segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

CANDOMBLÉ E DESTINO: ENTRE A ADVINHAÇÃO E DIVINAÇÃO



Hoje vamos abordar um tema bastante conhecido de todos, o que não diminui a sua complexidade: a concepção de destino para as religiões de matriz africanas. Há até alguns autores que afirmam ser tal conceito uma das maiores preocupações das religiões, pelo menos as mais antigas. Vamos então enfrentá-lo. Certo é que ao longo da história essa concepção recebeu significado diferente, ora através da filosofia, ora da religião, ora mesmo da própria ciência, pelo menos a gestada no século XIX como a arte de prever para controlar. Desta maneira, ao falarmos sobre o destino abrimos um diálogo com vários saberes e certamente há várias verdades sobre este a começar pela idéia de previsão que vão do sonho à ciência. O fato, é que estamos sempre querendo antecipar um acontecimento para prevenirmos. Há grupos que concebem o destino como algo relacionado às “forças ocultas”, que hora podem ser as forças da natureza, ou algum ser sobre humano. Outros acreditam ser o destino algo traçado, determinado que acompanha a vida de pessoas ou de grupos inteiros. Em ambos os casos, o destino é visto como um fim, ou uma força exterior, que em algumas vezes funda a experiência com o sagrado. Como exemplo, temos o entendimento da morte pela maioria das pessoas. Tema que já tivemos a oportunidade de abordar. Para as civilizações africanas a vida é sempre uma continuidade, é algo que não há fim. Continuamos na família, na natureza, no grupo ao qual pertencemos, nas crianças e no saber ancestral. Continuamos porque fomos concebidos não para está no mundo, mas sermos mundo. Daí a idéia de que tudo que há no “mundo visível” existe no “mundo invisível.” Em outras palavras, aquilo que os nossos olhos alcançam ou aquilo que os sentidos nos informam não se esgotam no que vemos ou no que sentimos. Para o pensamento africano, que influenciou profundamente as religiões reorganizadas no Brasil, o destino liga-se diretamente a questão ética/moral, aqui utilizada como sinônimo. Inexistindo a noção de predestinação, conceito emprestado por algumas culturas, mas de difícil compreensão para os ocidentais que vêem o mundo de forma fragmentada, não há lugar para se pensar o destino como um fim. Isso não significa que esta preocupação esteja ausente. Certa ocasião presenciei a resposta de um africano a um jovem muito preocupado com a morte, que a maioria acredita ser a única certeza, ou o destino de todos. O velho africano disse: não se preocupe com a morte, mas em viver a vida. Quando ela chegar, se entregue a ela. Uma coisa eu lhe garanto, ela não lhe matará duas vezes. A resposta soada como piada pela platéia que ouvia trazia dentro de si uma sabedoria que resumia parte da filosofia africana. É comum algumas pessoas procurarem as religiões de matriz africana para fazer previsões. Há até alguns programas que fazem uma lista dos acertos e dos desacertos, estes mesmos poderiam se ocupar com as “verdades cientificas”. Por que não agem dessa maneira? Resposta: porque o chamado saber ocidental, representado pela filosofia, pelo cristianismo e pela ciência se construíram e se sustentam desconstruindo outros saberes. O que é uma perda. Infelizmente ainda podemos assistir à exposição de alguns sacerdotes, ora na televisão, ora no rádio, ultimamente na internet, por telefone, ou mesmo na imprensa escrita fazendo previsões. Respeito o direito de cada um, mas temos que refletir até que ponto esta exposição á mídia fortalece a nossa ancestralidade. A arte de previsão tornou-se desde cedo algo altamente lucrativo, sobretudo para aqueles que vivem do comércio do sagrado, isso pode ser também estendido para algumas igrejas cristãs. Não vamos entrar nesse debate. Queremos reforçar neste primeiro momento que este é, pois, a concepção que a maioria das pessoas possui sobre as comunidades terreiros. Lembro de um estudante universitário que levei a uma dessas comunidades para “olhar”, expressão utilizada para referir-se a consulta aos ancestrais. Após uma conversa com o sacerdote, o estudante voltou-se para mim e disse: “é somente isso?” Achei que ele iria me dizer algo diferente, alguma coisa que iria acontecer. Respondi-lhe afirmando: que bom que o sacerdote não falou nada de diferente, ou melhor, disse tudo que você já sabia, assim, você não ocupa mais ele. De fato, entendi a sua queixa, o inesperado nos fascina, daí estarmos sempre atrás do “milagre”. Enquanto persistirmos nesta idéia, o milagre, entendido como experiência com o sagrado, passará despercebido por nós. Os diversos grupos africanos elaboraram ao longo de gerações a exemplo de outros povos o que foi chamado de “técnicas de adivinhação.” Não gosto muito desse termo, pois foge ao significado do destino ao qual estamos nos referindo. Não se trata, pois de adivinhar, no sentido de fazer previsões que depois podem ser julgadas, mas de uma divinação. O jogo de búzios, por exemplo, difundido em longa escala pelo Brasil é resultado de um conjunto de técnicas que antes de adivinhar tentam divinizar quem esta fazendo a consulta. Há outras técnicas de consulta, há até mesmo algumas que ficaram restritas as famílias descendentes de africanos. Quando falamos em divinizar estamos nos referindo a dar consciência, entendimento, conhecimento ao individuo das suas possibilidades. Assim a noção de destino pode ser traduzida como possibilidades. Por isso que inicialmente estabelecemos uma relação entre este conceito e as questões éticas/morais. O ato moral é imprevisível, ele apenas só pode ser julgado depois que aconteceu. O seu acontecimento, todavia não implica numa repetição, mesmo se pudéssemos expor o individuo às mesmas condições que lhe originou. Lembremos do provérbio: “o raio não cai duas vezes no mesmo lugar”, ou seja, o ser humano é imprevisível. Isso vale também para o mundo da natureza. Certa ocasião li no trabalho de um psiquiatra acometido por um câncer que “na natureza não existe nenhuma regra fixa que se aplique igualmente a todos. A variação é a própria essência da natureza.” É o mesmo que dizer se a natureza se comportasse segundo as leis que construímos para expressá-la, viveríamos sempre em meio ao Caos. Assim, quando falamos em destino estamos nos referindo a caminhos, possibilidades, não do outro, mas das minhas possibilidades. A experiência do destino é algo individual. Ë minha experiência. E se prestarmos mais atenção estamos nos deparando com o ele o tempo todo. Quando não acertamos, quando agimos sem levarmos em consideração o nosso destino, as minhas possibilidades, quando não conhecemos os nossos caminhos, ou se conhecemos o ignoramos. Há um mito yorubá que precisa ser muito bem interpretado para não cairmos na armadilha da predestinação. Aquele que conta a história que após os corpos serem modelados da terra, Ajalá, o incansável oleiro que molda os seres vivos no sentido bem amplo da palavra, atribui aleatoriamente a cada ser uma cabeça. Para estes grupos a cabeça é a síntese do destino. Daí o culto a cabeça pelas religiões de matriz africana. Cabeça que é o tempo todo “enfeitada”, ornada, adorada, através do culto a Olori, literalmente o Senhor da cabeça. Isso porque ori significa o corpo todo. Toda a vida, as possibilidades, os caminhos trazidos por cada individuo. Caminho que não pode ser mudado porque é individual e particular, mas pode ser dirigível, orientados. Esse culto a cabeça é tão importante que em algumas comunidades terreiros não se aceita “enfeites”, modificações, “coisas que estão na moda” e que nos últimos anos vem atingindo vertiginosamente o culto aos ancestrais. Chega-se a afirmar veemente que a cabeça antecede aos próprios orixás. Concepção talvez tirada da observação do feto que se desenvolve dentro da bolsa de água. De fato, é como se tudo se formasse a partir da cabeça. Assim, o “sistema adivinhatório” coloca o individuo diante de suas possibilidades. Nesse sentido o individuo confronta-se com os seus caminhos e a partir dali cabe a ele tomar consciência que as respostas dadas ou as saídas buscadas devem ser compreendidas a partir desses caminhos. Idéia semelhante surgiu na filosofia pós-guerra de alguns filósofos chamados existencialistas, pena que tal reflexão conduzia-os a negação da capacidade de significar. Verdade é, que africanos e africanas só conseguiram reconstruir o mundo fragmentado ou posto a prova pela escravidão porque se deram conta desde cedo de suas potencialidades. Deram-se conta de suas possibilidades, de seus caminhos, de seu destino. Para ilustrar mais essa concepção vou trazer a imagem da cobra, símbolo das possibilidades, símbolo da sabedoria africana. Podemos evocar ainda o camaleão, ancestral que primeiro percorreu a terra segundo um dos mitos yorubás a fim de certificar se a mesma estava firme para que o criador do universo pudesse pisá-la. Podemos ainda evocar o ancestral Ewá, identificada por algumas tradições como “a menina dos olhos”. Ewá corresponde dentre a tantas coisas a iris que além de controlar as imagens, as informa ao cérebro e ajuda na conversão dessas imagens que recebemos invertidas. Ai está Ewá. Daí a sua relação com todas as artes. O que faz o artista? Trabalha com possibilidades o tempo todo. Daí ser a obra de arte algo único e particular. Acredita-se que Ewá são os olhos de Deus. Dan a teria emprestado a Olodumaré na ocasião em que este ficou cego. Possibilidade apenas concebível pelo pensamento africano que retirou do sagrado duas noções: a onisciência, o saber tudo e a onipotência, o poder tudo. Acredita-se que há muitas verdades e o mundo criado participa o tempo todo do ser Divino. Dele emanamos. Graças à possibilidade de dissimulação, conta uma história que Ewá confundiu até a morte, salvando Orumilá, ancestral que preside os sistemas divinatórios. Ewá tem o poder de se transformar em qualquer coisa como tudo que é alongado. Ewá são as nossas possibilidades. Por isso acredita-se que quanto mais escuras estejam as águas, mas ela enxerga. Ewá tranforma o breu da noite em dia claro e a claridade na total escuridão. Em outras palavras, se agirmos conscientes do nosso destino, de nossas possibilidades, de caminhos que se abrem e se fecham o tempo todo, encontraremos sempre uma saída. Este conhecimento pode ser fornecido através das técnicas divinatórias, mas a decisão sobre qual caminho devemos percorrer sempre é uma escolha individual, afinal, como chama a atenção o provérbio: “cada cabeça é um mundo.” Conhecer estes caminhos para enfrentá-los, tornar-se assim o maior desafio, pois deste conhecimento depende a permanência de nossas vidas no mundo da vida.Se estivermos sempre atentos a ele, com certeza a morte não nos levará duas vezes.

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.