terça-feira, 19 de outubro de 2010

POVO DE AXE E ELEIÇÕES


Acredito que a maioria das pessoas, como eu, cresceram ouvindo que religião e política são coisas que não se discutem. Tal fala é bem característica do contexto brasileiro onde as relações entre negros e não negros são escondidas o tempo todo, ora através de um silêncio sobre a cor dos primeiros que se dissolve nas questões sociais, ou mesmo pelo chamado racismo cordial que desde cedo determinou lugares e papéis para os negros. Assim, não poucas foram as vezes que ouvimos: ponha-se no seu lugar! Religião e política se discutem si. No caso da primeira, tivemos desde cedo que enfrentar os discursos preconceituosos sobre nós mesmos, sobre a maneira de vermos o Sagrado e nos colocarmos no mundo. Fomos chamados de bruxos, feiticeiras, supersticiosos, ignorantes, primitivos e assim por diante. A partir dos anos setenta, se não bastasse a fala preconceituosa e discriminatória da imprensa no período anterior, amparada pela medicina emergente no século XIX, tivemos que enfrentar o contundente discurso das igrejas eletrônicas que acabavam de chegar reforçando as posturas “anti negro” utilizando a mídia e segmentos do setor empresarial para mais uma vez desconstruir as imagens positivas que havíamos construído sobre nós mesmos, através da demonização de nossos cultos. Vinte anos depois, isso mobilizou o povo de candomblé que cansado de ver seus orixás, vodus, nkices e caboclos demonizados, seus templos invadidos, sem falar de crescentes agressões verbais, a levantar um movimento em torno da chamada intolerância religiosa que até então dentre nós, parecia que só atingia o povo judeu, uma vez que tinham nos ensinado que religião não se discute, já que estávamos integrados no povo brasileiro. Parece-nos que com o movimento contra a intolerância o povo de candomblé, ao menos os que se comprometeram com esta questão, começou a falar sobre religião e sobre as relações entre a sua religião e os outros modelos religiosos. A partir de agora não se tratava mais de reivindicar o reconhecimento do culto como religião, mas garantir o respeito à liberdade religiosa. Que bom que passamos a falar sobre religião. E como não citarmos o fato positivo de termos conseguido um dia para refletir sobre a intolerância religiosa? Salve o 21 de janeiro! O segundo tema não é menos emblemático que o primeiro. Trata-se da política. Esta aqui entendida no sentido mais africano possível: as questões relacionadas à cidade, a todos que fazem parte do egbé, a sociedade, à vida em grupo. Para as comunidades africanas tal conceito desde cedo foi elaborado a partir da concepção de um poder letigimado através da coletividade. E aqui nos separamos da concepção ocidental da criação do estado como um monstro, responsável por domar os desejos dos indivíduos. Embora não fuja a concepção divina do poder, a exemplo do mito quer diz que no inicio chegaram a terra “sete príncipes coroados”, podemos encontrar ao menos em alguns grupos africanos que ajudaram na nossa constituição, concepções como as de asogbá, mogbá, baba egbe e Iyalodê ao lado de outras que dividem com o Rei ou Rainha, funções de estabelecer a integração entre o Sagrado e a coletividade, verdadeira idéia do poder. Os mitos antigos, por exemplo, quando falam sobre as questões que contemporaneamente chamamos de “riscos sociais”, interrogam-se sobre quem errou: se o rei, ou a coletividade. Com estes exemplos, parece que conseguimos demonstrar que desde cedo, africanos e africanas estabeleceram relações entre religião e política. Em outras palavras, teologia e política, assim como teologia e economia, muito antes de Max Weber escrever que existia uma relação entre o protestantismo e o modelo econômico emergente no século XIX conhecido como capitalismo. Dentre as concepções inspiradas pelos mundos africanos, destaca-se a Iyalodê, literalmente a mãe que cuida, se ocupa das coisas da rua, do mundo de fora, das questões relacionadas ao mercado, a política e a saúde. A exemplo de mulheres que estavam a frente de Reinos, como Nzinga em Matamba (Angola), Acotirene, nos quilombos de Palmares, Zeferina no Quilombo do Urubu, Maria Felipa em Itaparica ao lado de tantas outras. Tal fato para nós é bastante desafiador frente a conquista feminina de poder nos representar apenas a partir de 1933, ou seja a 77 anos, a menos de um século. Deste modo não é verdade que as mulheres apenas servem para governar o mundo da casa, ao contrário; porque governam o mundo da casa, são capazes de governar qualquer mundo, basta atentarmos para as “mulheres do partido alto.” Por fim, queremos refletir que ao lado da bancada evangélica ou da bancada celestial, seria bom também para nós termos no Congresso um bobologbô, uma espécie de reunião de notáveis que discutem sobre determinada questão e orienta o governante a tomar uma decisão coletiva. Aos poucos quando começamos a falar de religião e política e assumirmos a relação entre elas, vamos fazendo isso. Enquanto esse fato não se torna realidade, bom mesmo é ficarmos atentos para os programas de governo que nos incluem ou aqueles que nos colocam para fora com a desculpa de que o estado brasileiro é laico e que religião é religião e cultura é cultura, outro tema que enfrentaremos futuramente. Afinal, os mesmos que nos ensinaram que religião e política não se discutem, a mesma elite que escondeu os feitos das mulheres do partido alto, dizendo que elas mal sabiam governar as suas cozinhas, nunca perderam estas questões de vista. O resultado, porém, está ai, crescemos alimentados de seus sonhos, esperanças e desejos de seguir em frente.

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.