sexta-feira, 22 de outubro de 2010

CANDOMBLE E SEXUALIDADE


O tema desta semana será melhor entendido se estendermos a sua compreensão às diferentes representações do corpo que as religiões de matriz africana reorganizadas no Brasil, cada uma a sua maneira, tomaram emprestadas das religiões tradicionais africanas, pois ao contrário de algumas tradições religiosas, a sexualidade não pode ser vista como algo separado, uma parte do todo, ou alguma coisa que se contrapõe ao Sagrado, mas integrante deste. Certa ocasião presenciei a fala de uma sacerdotisa chamando a atenção para o fato de que a sexualidade está no corpo todo. Ela faz parte da dinâmica da vida. Desta maneira, não podemos a conceber apenas como algo que se relaciona aos órgãos genitais que sem dúvida, depois da cor, foram os primeiros a serem demonizados pelo discurso cristão que inicialmente plantou nos nossos corpos a “maldição de Cam”e posteriormente o “diabo.” Como historicamente, estas falsas teologias já foram desconstruídas e uma vez esclarecido que elas apenas serviram para justificar a escravidão dos povos recém descobertos, sobretudo os africanos, frente aos impérios, ciências, saberes e tecnologias com as quais os colonizadores se depararam, não vamos entrar no mérito dessa questão, embora saibamos que algumas delas ainda sejam evocadas pelos discursos intolerantes de algumas lideranças religiosas que colocam-se veemente contra as chamadas “crenças incompatíveis com a fé cristã”, restringidas às práticas de cultos recém fundados fundamentados em dissidências pessoais de suas lideranças. Aprecio muito o mito que diz que no inicio, Olodumaré chamou Exu, principio da comunicação e primeiro ser dotado de corpo e lhe entregou os órgãos genitais a fim de levá-los à humanidade. Exu chamou então um macaco e passou a experimentá-los nele, a fim de encontrar o melhor lugar para colocá-los. Diz o mito que primeiro Exu colocou as genitálias nos pés, mas logo percebeu que sujavam muito. Assim apressou-se logo e as colocou nas axilas. Porém embaixo dos braços era muito incômodo. Exu viu que não daria certo. Mudou de idéia e as colocou abaixo do nariz, mas logo Exu viu que isso comprometeria o olfato, confundiria os cheiros. Assim, sabiamente Exu os localizou dentro das pernas. Ele havia encontrado o lugar certo, uma espécie de caminho, como ele, entre o mundo dos Antepassados, a terra, Ilé e o “ mundo dos vivos”. É por isso que eles são uma espécie de boca aberta para baixo. É através delas que os nossos antepassados se comunicam e vêem ao mundo. Esse mito é bastante ilustrativo do papel e significado daquilo sobre o qual estamos falando, ao mesmo tempo em que lança desafios para fazermos uma releitura senão sobre o corpo, da sexualidade, assunto que nos últimos anos não resistiu às concepções menos preconceituosas, e desta maneira tem reaparecido na emergência de temas como aborto, família, opção sexual, ética, representação social e questões de gênero. Fato é que quando o tema da sexualidade reaparece nas rodas de conversas, ele surge atravessado de preconceitos. Em linhas gerais, um trabalho sobre a relação entre sexualidade e sagrado ainda está para ser feito e que bom se este ultrapassasse o âmbito das religiões de matriz africana e adentrassem as igrejas cristãs, sobretudo as mais recentes que prometem tratamento e cura de comportamentos considerados desviantes. Talvez tal estudo sirva mesmo para refletir qual a importância do outro como lugar de manifestação do Sagrado. O exercício da sexualidade deve ser visto como momento de encontro ou reencontro com o meu Divino, totalmente diferente que se encontra no outro diante do qual me curvo por não compreendê-lo e ao mesmo tempo para ser preenchido. Desta maneira ela pode ser compreendida como algo mais amplo. Ela está no corpo todo. No toque, no olhar, no convívio. Ela transcende aos encontros repentinos, embora o Divino possa também se fazer presente nestes. Verdade é que a nossa sexualidade deve ser exercitada não tendo em vista um fim, mas para sermos felizes no mundo. Outro tema que precisa ser reconstruído na civilização Ocidental que em alguns momentos históricos privilegiou o horror, a tragédia em detrimento do riso, da alegria. Alguns resultados dessa espécie de distanciamento de nós mesmos, podemos apreciar através de posturas machista e sexistas que empurraram temas como o aborto e união entre pessoas do mesmo sexo para o âmbito religioso, já que a partir do momento em que a ciência recriada no século XIX dessacralizou o corpo, os novos modelos religiosos emergidos desse momento tomou para si a responsabilidade de sustentar certas verdades, frente a emergência dos novos campos de saber. Verdades estas que ainda hoje estamos lutando para devolvê-las ao âmbito das relações a fim de as torná-las mais humanas. Enquanto isso, esperamos que Exu continue experimentando para ver na contemporaneidade, qual o melhor lugar para ser colocado aqueles que mais foram associados ao demônio.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

POVO DE AXE E ELEIÇÕES


Acredito que a maioria das pessoas, como eu, cresceram ouvindo que religião e política são coisas que não se discutem. Tal fala é bem característica do contexto brasileiro onde as relações entre negros e não negros são escondidas o tempo todo, ora através de um silêncio sobre a cor dos primeiros que se dissolve nas questões sociais, ou mesmo pelo chamado racismo cordial que desde cedo determinou lugares e papéis para os negros. Assim, não poucas foram as vezes que ouvimos: ponha-se no seu lugar! Religião e política se discutem si. No caso da primeira, tivemos desde cedo que enfrentar os discursos preconceituosos sobre nós mesmos, sobre a maneira de vermos o Sagrado e nos colocarmos no mundo. Fomos chamados de bruxos, feiticeiras, supersticiosos, ignorantes, primitivos e assim por diante. A partir dos anos setenta, se não bastasse a fala preconceituosa e discriminatória da imprensa no período anterior, amparada pela medicina emergente no século XIX, tivemos que enfrentar o contundente discurso das igrejas eletrônicas que acabavam de chegar reforçando as posturas “anti negro” utilizando a mídia e segmentos do setor empresarial para mais uma vez desconstruir as imagens positivas que havíamos construído sobre nós mesmos, através da demonização de nossos cultos. Vinte anos depois, isso mobilizou o povo de candomblé que cansado de ver seus orixás, vodus, nkices e caboclos demonizados, seus templos invadidos, sem falar de crescentes agressões verbais, a levantar um movimento em torno da chamada intolerância religiosa que até então dentre nós, parecia que só atingia o povo judeu, uma vez que tinham nos ensinado que religião não se discute, já que estávamos integrados no povo brasileiro. Parece-nos que com o movimento contra a intolerância o povo de candomblé, ao menos os que se comprometeram com esta questão, começou a falar sobre religião e sobre as relações entre a sua religião e os outros modelos religiosos. A partir de agora não se tratava mais de reivindicar o reconhecimento do culto como religião, mas garantir o respeito à liberdade religiosa. Que bom que passamos a falar sobre religião. E como não citarmos o fato positivo de termos conseguido um dia para refletir sobre a intolerância religiosa? Salve o 21 de janeiro! O segundo tema não é menos emblemático que o primeiro. Trata-se da política. Esta aqui entendida no sentido mais africano possível: as questões relacionadas à cidade, a todos que fazem parte do egbé, a sociedade, à vida em grupo. Para as comunidades africanas tal conceito desde cedo foi elaborado a partir da concepção de um poder letigimado através da coletividade. E aqui nos separamos da concepção ocidental da criação do estado como um monstro, responsável por domar os desejos dos indivíduos. Embora não fuja a concepção divina do poder, a exemplo do mito quer diz que no inicio chegaram a terra “sete príncipes coroados”, podemos encontrar ao menos em alguns grupos africanos que ajudaram na nossa constituição, concepções como as de asogbá, mogbá, baba egbe e Iyalodê ao lado de outras que dividem com o Rei ou Rainha, funções de estabelecer a integração entre o Sagrado e a coletividade, verdadeira idéia do poder. Os mitos antigos, por exemplo, quando falam sobre as questões que contemporaneamente chamamos de “riscos sociais”, interrogam-se sobre quem errou: se o rei, ou a coletividade. Com estes exemplos, parece que conseguimos demonstrar que desde cedo, africanos e africanas estabeleceram relações entre religião e política. Em outras palavras, teologia e política, assim como teologia e economia, muito antes de Max Weber escrever que existia uma relação entre o protestantismo e o modelo econômico emergente no século XIX conhecido como capitalismo. Dentre as concepções inspiradas pelos mundos africanos, destaca-se a Iyalodê, literalmente a mãe que cuida, se ocupa das coisas da rua, do mundo de fora, das questões relacionadas ao mercado, a política e a saúde. A exemplo de mulheres que estavam a frente de Reinos, como Nzinga em Matamba (Angola), Acotirene, nos quilombos de Palmares, Zeferina no Quilombo do Urubu, Maria Felipa em Itaparica ao lado de tantas outras. Tal fato para nós é bastante desafiador frente a conquista feminina de poder nos representar apenas a partir de 1933, ou seja a 77 anos, a menos de um século. Deste modo não é verdade que as mulheres apenas servem para governar o mundo da casa, ao contrário; porque governam o mundo da casa, são capazes de governar qualquer mundo, basta atentarmos para as “mulheres do partido alto.” Por fim, queremos refletir que ao lado da bancada evangélica ou da bancada celestial, seria bom também para nós termos no Congresso um bobologbô, uma espécie de reunião de notáveis que discutem sobre determinada questão e orienta o governante a tomar uma decisão coletiva. Aos poucos quando começamos a falar de religião e política e assumirmos a relação entre elas, vamos fazendo isso. Enquanto esse fato não se torna realidade, bom mesmo é ficarmos atentos para os programas de governo que nos incluem ou aqueles que nos colocam para fora com a desculpa de que o estado brasileiro é laico e que religião é religião e cultura é cultura, outro tema que enfrentaremos futuramente. Afinal, os mesmos que nos ensinaram que religião e política não se discutem, a mesma elite que escondeu os feitos das mulheres do partido alto, dizendo que elas mal sabiam governar as suas cozinhas, nunca perderam estas questões de vista. O resultado, porém, está ai, crescemos alimentados de seus sonhos, esperanças e desejos de seguir em frente.

sábado, 9 de outubro de 2010

UMA FESTA PARA DUAS MÃES


No mês de setembro, duas comunidades terreiros reuniram-se para celebrar a vida de suas Iyalorixás: Hilda Dias dos Santos, Mãe Hilda Jitolu e Regina Sowzer, Mãe Regina Bangboxë. A primeira falecida no dia 19 de setembro de 2009 e a segunda no dia 25 de setembro do ano passado. As duas, mulheres negras, marcaram as suas comunidades com histórias de vida diferentes e alcançaram prestígio pela sua determinação e compromisso assumido com o mundo através da entrega ao culto aos orixás. Mãe Hilda, inspirou na década de 70 a fundação do Bloco Ilê Aiyê atualmente um dos ícones no cenário internacional de luta e combate ao racismo, não somente dando orientação espiritual num momento em que se negava o “poder revolucionário” da religião do negro, mas o acompanhando e orientando as suas maiores decisões. Ao partir para o mundo do mistério com 86 anos, Mãe Hilda deixou uma escola com mais de 320 crianças. Mãe Regina Bangboxe chegou ao Rio de Janeiro na década de 50, descendente consangüínea direta da família Bangboxe, Mãe Regina de Yemanjá ao partir para o mundo do awo (segredo) com mais de 90 anos deixou uma longa família consangüínea e religiosa em Santa Cruz da Serra na Baixada Fluminense. A festa dedicada a estas duas sacerdotisas chamada axexe de um ano visa, na verdade, colocar os vivos diante do mundo que os olhos não enxergam a fim de que estes entendam o verdadeiro valor e significado da vida. Venho insistindo que tal celebração ocasião em que se come e bebe, se celebra, comemora os nossos pais e mães durante uma semana, serve muito mais para os vivos do que para os que partiram. Aos primeiros cabem fazer memória dos segundos para as próximas gerações e aos segundos cabe dançar com os vivos certas cantigas que lhe são dedicadas, motivo pelo qual tal ritual é cercado de segredo. Tudo acontece à semelhança de um mercado onde se troca bens o tempo todo. No ritual do axexe, o dinheiro é trocado o tempo todo diante da morte, representada pelos ente queridos ali adorados. Idéia semelhante aparece na Grécia, Roma, Egito e em outras civilizações antigas onde moedas eram colocadas ora junto ao corpo, ora na boca dos falecidos a fim de pagar o transporte ao Deus Greco Romano Caronte ou a outro que conduzia os mortos até o mundo do mistério. Verdade é que o axexe é a maior afirmação de nossa ancestralidade. Ele não somente ajuda estreitar os laços com os antepassados mais também com a comunidade que durante uma semana reza unida afirmando a sua identidade, identidades negras reinventadas na diáspora forçada dos africanos e africanos pelo mundo. Por outro lado, o axexe é o cumprimento de uma promessa feita por Olodumare a Oyá diante da reverência a seu pai, o velho caçador por ocasião de sua morte. Neste ritual confiamos a Oyá aqueles que nasceram para a outra vida, a fim de que ela os conduza e tome conta deles. É também momento da afirmação de que nossos pais e mães continuarão conosco, nos orientando e nos conduzindo, afinal “pais e mães não descansam enquanto possuem filhos na terra”. Isso significa que eles estarão sempre conosco. Assim confiamos que passado um ano da partida desta Iyalorixás, elas estão presentes nas nossas lutas, no nosso dia a dia, nos nossos sonhos, nas nossas famílias, ajudando-nos a realizar os nossos projetos, dando-nos esperança quando algo parece terminado, iniciando mais uma etapa, quando algo parece que chegou ao fim, transformando as nossas lágrimas de saudade em alegria, o desespero em calma, o desassossego em paz. Mãe Hilda Jitolu como seu ancestral, continuará brilhando no céu como o sol e Iya Regina, como uma estrela que transforma qualquer escuridão na maior claridade, ou simplesmente como uma fonte de onde brota todas as riquezas que como Yemanjá corre como água para todos os cantos da terra.

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.