sábado, 6 de março de 2010
AO REI DO MUNDO...
Xangô é rei. É rei no Batuque do Rio Grande do Sul, é rei no Xambá de Pernambuco, estado onde o seu nome é evocado para designar as religiões de matriz africana, é rei nos candomblés nagôs do Recôncavo bahiano, é rei no Tambor de Mina no Maranhão e é rei nos candomblés jeje nagô na cidade de Salvador. Não vamos entrar no mérito de suas histórias, falar sobre os vários mitos sobre a sua origem, mas sobre o significado da figura do rei para a consolidação de identidades negro-africanas fragmentadas através da escravidão. Em algumas cantigas, Xangô é reverenciado como rei do mercado, Obá loja e rei do mundo, Obá aiyê. Mercado, coração das sociedades iorubás, onde se alternavam o tempo todo bens materiais com simbólicos. Verdade é que no Brasil, essa figura foi fundamental no processo de reconstrução e manutenção dos elementos civilizatórios negro-africanos no Novo Mundo. Não poderia ser diferente, manifestação do Divino, a figura do rei representa continuidade, a permanência da grande família africana inclusiva, que com o passar do tempo foi ampliada a fim de agregar novos membros, agora descendentes de portugueses, índios, judeus, ciganos e tantos outros. O culto a Xangô é assim o culto à continuidade, à descendência, à família mantida viva graças às mulheres e as crianças. Daí a sua relação com os antepassados e o porque de Xangô ser o ancestral mais festejado na sociedade secreta de Egungum ou na ocasião dos rituais fúnebres, ocasião em que os iniciados levam no pescoço uma conta em sua homenagem. Ao contrário do que se diz o culto a Xangô possui relações estreitas com a morte, com o culto aos antepassados, pois ele mesmo representa toda a sua descendência. Mas de onde surgiu a idéia de que “Xangô tem medo da morte”? Talvez da má compressão da simbologia do rei, associado a outras leituras. Explicando: ao contrário do que muitas pessoas afirmam, o elemento de Xangô é a terra. Seu culto rememora às civilizações que desde cedo foram estabelecidas pelos africanos. Xangô é dono de tudo que existe em cima da terra. Graças a essa relação, desde cedo esse ancestral foi evocado como pedra e tudo que estas significam numa edificação. Desta maneira este principio ancestral está presente nos corpos celestes. Essa relação entre as pedras e o corpo é muito antiga e pode ser encontrada em algumas regiões do Mediterrâneo e partes do Continente Africano. Fogo, assim, e tudo que ele representou para a humanidade era então obtido através da fricção destes dois corpos, porém, anterior a esse momento, é bem provável que a humanidade já utilizasse as pedras para reter o calor, aproveitando para conservar os alimentos. Já demonstramos em outro momento que a temperatura é algo fundamental para os seres vivos. Quando o corpo perde o seu calor, principio de vitalidade, acredita-se que ele está morto. Não podemos confundir esse momento com os Antepassados. Estes, como Xangô são muito quente, pois estão vivos, continuam sob as tiras de pano que separam de nossos olhos o mistério da vida e da morte. Assim, quando evocamos o Rei nos rituais fúnebres, estamos afirmando que acreditamos na nossa ancestralidade e que ela é a garantia de nossa permanência para sempre no mundo. Quanto ao corpo, devolvemos a terra, pois como já comentamos, dessa devolução depende a continuidade da vida dos que virão, afinal, tudo não é cíclico? Tudo não é uma manifestação do Sagrado? A partir dessa explicação podemos pensar várias coisas. É certo que africanos e africanas tinham em mente a concepção de que as pedras deveriam estar juntas para poder produzir calor a fim de manter-se vivas. E assim fizeram. Assim uma das características do culto ao rei preservada no Brasil foi a presença de muitas pessoas. O culto a Xangô requer muitas pessoas. Como se diz. Xangô adora gente. E o que é o mercado? Nada mais do que indivíduos que rompem suas fronteiras, quebra tabus. O rei também adora festas, comidas bebidas. Não foi a toa que quando os africanos organizaram os primeiros afoxés, o rei ia a frente, que diga os maracatus de Pernambuco, e falando em Maracatu, como não falar da Kalunga, a boneca que diviniza nossos antepassados? Falando sobre esse ancestral, no Brasil não podemos deixar de mencionar o nome de Tio Bangboxé. Ele teria chegado ao Brasil para ajudar na constituição de alguns terreiros de candomblé que se formavam na cidade de Salvador no século XIX onde o culto a Xangô era elemento central. Fiel a sua missão, Bangboxé Obitikó, constituiu no Brasil longa descendência através da família consangüínea que formou e da religiosa que desde cedo constituiu através de suas viagens a Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife. Ainda hoje membros da família Bangboxe vem da Nigéria visitar seus descendentes brasileiros. O Babalorixá Air José lembra com saudade quando há dezesseis anos, sua tia consangüínea e bisneta de Tio Bangboxe passava horas conversando com seus parentes na sua casa, situada à Rua Xisto Bahia. Da família consangüínea, destacamos a figura de Tia Júlia. Era filha do Tio Bangboxé; e da religiosa, Eugênia Anna dos Santos, a inesquecível Mãe Aninha que a cem anos atrás fundou o Ilê Axe Opo Afonjá. No terreiro fundado por Tia Júlia no Matatu, está à frente ainda hoje, Irenea Sowzer, filha de Xangô e última bisneta do Tio Bangboxé e no Terreiro da Rua Xisto Bahia fundado por Yá Caetana, está Yá Haydee Paim, também de Xangô. Xangô que é rei, que gosta de coisa bonita e é muito vaidoso. Não no sentido pejorativo que utilizamos a palavra. Vaidade no sentido da auto estima. O culto a Xangô nos faz olhar para dentro de nós mesmos, nos faz perceber que quando permanecemos unidos como pedras que formam o alicerce de uma construção, somos fortes. Ele ainda nos impulsiona a lutar contra todos aqueles que não se alegram com a nossa alegria. Viva o rei !!!!!
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Quem sou eu
- VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR
- Salvador, Bahia, Brazil
- Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.
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