quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A GUERRA E A PAZ, A FOME E A ABUDÂNCIA, O PILÃO E O INHAME NA TERRA DE ELEGIGBÔ


O chamado “ciclo das águas”, ocasião em que alguns terreiros rememoram os ancestrais fundadores se encerra no décimo sexto dia com a celebração dos inhames. Neste dia, os passos lentos dos ancestrais são alternados por passos mais rápidos e o toque compassado dos atabaques cede lugar ao “toque de guerra”. É a festa do pilão. Sem sombra de dúvida, para os grupos que caminhavam sem parar, tal utensílio, significou uma verdadeira revolução tecnológica, semelhante a descoberta do fogo, da roda e do ferro. Agora se podiam conservar os alimentos através de farinhas transformadas posteriormente em papas. Tal celebração se desenvolve em torno de um ancestral sobre o qual não se fala muito nos terreiros, não se chama o nome e possui culto cercado de significações e mistérios: Oxoguiã, fundador do reino de Egigbô. Acredita-se que Oxoguiã seja a própria guerra. Ele representa as dificuldades e desafios que os primeiros grupos humanos enfrentaram para consolidar as civilizações. Se Oduduwa é o universo e Oxalufan, a criação, Oxoguiã é o principio universal que mantém as coisas vivas. Daí ele se confundir com a própria comida servida neste dia. Já tivemos a oportunidade de lembrar que a comida é fonte de axé, transmite vitalidade, calor e um quando o calor cessa, o corpo morre. De acordo com alguns mitos, Oxoguiã teria inventado a mão de pilão e garantido a sobrevivência e o esplendor do reino de Egigbô. Ainda hoje em tal região se comemora tal festa. Segundo algumas histórias, alimentados durante vários anos por tal raiz, homens e mulheres se fortaleceram e foram consolidando as civilizações. Este é pois um dos sentidos da “festa do inhame”ou “festa do pilão”, quando os terreiros de candomblé são invadidos por tempos míticos que se alternam num mesmo momento: a vida e a morte, a guerra e a paz, a fome e a abundância, as doenças e a saúde. Tudo acontece de forma muito rápida em torno de um pilão, protegido por um pano branco, o mesmo que representa a criação. Ao mesmo tempo em que a comida é servida, varas rituais, as mesmas utilizadas para evocar os antepassados e chamar a chuva, garantindo a fertilidade da terra, são distribuídas entre algumas pessoas que dão início a uma guerra ritual, batendo uma nas outras e nos presentes. Este ritual se reveste de tal significado que é proibido ficar parado. Ë preciso correr, dar voltas a fim de não afrontar tal orixá. Diz-se também que é um momento de “tirar as pragas”, e o povo africano bem sabe o que isso significa na sua vida. Assim sendo, há algumas pessoas que acreditam ser este também um ritual de purificação. Conceito que certamente alguns grupos africanos receberam do islamismo. Após esse ritual, a consolidação das primeiras civilizações está garantida, pode-se assim viver um novo momento, o tempo do “povo do azeite”, dos ancestrais filhos, representados por Exu, Ogun, Odé e Ossain, ancestrais que em alguns momentos confunde-se com o próprio Oxoguiã, pois ele está na fronteira da vida e da morte, do dia e da noite. Com Oxoguiã os elementos que compõem o universo não possuem definições rígidas. Ele nos ensina que não podemos olhar para trás, mas que é preciso seguir sempre em frente, pondo fim, assim na noção de passado. Em outras palavras, não há o que aconteceu, mas o futuro próximo eternizado em cada momento presente vivido em plenitude. Oxoguiã é o ancestral do coração, símbolo da inteligência africana. Conta um mito que para ele percorrer todos os cantos da terra, alternou a cor branca símbolo da criação pela azul, tornando-se invisível. O símbolo maior dessa festa é o ilhame amassado, comido também as pressas protegido pelo pano branco suspenso sobre nossas cabeças, para ganhar força, afinal a guerra não espera. Precisamos estar fortalecidos para vencê-la sempre. Comer tal iguaria fora desse pano se acredita provocar efeito contrário. Para um orixá sobre o qual não se fala muito, acreditamos que já dissemos o suficiente. Para concluir vamos fazer memória de alguns filhos e filhas desse ancestral presentes na cidade de Salvador. Iniciemos por Tia Massi, uma das sacerdotisas mais lembradas pelos terreiros de tradição ketu. Tia Massi era filha de Oxoguiã e liderou o Candomblé do Engenho Velho por muitos anos, falecendo com mais de cem anos. Ela foi a iniciadora de grandes lideranças religiosas como Mãe Tatá, atual Yalorixá da Casa Branca. Gostaríamos também de lembrar da Mameta de Nkice Xagui, que neste ano celebrou setenta anos de iniciação. É também de Oxoguiã, Mãe Carmem, filha consangüínea de Mãe Menininha do Gantois e atual Yalorixá. Por fim, há ainda Air José, descendente consangüíneo de Tio Bangboxé que a mais de quarenta anos lidera o Ilê Odô Ojê, popularmente conhecido como Pilão de Prata. A todos eles e ainda a aqueles que deixamos de mencionar o nosso respeito e admiração por encarnarem na sua vida a determinação e o desejo, como Oxoguiã, de ver continuada a obra de nossos fundadores, inaugurando um novo tempo, um tempo onde não se é permitido ficar parado, onde é possível manter relações com outros povos. Parar apenas para comer a massa de inhame pilada, ou fazer o mingau, a papa, a polenta, mesmo assim de olhos e corpos inteiros atentos, afinal o tempo não pára, o amanhã é um momento eternizado no hoje, na dúvida de compreender o provérbio é melhor optar por seu um guerreiro e ir a luta.

Um comentário:

  1. Muito forte e bem esrito este texto aprendi um pouco mais...vou ler todos os outros agora no feriado do carnaval...me deleitarei.
    Carlos Ribeiro

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.