sábado, 9 de outubro de 2010

UMA FESTA PARA DUAS MÃES


No mês de setembro, duas comunidades terreiros reuniram-se para celebrar a vida de suas Iyalorixás: Hilda Dias dos Santos, Mãe Hilda Jitolu e Regina Sowzer, Mãe Regina Bangboxë. A primeira falecida no dia 19 de setembro de 2009 e a segunda no dia 25 de setembro do ano passado. As duas, mulheres negras, marcaram as suas comunidades com histórias de vida diferentes e alcançaram prestígio pela sua determinação e compromisso assumido com o mundo através da entrega ao culto aos orixás. Mãe Hilda, inspirou na década de 70 a fundação do Bloco Ilê Aiyê atualmente um dos ícones no cenário internacional de luta e combate ao racismo, não somente dando orientação espiritual num momento em que se negava o “poder revolucionário” da religião do negro, mas o acompanhando e orientando as suas maiores decisões. Ao partir para o mundo do mistério com 86 anos, Mãe Hilda deixou uma escola com mais de 320 crianças. Mãe Regina Bangboxe chegou ao Rio de Janeiro na década de 50, descendente consangüínea direta da família Bangboxe, Mãe Regina de Yemanjá ao partir para o mundo do awo (segredo) com mais de 90 anos deixou uma longa família consangüínea e religiosa em Santa Cruz da Serra na Baixada Fluminense. A festa dedicada a estas duas sacerdotisas chamada axexe de um ano visa, na verdade, colocar os vivos diante do mundo que os olhos não enxergam a fim de que estes entendam o verdadeiro valor e significado da vida. Venho insistindo que tal celebração ocasião em que se come e bebe, se celebra, comemora os nossos pais e mães durante uma semana, serve muito mais para os vivos do que para os que partiram. Aos primeiros cabem fazer memória dos segundos para as próximas gerações e aos segundos cabe dançar com os vivos certas cantigas que lhe são dedicadas, motivo pelo qual tal ritual é cercado de segredo. Tudo acontece à semelhança de um mercado onde se troca bens o tempo todo. No ritual do axexe, o dinheiro é trocado o tempo todo diante da morte, representada pelos ente queridos ali adorados. Idéia semelhante aparece na Grécia, Roma, Egito e em outras civilizações antigas onde moedas eram colocadas ora junto ao corpo, ora na boca dos falecidos a fim de pagar o transporte ao Deus Greco Romano Caronte ou a outro que conduzia os mortos até o mundo do mistério. Verdade é que o axexe é a maior afirmação de nossa ancestralidade. Ele não somente ajuda estreitar os laços com os antepassados mais também com a comunidade que durante uma semana reza unida afirmando a sua identidade, identidades negras reinventadas na diáspora forçada dos africanos e africanos pelo mundo. Por outro lado, o axexe é o cumprimento de uma promessa feita por Olodumare a Oyá diante da reverência a seu pai, o velho caçador por ocasião de sua morte. Neste ritual confiamos a Oyá aqueles que nasceram para a outra vida, a fim de que ela os conduza e tome conta deles. É também momento da afirmação de que nossos pais e mães continuarão conosco, nos orientando e nos conduzindo, afinal “pais e mães não descansam enquanto possuem filhos na terra”. Isso significa que eles estarão sempre conosco. Assim confiamos que passado um ano da partida desta Iyalorixás, elas estão presentes nas nossas lutas, no nosso dia a dia, nos nossos sonhos, nas nossas famílias, ajudando-nos a realizar os nossos projetos, dando-nos esperança quando algo parece terminado, iniciando mais uma etapa, quando algo parece que chegou ao fim, transformando as nossas lágrimas de saudade em alegria, o desespero em calma, o desassossego em paz. Mãe Hilda Jitolu como seu ancestral, continuará brilhando no céu como o sol e Iya Regina, como uma estrela que transforma qualquer escuridão na maior claridade, ou simplesmente como uma fonte de onde brota todas as riquezas que como Yemanjá corre como água para todos os cantos da terra.

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.