sexta-feira, 19 de março de 2010

SUCOM QUER OBRIGAR TERREIROS A TIRAR LICENÇA PARA TOCAR CANDOMBLÉ


Era quinta feira, dia consagrado aos donos do território, Odé, orixás caçadores, quando as 9 horas, um tímido rapaz tocou a campanhia do Ilê Odô Ogê, conhecido como Pilão de Prata, identificando-se como fiscal da Superintendência de Controle e Ordenamento do Solo Urbano do Município de Salvador (SUCOM). Constrangido, sua educação misturava-se com a timidez de está cumprindo a árdua tarefa de notificar aquela comunidade pelo barulho provocado pelos “instrumentos de percussão”, como referiu-se aos atabaques. Numa mistura de temor e respeito, várias vezes frisou que não entendia nada, estava ali apenas cumprindo o seu papel de fiscal. Fez algumas perguntas sobre o tipo de instrumentos que a comunidade realizava, quis sentar na escada que dá acesso a uma praça de dentro do terreiro, para não adentrar no recinto sagrado, mas insistir que fossemos para uma sala mais confortável. Lá ele me explicou que a sua visita não tinha nenhum caráter punitivo, apenas a intenção de averiguar os espaços e instrumentos que levaram um anônimo a denunciar o templo religioso. Logo me apresei e fiz ele ler o texto: O terreiro e o barulho na cidade, publicado no Jornal a Tarde na última sexta-feira. Achei até uma coincidência após tal provocação receber a visita de um representante do órgão que regula dentre outras coisas, sons urbanos, fixa níveis e horários em que é permitido sua emissão e cria licença para utilização sonora. Coincidência ou não, fato é que aquele jovem fiscal estava ali representando a Lei 5354/98. Enquanto seus olhos corriam atentamente no texto, apresentei-lhe uma resumida história daquela roça de candomblé, originada de uma casa de taipa coberta com folhas de zinco no ano de 1963, quando o atual “morro do Cachundé” era apenas uma duna e abaixo havia a lagoa utilizada pelas poucas pessoas para lavar roupas e por alguns terreiros, dentre eles, o Pilão de Prata para realizar alguns rituais. Lembrei também que tal comunidade terreiro já havia sido tombada pelo Instituto de Patrimônio Artístico Cultural da Bahia em 9 de dezembro de 2004, sem falar nos Decretos Lei Municipal e Estadual que o reconhece como Utilidade Pública. lhe mostramos o nosso Museu, a Biblioteca e a Escola que aguarda a dois anos financiamento para realização de atividades, embora nesse ano foi utilizada para exibir filmes durante o Ciclo litúrgico que foi concluído no dia 14 de março, com recursos do próprio terreiro e ajuda da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia. Nada adiantou, ele tinha que retornar com seu dever cumprido e baseado no Artigo 6 da Lei 5354/98 notificou a comunidade terreiro com o seguinte texto: “O responsável pelo estabelecimento supra-citado fica ciente que a emissão sonora gerada em atividades não residenciais, somente poderá ser efetuada após expedição pelo órgão competente da Prefeitura do Alvará de autorização para utilização sonora.” Isso me trouxe a lembrança dos tempos terríveis de Pedrito, que nunca saíram da memória do povo de candomblé. Mais uma vez salta os olhos que tais órgãos que deveriam estreitar relações com a cidade seja liderado por dirigentes mal assessorados que no mínimo deveriam saber interpretar a Lei 5354/98 que diz no inciso IV do Capítulo 14 que “não estão sujeitas às proibições referidas nesta Lei o sons produzidos por sinos de igrejas e de templos religiosos desde que sirvam exclusivamente para indicar as horas ou anunciar a realização de atos ou cultos religiosos.” Por que então, dois pesos e duas medidas? Por que uma vez por ano não podemos tocar os nossos clarins e atabaques, tocar nossos foguetes para anunciar a realização de nossos atos e cultos religiosos? O que dizer então das alvoradas festivas de outras denominações religiosas realizadas as 5 horas, ao raiar do dia? Queremos abrir esta discussão com o Sr. Superintendente. De que o Estado Brasileiro não é laico já sabemos, agora queremos no mínimo exercer a liberdade de culto, direito garantido pela nossa Constituição. Esse fato nos dá a entender na verdade, que os órgãos municipais e estaduais não dialogam entre si, pois esta mesma comunidade está entre os 1068 terreiros mapeados através de um trabalho pioneiro no Brasil, resultado da parceria entre a Prefeitura Municipal de Salvador, através da Secretaria de Reparação (SEMUR) e da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), o Ministério da Cultura, através da Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial (SEPPIR) em convênio com a Universidade Federal da Bahia através do Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO). Porque o catálogo produzido não esta sendo consultado? Se até agora de nada serviu para o povo de candomblé que até então aguarda o inicio da regularização fundiária e outras ações do poder público, que pelo menos sirva para os órgãos do governo consultar a fim de evitar o constrangimento de nossos sacerdotes que além da função religiosa cumprem também papel de médicos, psicólogos, economistas, sociólogos e outras. Gostaria com este texto de abrir o diálogo com os órgãos envolvidos com estas questões direta ou indiretamente, bem com a sociedade como um todo. A notificação 410703 de 18 de março de 2010 não nos intimida porque é equivocada, na verdade ela nos causa vergonha por estarmos sendo tão mal representados. O que não queremos mais, é assistir a demolição de outras comunidades terreiros, nem a cobrança indevida do IPTU, fato que vem se arrastando já há algum tempo na secretaria da fazenda do Municipio sem nenhuma posição significativa. O fato que aconteceu no terreiro Pilão de Prata poderia acontecer em qualquer outro. Ou quem sabe já não vem acontecendo? Fato é que o dano psicológico, causado pelo constrangimento e a vergonha de ter um carro da prefeitura e um agente de fiscalização na porta de uma residência é irreparável. De uma coisa temos a certeza: esta luta será travada juntamente com todos os Orixás, Nkices, Caboclos e Guias. Avante!!!

quinta-feira, 11 de março de 2010

OS TERREIROS E O BARULHO DA CIDADE



A menos de três semana, acordei com o apelo contundente de um radialista a Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (SUCOM) atendendo a reclamação de um ouvinte sobre o barulho de uma comunidade terreiro provocado pela queima de fogos e o toque de clarins e atabaque num dia de domingo as cinco horas da manhã. Fato como estes que nos últimos anos tem se tornado corriqueiro, sobretudo porque dão audiência, dentre tantas questões, nos ajuda a refletir sobre a inserção e luta pela permanência das comunidades/terreiros na cidade. Tal acontecimento me fez ainda rememorar o “candomblé rezado baixo”, momento em que estas religiões foram obrigadas substituir os instrumentos de percussão pelas palmas a fim de não incomodar e corromper a civilização e progresso da cidade recém idealizada a partir dos moldes europeu. Todavia, antes de comentar tal fato, quero mesmo é chamar a atenção para a importância destes terreiros de candomblé nos bairros em que estão inseridos. Na maioria das vezes, um terreiros de candomblé é sinônimo de saneamento básico, escolas, posto de saúde, linhas de ônibus, áreas de lazer, urbanização e segurança, graças à funções extra religiosas que estas comunidades desenvolvem nos bairros onde estão inseridas. Sem falar nos bairros que tiveram a sua origem nas roças de candomblé. As “roças de candomblé” não têm limites. Isso constitui um dos desafios para pensar a recriação do espaço na cidade pelas religiões de matriz africana. Nos últimos anos tem sido muito positiva a experiência da criação de “redes” que além de dar visibilidade a trabalhos realizados por todo o Brasil, solidificam laços essenciais para a manutenção das tradições negras no Novo Mundo. Verdade é que algumas dessas comunidades/terreiros constituídas no século XIX, que se afastaram do centro urbano, ora por prestígio ou afim de garantir o culto, atualmente enfrentam além da especulação imobiliária que empurra parte da população para a chamada periferia, os velhos discursos racista de um lado por alguns programas oportunistas e do outro pelas falas ignorantes de algumas denominações neopentencostais que em alguns casos tem ido para o embate físico. Soma-se a isso questões particulares de “vizinhos” que variam dos condomínios a pessoas físicas que acabam se aglomerando em torno dos terreiros e na maioria das vezes invadindo o espaço sagrado através de janelas que ignoram a lei que regulamenta tal construção ou mesmo escavando as encostas da comunidade para que as águas das chuvas comprometam o solo, provocando o deslizamento, facilitando a ocupação forçada, uma verdadeira “grilagem urbana”, história particular bem conhecida pela maioria dos terreiros de candomblé presentes na cidade de Salvador. Junta-se a estes fatos, a violência crescente na cidade que obriga estas comunidades não apenas conviver, mas procurar alternativas para enfrentá-la a fim se levar uma vida onde se possa cultuar os ancestrais. A vida dos terreiros na cidade é de fato um desafio. No momento em que ouvi aquele apelo inflamado do radialista ao órgão competente, fiquei pensando se o contrário acontecesse, se a sua reação seria a mesma? Em outras palavras. Se o povo de candomblé cada hora que fosse oportunado pelos sons de mais de 70 decibéis dos aparelhos de som dos vizinhos fizesse apelo a uma emissora de rádio? Conheço casos de terreiros que aos domingos, dia consagrado para a renovação dos laços da comunidade com os ancestrais através de um ritual chamado osé, são impossibilitados de realizar qualquer atividade religiosa porque as caixas de som colocadas sobre as lages provocam barulho desde as primeiras horas da manhã até a madrugada seguinte, contrariando todas as normas da Lei 5354/98 que dispõe sobre sons urbanos, fixa níveis e horários em que será permitida sua emissão, cria a licença para utilização sonora e dá outras providências. Sem falar naquelas comunidades que a fim de garantir o culto, assim o faz com a maior descrição, pois qualquer deslize pode acionar a ”igreja vizinha”, assim chamada pois pode está ao seu lado ou em frente, locais preferidos por algumas denominações a fim de ficarem mais “próximos do demônio” para combatê-lo, como costumam dizer . Acioná-las, significa dizer: colocar um alto falante, ou como se diz: virar a boca do alto falante ou das caixas de som para dentro do terreiro, sucumbindo o som dos atabaques, das palmas, a voz, ou qualquer outro instrumento litúrgico, sem falar das palavras de “exorcismo” lançadas em direção a comunidade/terreiro. E o que dizer dos foguetes que sobem por minuto em alguns bairros? Que no mínimo é uma linguagem que todos entendem sobre a qual recai o tabu de não falar para não se calar para sempre. Desconheço a existência de algum terreiro que já tenha acionado um vizinho ou alguma “igreja vizinha” Isso não significa que não haja registro de queixa, antes o fato de que, se na maioria dos casos assim não fazem é porque acreditam que a cordialidade é a melhor maneira de garantir o viver em comunidade como se todos ao redor do terreiro fosse parte dele. Os terreiros de candomblé vem na verdade, resistindo pois não querem mais assistir a derrubada de outra comunidade por um capricho ou falta de entendimento entre órgãos que deveriam representar a cidade, mas que ao contrário, ao invés de dialogar entre si estão sempre preparando um projeto para apresentar às comunidades/ terreiros próximo às eleições. Acredito, de fato, que estas coisas só acontecem porque alguns segmentos do poder público que deveriam apoiar, proteger e promover o patrimônio afro-brasileiro atuam ainda de forma tímida, ora pelo despreparo de alguns representantes, pela falta de conhecimento de questões referentes a cidade e os terreiros, ora mesmo pela falta de respeito e compromisso conosco. Esse fato resulta no ostracismo e no cinismo de algumas instituições que insistem em se lembrar do povo de candomblé a cada quatro anos. Pensar sobre as comunidades/terreiros e a cidade, é pensar, sobretudo, sobre nós mesmos. Sobre a dívida que as cidades tem com estas comunidades enquanto mantenedoras de identidades e centros de promoção da cidadania. Se os atabaques forem impedidos de tocar, se os foguetes forem proibidos de estourar, se as palmas, os sons dos instrumentos rituais não puderem mais ser ouvidos graças ao “apelo”da cidade, que sons restarão nestas ? Nas comunidades em que estamos inseridos? Certamente apenas o dos foguetes, das balas perdidas e o gemido de dor e desesperança saído num dia de uma casa, no outro de uma igreja, depois de um terreiro e assim por diante. Nós que acreditamos nos nossos ancestrais vamos continuar lutando para não vermos esse dia chegar; nós e as nossas gerações. Para isso vamos continuar afirmando que o “barulho” da cidade, entendido como os diferentes apelos que traduzem a sua complexidade podem se transformar na mais linda melodia. Talvez possamos começar desligando os alto falantes e caixas de sons que estão voltadas para os nossos vizinhos a fim de ouvirmos os sons que falam dentro de nós mesmos. Em outras palavras, precisamos dar voz ao sagrado que mora dentro de nós. Isso é vivência de nossa ancestralidade.

terça-feira, 9 de março de 2010

CONFIRA O PROGRMA DA DISCIPLINA CULTURA ALIMENTAR BRASILEIRA


CÓDIGO : NUT A27

NOME
Cultura Alimentar Brasileira

CARGA HORÁRIA: 51 TEÓRICA

DEPARTAMENTO:
Ciências da Nutrição

EMENTA
Caracterização da diversidade cultural no Brasil. As raízes culturais nas diversas regiões do País. Determinantes da cultura alimentar brasileira. Hábitos alimentares que guardam traços da herança cultural e a forma como estes são mantidos. Influência da globalização e da industrialização nos hábitos alimentares brasileiros.


OBJETIVOS

- Abordar a formação dos hábitos alimentares a partir das diferentes matrizes simbólicas que entraram na formação da “cultura brasileira”
- Compreender a diversidade alimentar a partir de uma leitura sócio-antropológica e histórica do ato de comer;
- Subsidiar o conhecimento sobre os hábitos e os rituais do comer na sociedade brasileira.

METODOLOGIA*


AULAS TEÓRICAS:


Estudo de uma bibliografia básica
Relatos e descrições etnográficas

* Poderá ser realizada também visitação a mercados

AVALIAÇÃO

Prova escrita
Seminário
Relatório
Participação em sala de aula.


CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

Modulo I- Formação da cultura alimentar brasileira
Referência: HUE, Sheila Moura. Delícias do Descobrimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

Modulo II- Hábitos Alimentares e heranças culturais.
Referência: CASCUDO, Luís da Câmara Cascudo. História da alimentação Brasileira. 3ed. São Paulo: Global, 2004.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 51ed. São Paulo: Global, 2004.
QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador: Teatro XVIII, 2006.


Modulo III- Padrões alimentares e seus significados na cultura brasileira.
Referencia: CALASANS, Jose. Cachaça moça Branca. 2ed.Salvador: Progresso, 1951
CASCUDO, Luís da Câmara Cascudo. História da alimentação Brasileira. 3ed. São Paulo: Global, 2004.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 51ed. São Paulo: Global, 2004.
MAIOR, Mario Souto. Folclore e Alimentação. Recife: Massangana. 1988.

Modulo IV- Cultura alimentar brasileira e industrialização.
Referência:Globalização. In: FREIXA, Dolores &CHAVES, Guta. Gastronomia no Brasil e no mundo.São Paulo: Senac, 2008. p.252-277


REFERÊNCIA COMPLEMENTAR

ANÔNIMO. O livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Biblioteca Nacional de Nápolis: Lisboa, 1996.

CAVALCANTI, Pedro. A pátria nas panelas. São Paulo: SENAC, 2007.

FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
________ Nordeste. São Paulo: Global Editora, 1978.



sábado, 6 de março de 2010

A ARTISTA DO UNIVERSO


Nos primórdios, Oxalá criou os sons, mas tudo continuava ainda confuso. Oxun combinou os diferentes tons. Ela havia acabado de inventar a música.
O culto ao orixá Oxun no Brasil confunde-se com o de Yemanjá, sua mãe. De acordo com o mito, Oxun teria nascido após a imposição das mãos de todos os orixás sobre a sua mãe. Oxun é o principio ancestral da maternidade, conceito que nos últimos anos passou a ser contestado por algumas correntes do movimento feminista, mas que ainda goza dentre os africanos valor fundamental. Enquanto alguns ancestrais são chamados de Ye, mãe, Oxun é chamada de Yeye, mamãe. Acredita-se que no momento da divisão dos poderes, enquanto alguns ancestrais brigavam pela terra, outros pelo ferro, Oxun apressou-se e pegou eyn, o ovo. A partir desse fato ela passou a acompanhar todos os acontecimentos. Oxun está em tudo, pois ela regula tudo que é cíclico. Ela não somente comanda o ciclo menstrual, mas também as estações e o próprio movimento dos planetas. Oxun regula as marés, cuida das crianças e preside desde a fecundação ao amadurecimentos dos frutos. A esse principio ancestral são consagradas todas as frutas. A trinta anos atrás, quando ainda “a cidade de Salvador era um pomar”, no mês de dezembro, por ocasião da festa de Nossa Senhora da Conceição, barracas eram espalhadas em torno da Igreja para celebrar as “frutas do ano.” Oxun foi a primeira pediatra do Universo. Ela auxiliava as crianças na hora de vir ao mundo ou retornar deste. Oxun assim acompanha os ritos de iniciação no mundo dos antepassados, pois ela está a frente de todos os nascimentos. Desde cedo se associou esse principio ancestral as águas, Oxun, de fato é todas as águas, sobretudo o liquido que preenche a placenta. Na verdade, este principio comanda “todas as coisas de dentro”. Oxun garante o funcionamento do nosso organismo. Assim, seu domínio vai além do sistema gastro-intestinal. Fato este que a fez desde cedo ser associada à comida. Se diz nos terreiros que Oxun é a dona da panela. Se a panela representa o mundo, depois de tudo que explicamos, podemos dizer que Oxun dar sentido ao mundo, por isso é atribuída a ela, a invenção da linguagem. Como a costureira, Oxun une partes diferentes e o resultado é a quebra de fronteiras, a mesma observada no mercado. Falando sobre o mercado, antes mesmo dos anos 60, referencial do momento em que algumas mulheres foram reinvidicando a sua independência, as sociedades yorubás já conheciam, além de mulheres no mercado de trabalho, sem abrir mão de sua maternidade, a figura da Yalodê, literalmente a “mãe que vai rua”, ou a mãe que está na rua. Ainda hoje podemos encontrar a Yalodê entre os yorubás. Trata-se de uma mulher designada pelas outras mulheres para tomar assento em decisões “fora de casa”. A Yalodê fala no conselho por todas as mulheres e acredita-se que assim foi “desde o principio do mundo”, quando Oxun foi convidada para acompanhar os orixás caçadores por todos os cantos da terra. Outra imagem vinculada à Oxun é o pássaro. Verdade é que todas as aves pertencem a Oxun. Oxun cuida do mundo como a galinha cuida dos pintinhos embaixo de suas asas. As histórias sobre este principio ancestral confunde-se com as histórias sobre a própria cidade de Salvador, cidade beira mar onde se canta em coro que “todo mundo é de Oxun”. Segundo o Babalorixá Air José, três mulheres de Oxun comandaram a cidade no século passado: Maria Bibiana, Senhora de Oxun; Maria Escolástica, Menininha do Gantois, a Oxun mais cantada pelo mundo afora e Caetana América Sowzer, a saudosa Yá Caetana Bagbosé. Mãe Caetana era filha de Felizberto Sowzer, conhecido como Benzinho, que era filho de Júlia Andrade, filha de Tio Bangbose. Benzinho era filho de Ogun e foi o responsável pela organização do jogo de búzios, conhecido como merindilogun no Brasil, conforme informações de seu neto consangüíneo Air José, filho de Tertuliana Souza irmã de Yá Caetana. No terreiro Pilão de Prata, a festa de Oxun realizada no próximo domingo é uma das mais concorridas. A festa é dedicada a Oxun de Mãe Caetana. Nesta comunidade, Oxun recebe o título de Yalê, mãe da casa. Caetana América Sowzer ainda hoje é referenciada pelas pessoas que teve o privilégio de conviver com ela como mestra. Seu pai teria “traduzido” um dos sistemas advinhatórios africanos mais complexos, mas coube a ela zelar com determinação dos princípios fundamentais para a consolidação dos elementos civilizatórios negro-africanos no Brasil através da religião dos Orixás. Mãe Caetana era uma Apetebi, como as esposas dos Babalawo ela começava a transmitir as histórias sagradas desde cedo às crianças que tomava para criar. Segundo o Pai Air, Mãe Caetana exigia que alguns momentos rituais a fim de não se perderem fossem registrados em cadernos, hoje amarelados. Mãe Caetana era costureira, gostava de fazer bonecas, adorava artes. Era também música, tocava violino. Yá Caetana fez uma brilhante caminhada, como Oxun entendeu cedo que a serenidade vence qualquer guerra e que a simpatia é capaz de transformar qualquer momento em festa e alegria. Hoje, aquela que foi chamada de Laju omim, olhos d’agua, uma nascente, fonte, continua no mundo, agora no céu, certamente compondo a mais bela constelação, brilhando como uma estrela.

AO REI DO MUNDO...


Xangô é rei. É rei no Batuque do Rio Grande do Sul, é rei no Xambá de Pernambuco, estado onde o seu nome é evocado para designar as religiões de matriz africana, é rei nos candomblés nagôs do Recôncavo bahiano, é rei no Tambor de Mina no Maranhão e é rei nos candomblés jeje nagô na cidade de Salvador. Não vamos entrar no mérito de suas histórias, falar sobre os vários mitos sobre a sua origem, mas sobre o significado da figura do rei para a consolidação de identidades negro-africanas fragmentadas através da escravidão. Em algumas cantigas, Xangô é reverenciado como rei do mercado, Obá loja e rei do mundo, Obá aiyê. Mercado, coração das sociedades iorubás, onde se alternavam o tempo todo bens materiais com simbólicos. Verdade é que no Brasil, essa figura foi fundamental no processo de reconstrução e manutenção dos elementos civilizatórios negro-africanos no Novo Mundo. Não poderia ser diferente, manifestação do Divino, a figura do rei representa continuidade, a permanência da grande família africana inclusiva, que com o passar do tempo foi ampliada a fim de agregar novos membros, agora descendentes de portugueses, índios, judeus, ciganos e tantos outros. O culto a Xangô é assim o culto à continuidade, à descendência, à família mantida viva graças às mulheres e as crianças. Daí a sua relação com os antepassados e o porque de Xangô ser o ancestral mais festejado na sociedade secreta de Egungum ou na ocasião dos rituais fúnebres, ocasião em que os iniciados levam no pescoço uma conta em sua homenagem. Ao contrário do que se diz o culto a Xangô possui relações estreitas com a morte, com o culto aos antepassados, pois ele mesmo representa toda a sua descendência. Mas de onde surgiu a idéia de que “Xangô tem medo da morte”? Talvez da má compressão da simbologia do rei, associado a outras leituras. Explicando: ao contrário do que muitas pessoas afirmam, o elemento de Xangô é a terra. Seu culto rememora às civilizações que desde cedo foram estabelecidas pelos africanos. Xangô é dono de tudo que existe em cima da terra. Graças a essa relação, desde cedo esse ancestral foi evocado como pedra e tudo que estas significam numa edificação. Desta maneira este principio ancestral está presente nos corpos celestes. Essa relação entre as pedras e o corpo é muito antiga e pode ser encontrada em algumas regiões do Mediterrâneo e partes do Continente Africano. Fogo, assim, e tudo que ele representou para a humanidade era então obtido através da fricção destes dois corpos, porém, anterior a esse momento, é bem provável que a humanidade já utilizasse as pedras para reter o calor, aproveitando para conservar os alimentos. Já demonstramos em outro momento que a temperatura é algo fundamental para os seres vivos. Quando o corpo perde o seu calor, principio de vitalidade, acredita-se que ele está morto. Não podemos confundir esse momento com os Antepassados. Estes, como Xangô são muito quente, pois estão vivos, continuam sob as tiras de pano que separam de nossos olhos o mistério da vida e da morte. Assim, quando evocamos o Rei nos rituais fúnebres, estamos afirmando que acreditamos na nossa ancestralidade e que ela é a garantia de nossa permanência para sempre no mundo. Quanto ao corpo, devolvemos a terra, pois como já comentamos, dessa devolução depende a continuidade da vida dos que virão, afinal, tudo não é cíclico? Tudo não é uma manifestação do Sagrado? A partir dessa explicação podemos pensar várias coisas. É certo que africanos e africanas tinham em mente a concepção de que as pedras deveriam estar juntas para poder produzir calor a fim de manter-se vivas. E assim fizeram. Assim uma das características do culto ao rei preservada no Brasil foi a presença de muitas pessoas. O culto a Xangô requer muitas pessoas. Como se diz. Xangô adora gente. E o que é o mercado? Nada mais do que indivíduos que rompem suas fronteiras, quebra tabus. O rei também adora festas, comidas bebidas. Não foi a toa que quando os africanos organizaram os primeiros afoxés, o rei ia a frente, que diga os maracatus de Pernambuco, e falando em Maracatu, como não falar da Kalunga, a boneca que diviniza nossos antepassados? Falando sobre esse ancestral, no Brasil não podemos deixar de mencionar o nome de Tio Bangboxé. Ele teria chegado ao Brasil para ajudar na constituição de alguns terreiros de candomblé que se formavam na cidade de Salvador no século XIX onde o culto a Xangô era elemento central. Fiel a sua missão, Bangboxé Obitikó, constituiu no Brasil longa descendência através da família consangüínea que formou e da religiosa que desde cedo constituiu através de suas viagens a Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife. Ainda hoje membros da família Bangboxe vem da Nigéria visitar seus descendentes brasileiros. O Babalorixá Air José lembra com saudade quando há dezesseis anos, sua tia consangüínea e bisneta de Tio Bangboxe passava horas conversando com seus parentes na sua casa, situada à Rua Xisto Bahia. Da família consangüínea, destacamos a figura de Tia Júlia. Era filha do Tio Bangboxé; e da religiosa, Eugênia Anna dos Santos, a inesquecível Mãe Aninha que a cem anos atrás fundou o Ilê Axe Opo Afonjá. No terreiro fundado por Tia Júlia no Matatu, está à frente ainda hoje, Irenea Sowzer, filha de Xangô e última bisneta do Tio Bangboxé e no Terreiro da Rua Xisto Bahia fundado por Yá Caetana, está Yá Haydee Paim, também de Xangô. Xangô que é rei, que gosta de coisa bonita e é muito vaidoso. Não no sentido pejorativo que utilizamos a palavra. Vaidade no sentido da auto estima. O culto a Xangô nos faz olhar para dentro de nós mesmos, nos faz perceber que quando permanecemos unidos como pedras que formam o alicerce de uma construção, somos fortes. Ele ainda nos impulsiona a lutar contra todos aqueles que não se alegram com a nossa alegria. Viva o rei !!!!!

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.