sábado, 6 de março de 2010

A ARTISTA DO UNIVERSO


Nos primórdios, Oxalá criou os sons, mas tudo continuava ainda confuso. Oxun combinou os diferentes tons. Ela havia acabado de inventar a música.
O culto ao orixá Oxun no Brasil confunde-se com o de Yemanjá, sua mãe. De acordo com o mito, Oxun teria nascido após a imposição das mãos de todos os orixás sobre a sua mãe. Oxun é o principio ancestral da maternidade, conceito que nos últimos anos passou a ser contestado por algumas correntes do movimento feminista, mas que ainda goza dentre os africanos valor fundamental. Enquanto alguns ancestrais são chamados de Ye, mãe, Oxun é chamada de Yeye, mamãe. Acredita-se que no momento da divisão dos poderes, enquanto alguns ancestrais brigavam pela terra, outros pelo ferro, Oxun apressou-se e pegou eyn, o ovo. A partir desse fato ela passou a acompanhar todos os acontecimentos. Oxun está em tudo, pois ela regula tudo que é cíclico. Ela não somente comanda o ciclo menstrual, mas também as estações e o próprio movimento dos planetas. Oxun regula as marés, cuida das crianças e preside desde a fecundação ao amadurecimentos dos frutos. A esse principio ancestral são consagradas todas as frutas. A trinta anos atrás, quando ainda “a cidade de Salvador era um pomar”, no mês de dezembro, por ocasião da festa de Nossa Senhora da Conceição, barracas eram espalhadas em torno da Igreja para celebrar as “frutas do ano.” Oxun foi a primeira pediatra do Universo. Ela auxiliava as crianças na hora de vir ao mundo ou retornar deste. Oxun assim acompanha os ritos de iniciação no mundo dos antepassados, pois ela está a frente de todos os nascimentos. Desde cedo se associou esse principio ancestral as águas, Oxun, de fato é todas as águas, sobretudo o liquido que preenche a placenta. Na verdade, este principio comanda “todas as coisas de dentro”. Oxun garante o funcionamento do nosso organismo. Assim, seu domínio vai além do sistema gastro-intestinal. Fato este que a fez desde cedo ser associada à comida. Se diz nos terreiros que Oxun é a dona da panela. Se a panela representa o mundo, depois de tudo que explicamos, podemos dizer que Oxun dar sentido ao mundo, por isso é atribuída a ela, a invenção da linguagem. Como a costureira, Oxun une partes diferentes e o resultado é a quebra de fronteiras, a mesma observada no mercado. Falando sobre o mercado, antes mesmo dos anos 60, referencial do momento em que algumas mulheres foram reinvidicando a sua independência, as sociedades yorubás já conheciam, além de mulheres no mercado de trabalho, sem abrir mão de sua maternidade, a figura da Yalodê, literalmente a “mãe que vai rua”, ou a mãe que está na rua. Ainda hoje podemos encontrar a Yalodê entre os yorubás. Trata-se de uma mulher designada pelas outras mulheres para tomar assento em decisões “fora de casa”. A Yalodê fala no conselho por todas as mulheres e acredita-se que assim foi “desde o principio do mundo”, quando Oxun foi convidada para acompanhar os orixás caçadores por todos os cantos da terra. Outra imagem vinculada à Oxun é o pássaro. Verdade é que todas as aves pertencem a Oxun. Oxun cuida do mundo como a galinha cuida dos pintinhos embaixo de suas asas. As histórias sobre este principio ancestral confunde-se com as histórias sobre a própria cidade de Salvador, cidade beira mar onde se canta em coro que “todo mundo é de Oxun”. Segundo o Babalorixá Air José, três mulheres de Oxun comandaram a cidade no século passado: Maria Bibiana, Senhora de Oxun; Maria Escolástica, Menininha do Gantois, a Oxun mais cantada pelo mundo afora e Caetana América Sowzer, a saudosa Yá Caetana Bagbosé. Mãe Caetana era filha de Felizberto Sowzer, conhecido como Benzinho, que era filho de Júlia Andrade, filha de Tio Bangbose. Benzinho era filho de Ogun e foi o responsável pela organização do jogo de búzios, conhecido como merindilogun no Brasil, conforme informações de seu neto consangüíneo Air José, filho de Tertuliana Souza irmã de Yá Caetana. No terreiro Pilão de Prata, a festa de Oxun realizada no próximo domingo é uma das mais concorridas. A festa é dedicada a Oxun de Mãe Caetana. Nesta comunidade, Oxun recebe o título de Yalê, mãe da casa. Caetana América Sowzer ainda hoje é referenciada pelas pessoas que teve o privilégio de conviver com ela como mestra. Seu pai teria “traduzido” um dos sistemas advinhatórios africanos mais complexos, mas coube a ela zelar com determinação dos princípios fundamentais para a consolidação dos elementos civilizatórios negro-africanos no Brasil através da religião dos Orixás. Mãe Caetana era uma Apetebi, como as esposas dos Babalawo ela começava a transmitir as histórias sagradas desde cedo às crianças que tomava para criar. Segundo o Pai Air, Mãe Caetana exigia que alguns momentos rituais a fim de não se perderem fossem registrados em cadernos, hoje amarelados. Mãe Caetana era costureira, gostava de fazer bonecas, adorava artes. Era também música, tocava violino. Yá Caetana fez uma brilhante caminhada, como Oxun entendeu cedo que a serenidade vence qualquer guerra e que a simpatia é capaz de transformar qualquer momento em festa e alegria. Hoje, aquela que foi chamada de Laju omim, olhos d’agua, uma nascente, fonte, continua no mundo, agora no céu, certamente compondo a mais bela constelação, brilhando como uma estrela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.