terça-feira, 22 de dezembro de 2009

COMIDA DE SANTO E COMIDA DE BRANCO


Embora algumas pessoas reajam à expressão “comida de santo”, aqui ela será tomada como o mesmo que comidas rituais dedicadas nas comunidades terreiros aos nikices, vodus e orixás. Num trabalho publicado em forma de livro intitulado: Banquete Sagrado, notas sobre “os de comer” em terreiros de candomblé, já tive a oportunidade de demonstrar a importância, o papel e o significado das comidas votivas dedicadas aos ancestrais nas comunidades/terreiros. Em linhas gerais, no candomblé, costuma-se dizer que tudo come, recebe alimentos especiais preparados para cada ocasião, comem desde a cumeeira ao chão, este último principalmente. Isso é explicado através da concepção de que nada se mantém vivo sem a comida. Por outro lado, já demonstramos no texto em que abordamos o sacrifício nas religiões de matriz africana que esta comida é ao mesmo tempo, força vital, axé, mas também um contra dom, uma espécie de contra presente que as primeiras civilizações estabeleceram com o Sagrado, pois desde cedo se acreditou que “a fertilidade da terra dependia dos antepassados, tornando-se estes os primeiros seres com os quais as civilizações foram obrigadas a trocar”. Alguns trabalhos já se debruçaram sobre a origem destas comidas rituais que nos terreiros aparecem como africanas, ou de origem africana. Há, todavia outros que insistem ser mesma a base do cardápio servido aos orixás, por exemplo, nacional. A falta de tempo não nos permite entrar neste debate, o que já nos ocupamos no trabalho citado anteriormente, mas gosto sempre de afirmar que o que torna a “comida de santo” africana, é muito menos os ingredientes que entram na sua preparação, mas um conjunto de técnicas transmitidas de forma iniciática e secreta, somadas às visões de mundo evocadas através da comida, os significados, os sentidos, os sentimentos, o Sagrado construído e reconstruído a todo momento a partir da experiência histórica de cada comunidade. Assim, se aceitarmos que esta cozinha ritual é afro-brasileira fugimos ao menos da busca pela pureza e nos tornamos mais abertos para entender a dinâmica do pensamento africano, dinamismo este que permitiu ao lado de permanências africanas no Brasil, recriações e invenções feitas não de forma aleatória, mas fiéis a visões de mundo posta a prova em cada indivíduo na diáspora negra pelo mundo. Já no final do século XIX, autores como Manoel Querino já fazia uma distinção entre as comidas que considerava “puramente africanas”, do “sistema alimentar da Bahia”. É, todavia na década de 30, sobretudo a partir do pensamento de Arthur Ramos que surge uma má interpretação sobre a origem, presença e popularização destas comidas nas ruas, por alguns autores. Ora, o velho Ramos atento as modificações de algumas iguarias afro-brasileiras, sugeriu que nos afamados candomblés ainda podiam ser encontradas comidas de “origem africana” num estado mais original, constatação que acredito valer até hoje. A partir desta idéia alguns autores que lhe seguiram entenderam que a comida comercializada na rua desde finais do século XVIII teria uma origem sagrada. Certa ocasião fui questionado por uma jovem jornalista sobre a relação que existia entre o akarajé vendido pelas nossas tradicionais baianas e o akarajé de Yansã. Seus olhos saltaram quando afirmei que não existe relação nenhuma. Primeiro, porque Yansã não como akarajé, mas akará, bem diferente dos hambúrgueres que encontramos na cidade de Salvador acompanhado com o refrigerante de cola, jé é o verbo comer, expliquei. A jovem, todavia insistiu: “mais antigamente não era uma comida vendida apenas pelas filhas do orixá Oyá?” Lhe desapontei mais uma vez. Antigamente é uma temporalidade que não conheço, depois é bem provável que africanos e africanas, conforme informações do Professor de grego Vilhena no final do século XVIII, vendiam, além de akará, lelê, abará, ekó, ekuru, mungunzá, efó, aberém, mocotó e outras iguarias, ao lado de bebidas como o aluá. Fato é que o akarajé está na moda, foi eleita comida para representar a baianidade, outra construção problemática. Porém não deixei de mencionar a sacralidade do mercado e da arte de mercar que não foi inventada pelos africanos. Para compreendermos isso basta prestarmos atenção à bolsa de valores, ela é imprevisível. Mesmo assim realcei que acumular capital ainda hoje continua sendo um dos maiores desafios para as comunidades terreiros e seus iniciados; para os negros(as) em geral é mais provável que os filhos de alguns orixás ligados ao azeite de dendê tivessem mais “cabeça de venda” para comercializar certas iguarias, o que não é uma regra, como nada é regra geral no candomblé. Eu mesmo conheci na cidade de Cachoeira, uma senhora já falecida, filha de Oxalá que nunca abdicou de suas vestes brancas, que construiu a sua família, formou todos os seus filhos vendendo acarajé. É preciso ter, de fato, “cabeça de venda”, em outras palavras, sair para a rua e voltar com dinheiro para casa. Resumindo, ser empreendedor, fazer freguesia. Embora se tenha esquecido, o mesmo vale para os mingaus, iguarias que ainda hoje resistem nas ruas, contrariando o discurso “higienista”. Verdade é que, africanos e africanas e hoje seus descendentes mercaram tudo que podiam, pois disso dependia a sua economia, a sua sobrevivência, a formação de seus filhos(as), o custeio de um ritual que se pagava durante anos. Verdade é que quando isso era realizado, estes momentos eram atravessados de sacralidade, onde em algumas vezes o sistema de troca tradicional era alternado pelo inspirado nos universos africanos. Mais o que difere a comida de santo das comidas comercializadas nas ruas? Gosto muito da explicação do professor Vivaldo da Costa Lima que sempre lembra: “os santos comem o que os homens comem; apenas estes recebem comidas mais elaboradas.” Assim é diferente um feijão de azeite de um “omolocum” oferecido ao Orixá Oxun, este requer mais atenção no seu preparo, exige pessoas especiais pois varia até a textura dos grãos obtida através do cozimento, sem falar nas palavras de encantamento e orações evocadas antes, durante e na hora do oferecimento ao ancestral. Lembro de um sacerdote que disse: se fosse assim, eu escrevia a nota para o cliente e ele fazia na casa dele. Orixá não tem cardápio, menu, receita. Isso é menos uma preocupação para os chefs, assim não terão que concorrer com a Yabassé, “a velha que cozinha”, sacerdotisa da comida, única autorizada a informar sobre estas. Como sempre são escolhidas entre as que menos falam, a comida sagrada está resguardada . Esclarecida esta parte, vamos falar agora das chamadas “comidas de branco”, o que não é o mesmo no sistema de classificação das coisas comestíveis e não comestíveis do povo de candomblé, “comidas brancas.” Esta última expressão reserva-se às comidas que não levam azeite de dendê. São iguarias votivas que remetem aos primeiros grupos humanos que saíram para povoar a terra. Comidas a base de raízes e grãos, conservadas na forma de farinhas que se transformam em papas, massas e mingaus. A primeira expressão é reservada às comidas do cotidiano, como por exemplo, o tradicional feijão com arroz. As comidas de branco não são novidade nos terreiros de candomblé, ao contrário, estão presente como constitutivas de momentos especiais como o café oferecido em dias festivos, ou na ocasião de rituais fúnebres quando se come aquilo que o morto gostava. A novidade é que estas comidas estão paulitaneamente substituindo as comidas de santo nos dias de festa. Não obstante o bom gosto e requinte que estas comidas são apresentadas ao público, acompanham este fato a reação de algumas pessoas contra as chamadas “comidas de azeite”; ora evocando que fazem mal, ou porque não gostam, sem nenhuma justificativa. Ainda bem que não surgiu a palavra saudável, outra expressão que está em moda. Isso acontece, sobretudo entre os mais jovens. Esse fato abre uma série de questionamentos. Nada contra aos buffets organizados por alguns terreiros, afinal, a máxima de que a comida exibe prestigio, poder e status social vale também para o candomblé. O questionamento está no desaparecimento das comidas de santo em detrimento das comidas de branco. Na maioria das vezes, as primeiras ficam restritas aos orixás “que comem sozinhos”, e acaba fazendo desaparecer rituais realizados no dia seguinte. Será que a popularidade das “comidas de azeite”, em dias como a sexta-feira, ou mesmo a presença dos restaurantes de “comidas típicas” explicaria a não apreciação do gosto pelas comidas de azeite, nos terreiros comidas votivas, por algumas pessoas? Lembro que algumas dessas comidas chamadas baianas eram reservadas à ocasiões especiais como aniversário, por exemplo. Com o tempo foram desaparecendo, tornado-se inicialmente “comidas de pobre” e depois comidas que fazem mal por conta de problemas ou outras “doenças que estão na moda” e que por isso devemos evitá-las antes mesmo de passarmos pelos profissionais de saúde que decidem o que devemos comer, a quantidade e a hora. Refletir sobre este aspecto é interessante pois abre discussões pertinentes a preservação do universo afro-brasileiro legado por homens e mulheres que desafiando o seu tempo deram respostas a partir de suas tradições às situações desafios que foram expostas. Isso não significa dizer que entendemos a tradição como algo imutável, ao contrário, a recriação em alguns momentos se dá não para recompor algo fragmentado, mas para exibir prestígio. Depois do “desaparecimento da pedra de ralar”, sua substituição pelo moinho que depois foi motorizado, seguido do liquidificador e do multiprocessador, que graças aos diferentes cortes conferem as massas texturas diferentes, assistimos algumas comidas rituais sendo feita a partir do refinamento de grãos, oferecidas pelas indústrias de alimentos. Mesma indústria que deu origem ao xarope de milho, um tipo de açúcar que o nosso organismo não é capaz de dissolver, gerando entre outras doenças o diabete melittus tipo II. Mesmo respeitando a frase sábia de uma sacerdotisa que nos disse que “os vodus mudam porque as pessoas mudam”, temos que refletir como as comidas votivas estão dialogando com os ingredientes produzidos por esta indústria que com certeza não os fez para atender a demanda dos orixás. Adoro os buffets nos terreiros, mas é bom ver também a comida dos orixás dividida entre as pessoas. Certa ocasião deparei-me com uma comunidade terreiro que não sabia mais enrolar o akassá, chamado de ekó, tal iguaria representa o corpo, uma porção de massa individualizada na folha de banana. A massa era despejada numa bandeja ou sobre uma pedra de mármore e cortada de forma triangular. Se nós, povo de candomblé ainda não estamos preparados para entender o processo químico que envolve os alimentos durante o seu cozimento, ao menos temos que atentar para o fato de que quando uma comida “desaparece” segue também com ela visões de mundo. Nada contra a introdução nas cozinhas rituais de eletrodomésticos, diálogo que o povo de candomblé já vem fazendo muito bem já há algum tempo. A preocupação maior deve está com fato de que o que vai restar da nossa ancestralidade; o que passaremos e quais histórias contaremos aos nossos filhos quando as comidas de santo ceder lugar de uma vez por todas às comidas de branco? E os ancestrais será que mudarão de gosto?

Um comentário:

Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.