quiabos no tradicional caruru dedicado a Ibeji, onde os quiabos são cortados observando várias normas prescritas pela tradição, normas que lhe confere o nome “caruru de preceito.” Ainda está para ser discutido os “carurus” dedicados as orixás gêmeos feitos sob “encomenda”. Os chamados “vindos da rua”. Há algum tempo não muito distante de nós, o “caruru dos meninos”, outro nome dado ao conjunto de iguarias oferecidas aos gêmeos, era “encomendado a uma pessoa” que preparava toda a comida dentro da casa de quem estava oferecendo o prato, afinal como ainda acredita-se: “comida de orixá não pode atravessar encruzilhadas.” Certo que a chamada “modernidade” e a redefinição do tempo, somado aos produtos oferecidos pela indústria de alimentos, a exemplo dos fast food, faz urgir em algumas pessoas mudanças, ora para “aproveitar esse tempo”, que sempre tornar-se escasso, ora para ostentar prestígio, incluindo algumas modificações. Pela brevidade do tempo não vamos aprofundar este debate. Deixemos para outra ocasião. Retornando ao nosso tema, a base principal do caruru de Ibeji é o quiabo. Quiabo inteiro colocado na panela distribuído aleatoriamente no prato de alguns comensais que até certo tempo mantiam o compromisso de retribuir aquele banquete à família que estava oferecendo, prestando homenagem aos gêmeos. Isso garantia a presença do caruru “durante todo ano” por se acreditar que Ibeji não abre mão de receber suas comidas preferidas oferecidas pela pessoa escolhida, em outras palavras, “apontada” pelo quiabo inteiro, representando o próprio ancestral. Recebe também comida a base de quiabo, Oyá, ancestral do rio Niger por conta da sua relação com o orixá Xangô. Na verdade, as comidas feitas de quiabo oferecidas a ela representam o próprio rei. Nos terreiros de candomblé, ao menos nas casas de tradição ioruba, o quiabo se faz presente em todos os ritos de passagem, mesmo quando ele está ausente. Ele serve para marcar assim todas as cerimônias de renovação, continuidade. Come-se quiabo para fortalecer o axé. Quiabo é símbolo de prosperidade, êxito nos negócios e serve também para impedir que algumas coisas que atrapalham o nosso axé aconteçam. Há poemas que dizem, “que no meio das dificuldades encontremos quiabo.” A fim de garantirmos que nada de ruim nos aconteça. O quiabo neste trecho nos é apresentado se não, como uma pessoa, um ser individualizado. Isso nos remete a um mito já registrado por alguns autores, mantidos pelas comunidades terreiros. Conta-se que uma grande seca se abateu sobre a terra. Tudo começou a perecer, a começar pelas flores, as árvores depois de despir-se de suas folhas começaram morrer, as crias dos animais também padeceram, abateu-se sobre a humanidade a fome, doenças e a guerra, não tendo mais a quem recorrer, um ancestral chamado Okô, que nos ocuparemos na próxima semana, aquele que inventou a roça, cultivou, domesticou as primeiras plantas, saiu pelo mundo a procura de uma solução ante a emergência do desaparecimento da vida. Okô, então chegou diante do orixá Exu, aquele que havia entrado primeiro na cidade criada pelo fundador do Universo e lhe pediu que clamasse ao céu para enviar a chuva, o céu que anteriormente já havia entrado em disputa com a terra para ver quem era o mais importante.Exu aceitou o desafio e lhe pediu uma comida especial temperada com pimenta. Okô, assim fez e depositou a comida sobre Okê, a montanha, por ser o lugar mais alto. Exu fartou-se da iguaria demasiadamente apimentada e depois que percorreu todos os rios da terra, não encontrando água, tratou de reclamar ao céu que fizesse cair sobre a terra a chuva. O céu atendeu o pedido do velho amigo e entregou a Exu gotas de águas para serem derramadas sobre a terra. Atrapalhado, o poema diz que Exu no caminho, deixou cair algumas gotas de suas mãos e a chuva antecipou-se à sua chegada na terra. Quando desceu da montanha, ao parar diante de Okô, percebeu que o quiabo já havia lançado as primeiras folhas. Estava garantida assim a continuidade e a permanência da vida sobre a terra. Desta maneira, a exemplo do ilhame, do milho e da mandioca nas Américas e do arroz na Ásia, reconhecidos como raízes e grãos civilizatórios, o quiabo constituiu uma das plantas cultivadas de maior importância para algumas civilizações africanas, a menos para aquelas que afirmavam descender de um poder Divino representado pelo do rei. Além da fixação dos grupos humanos na terra, ele nos ajuda a pensar no esforço que as primeiras civilizações empreenderam para manter-se vivas através de noções como descendência e ancestralidade, mantidas vivas ora através do não consumo da sementes de algumas plantas a fim de semeá-las, ora através da sua distribuição inteiros em pratos de fiéis, devotos que transcendem às religiões afro-brasileiras e que ainda hoje oferecem o caruru aos meninos, referenciados as vezes nas figuras dos santos católicos Cosme e Damião transformados em gêmeos no dia vinte e sete de setembro. Vamos refletir sobre isso
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
ORIXÁ OKÊ, O QUE NOS VELA , NOS PROTEGE E NOS GUARDA
Hoje vamos falar sobre o orixá Okê. Nos terreiros de tradição jeje-nagô tal principio ancestral é lembrado como um dos mais antigos. Por isso recebe culto junto aos ancestrais criadores a exemplo de Oxalá. De acordo com algumas histórias, Okê foi um dos primeiros orixás a ser criado por Oduduwa, o Universo. Conta o poema que onde a substância escura atirada por Oduduwa sobre as águas se acumulava, ia formando os montes. Nascia, assim, o orixá Okê, as montanhas e tudo que elas significaram para os primeiros grupos humanos. Okê por ligar-se aos primeiros grupos humanos é representado por caçadores e caçadoras. Mais do que referência às alturas, ao distanciamento do grupo social, à solidão ou à fuga, as montanhas desde cedo significaram para estes grupos, espécies de guardiões e guardiães. Como olhos, sempre atentos, desde cedo, elas receberam culto especial como verdadeiros amigos, na linha ioruba chamados de adele, guardiões, guardiães, vigias. Basta observarmos como elas nos acompanham. Aos pés das montanhas, desde cedo, os primeiros grupos humanos levaram até o Sagrado as suas súplicas, porque uma das funções de Okê era conduzir os seus pedidos a alguns ancestrais como orun, o sol e oxu, a lua. Diz que quando Oduduwa criou Okê, lhe investiu também do poder de transformar-se, sumir e aparecer em lugares diferentes a fim de estar acompanhando o seu povo em todas as partes da terra. É por isso que algumas vezes temos a sensação de estarmos sendo seguidos pelas montanhas. Dos princípios ancestrais que recebem culto nas montanhas, destaca-se uma caçadora chamada Iyeye Okê, literalmente, a mãe da montanha. Acredita-se que Iyeye Okê anda sempre sozinha, mas na verdade ela acompanha cada um de nós. É ela quem protege os caçadores, caminha ao lado das caçadoras ao mesmo tempo em que confunde os homens aparecendo como uma grande caça. Iyeye Okê no principio da humanidade conduzia os primeiros grupos nas grandes caçadas e também protegia os animais das matanças desmedidas. Por ela está sempre fora de casa, acreditou-se que ela anda sozinha. Verdade é que a sua companhia é o orixá Okê, as montanhas, motivo pelo qual divide com ele as funções de amparo, guarda e proteção. Por fim, gostaria de lembrar uma história que nos ajuda a pensar sobre a importância de tal orixá. O mito que conta como as montanhas salvaram a humanidade. Diz que já há algum tempo, Iyemanjá, a barriga que pari filhos e filhas de todos os tipos, queria retornar de uma terra onde era muito maltratada. Suplicando a Olokum, os mares, choveu incessantemente dia e noite inundando aquela terra. Rodeada pelas águas, Iyemanjá fogiu por um volumoso rio que se formou. No meio do caminho as águas tiveram de parar diante de Okê, a montanha, que altiva colocou-se esguia à sua frente. A fim de prestar homenagem a Okê, Iyemanjá pediu a um de seus filhos que daquele momento em diante pratos feitos a base de quiabos, fossem oferecidos sobre as montanhas, em sinal de respeito e reconhecimento à sua antiguidade. Em retribuição, Okê dividiu-se em duas partes abrindo caminho para a fuga da mãe dos orixás. Por onde Iyemanjá passava, Okê ia se dividindo. Este é o motivo pelo qual encontramos ainda hoje montanhas “partidas” ao meio. Ao chegar diante de Okê, os grupos que procuravam Iyemanjá, a montanha lhes pareceu mais alta. Vendo a terra seca, concluíram que a mãe dos orixás só podia ter morrido na sua fuga. A humanidade assim estava salva. Iyemanjá pode voltar para o seu reino e fazer-se presente em todos os rios. Diante de Okê, o grupo que perseguia Iyemanjá tornou-se imóvel, encantados aos “pés da montanha” nunca mais saíram. Acredita-se que eles até hoje moram lá e se limitam a repetir as vozes daqueles que chegam diante do Orixá Okê.
terça-feira, 6 de setembro de 2011
O PRINCIPE DAS AGUAS
A pedido de um leitor hoje vamos falar sobre o orixa Logun ede. Dentre nós tal principio ancestral ganhou vários significados. Assim é comum ouvirmos várias histórias sobre o mesmo. Eu diria que Logun ede é um dos orixás que nos últimos anos mais se modificou. Como ouve-se dizer, cada um tem uma história para contar sobre ele, carinhosamente chamado de Logun. Em algumas destas histórias ele aparece como hermafrodita ou ainda um principio ora masculino, ora feminino. Não vamos, todavia entrar neste debate. Fato é que Logun ede é um dos orixás que nos foi legado pelo povo de igexá muito antigo e o seu culto pode ser encontrado em várias cidades africanas banhadas por um rio que recebe denominações como Einlé, Oxun e assim por diante. Verdade é que como um dos ancestrais fundadores do povo de igexá, Logun ede é um caçador e já tivemos oportunidade de falar sobre a importância de tal figura para os primeiros grupos humanos. Ele, porém guarda uma particularidade: sua relação com as águas. Isso aparece nos vários mitos. Logun relaciona-se com todas as Iabás, princípios femininos que garantem a fertilidade da terra e o equilíbrio do mundo. Como principio ancestral primordial do povo de igexá, como Obatalá e Oxumarê, Logun é a criação indiferenciada. Talvez seja este um dos motivos pelo qual ora ele aparece ligado à terra e ao mesmo tempo ligado às águas através da imagem do caçador que vive a beira do rio. Outra imagem bastante criativa guardada pela tradição é a associação de Logun às crianças. Na verdade, Logun relaciona-se a todos os seres vivos recém criados. Ele é a certeza da continuidade da criação renovada a cada dia. Daí entender o provérbio que diz: É santo menino que velho respeita. Outro símbolo desse ancestral ao lado do peixe, é o camarão. Há quem diga que Logun é o próprio camarão que enfeita as comidas votivas dedicadas a ele. Há terreiros também que associam Logun ede aos doces, razão pela qual recebe uma comida a base de milho quebrado chamada lêlê. Há quem refira-se a Logun como um pescador, mas gosto mesmo da imagem que diz ser Logun o leito que sustenta todos os rios. Desta maneira é ele quem garante o encontro das águas propiciando que todas elas sigam em direção ao mar. Logun é ainda mistério, mistério da transformação representado ora pela arma dos caçadores, ora pelo leque das Iabás. É por fim o buraco chamado Ibualama para onde corre todas as águas escuras do rio do mesmo nome, para retornarem cristalinas inspirando mais histórias sobre o príncipe das águas.
domingo, 7 de agosto de 2011
DO MUNDO À BARRIGA DAS GRANDES MÃES.
Hoje vamos falar sobre a barriga, entendida como tudo que diz respeito às “coisas de dentro.” Em outras palavras às entranhas Para alguns grupos africanos, a barriga reveste-se de particularidade. Ela goza de tanta importância que se encontra referendada na natureza por tudo que é redondo. Assim, panelas, cabaças, até mesmo algumas frutas e ainda a própria idéia de mundo podem ser entendidas a partir desta imagem. Na verdade, a “idéia da barriga” diz respeito a tudo que se organiza como sistema. Em muitas civilizações antigas a barriga é confundida com a própria terra que como a primeira imagem dar origem a todos os seres. Desta maneira ela é o grande ventre que “pare filhos e filhas de todos os tipos.”. Nos terreiros de candomblé, o culto às coisas de dentro, ao principio da transformação está relacionado com os princípios universais femininos, chamados Yabás. Todavia é sobre o culto à terra entendida como Grande Mãe, que isso pode ser melhor compreendido. Nos terreiros, pouco se fala sobre as Grandes Mães. Evocá-las consiste numa das maiores transgressões. Este fato vem apresentando modificações a partir dos anos 90. Como já tivemos oportunidade de lembrar, as religiões tradicionais africanas baseiam-se na noção de ancestralidade, entendida como princípios universais dos quais somos deslocamento. Esta ancestralidade é atravessada pelos nossos antepassados, pais e mães que nos antecederam que por sua vez surgem como manifestação desse Sagrado. Os antepassados que representam grandes famílias são cultuados em sociedades secretas, a exemplo da sociedade de Egungum preservada no Brasil. A Terra, reverenciada como Grande Mãe recebe culto em sociedades secretas semelhantes. Mesmo desaparecida no Brasil, tal conceito aparece de forma fragmentada em alguns momentos nos terreiros ou ainda num dos rituais mais complexos reelaborados pelos africanos iorubas, particularmente, e seus descendentes: o Ipadê, ou Padê, ocasião em que os antepassados de cada grupo são invocados como elementos fundantes das respectivas comunidades. Autores como Pierre Verger e Monique Augras, já chamaram a atenção sobre a reinterpretação do culto às Grandes Mães após o contato com o Cristianismo e o Islamismo. Entendidas como feiticeiras, ou ainda como algo que deve ser aplacado, tal culto que na origem era cercada de significado foi reduzido ao temor e às vezes ao medo. Desta maneira, temos, de fato, que retomar a imagem das Grandes Mães a partir de uma de suas representações mais antigas, a terra. Embora a representação do pássaro seja a que é hoje mais revisitada. Gosto muito de um poema registrado por Verger que diz que no inicio, Olodumaré enviou para criar o mundo, grupos liderados por Oxalá e Ogun. Estes grupos partiram acompanhados por uma mulher, que diante da missão dada a estes, retornou e interpelou Olodumaré para que ele definisse melhor a sua função. O poema segue contando que Olodumarë lhe disse que ela poderia segui-los em todos os lugares pois deveria ser “a mãe deles.” Como a imagem da terra, a figura da mãe, entendida como a terra, ventre aberto ao mundo foi perdendo significado dentre nós. Retomando fragmentos desse poema, podemos refletir sobre a importância das Mães Ancestrais, chamadas de “Minha Mãe” no universo religioso de alguns terreiros de candomblé. Desta maneira para que imagem mais fértil do que a barriga, “o mundo de dentro” e tudo que ele representa? Assim, a barriga recebe culto especial como a terra e algumas árvores. Ela é consagrada às Grandes Mães que mais do que principio de temor que deve ser aplacado estar para ser reverenciado como aquelas das quais nos desprendemos e ganhamos um corpo. Este é um dos maiores sentidos do silêncio que cerca seu culto, culto este que nas poucas vezes que é realizado é cercado de mistério onde palavras incompletas alternam-se com imagens tracejadas na terra que apenas poucos iniciados compreendem o significado. As Grandes Mães estão presentes, assim em tudo que tem vida, mas em especial é representada pelas mulheres graças à capacidade de gerar que desde o inicio foram investidas. Mulheres nos primórdios representadas como caçadoras atentas a qualquer ameaça à vida do grupo, daí a imagem do poema: “tu serás a mãe deles...”mulheres que desde o inicio receberam culto junto a terra pois dela dependia o equilíbrio e sustento do grupo, mas também que se relacionou com astros como o sol, a lua e constelações inteiras. É um pouco desse conhecimento que podemos refletir ao nos referirmos às Grandes Mães, diante das quais nos dobramos em direção a terra a fim de reconhecê-las como “minha mãe”, terra da qual somos parte e descendemos.
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Quem sou eu
- VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR
- Salvador, Bahia, Brazil
- Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.