quinta-feira, 11 de março de 2010

OS TERREIROS E O BARULHO DA CIDADE



A menos de três semana, acordei com o apelo contundente de um radialista a Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município (SUCOM) atendendo a reclamação de um ouvinte sobre o barulho de uma comunidade terreiro provocado pela queima de fogos e o toque de clarins e atabaque num dia de domingo as cinco horas da manhã. Fato como estes que nos últimos anos tem se tornado corriqueiro, sobretudo porque dão audiência, dentre tantas questões, nos ajuda a refletir sobre a inserção e luta pela permanência das comunidades/terreiros na cidade. Tal acontecimento me fez ainda rememorar o “candomblé rezado baixo”, momento em que estas religiões foram obrigadas substituir os instrumentos de percussão pelas palmas a fim de não incomodar e corromper a civilização e progresso da cidade recém idealizada a partir dos moldes europeu. Todavia, antes de comentar tal fato, quero mesmo é chamar a atenção para a importância destes terreiros de candomblé nos bairros em que estão inseridos. Na maioria das vezes, um terreiros de candomblé é sinônimo de saneamento básico, escolas, posto de saúde, linhas de ônibus, áreas de lazer, urbanização e segurança, graças à funções extra religiosas que estas comunidades desenvolvem nos bairros onde estão inseridas. Sem falar nos bairros que tiveram a sua origem nas roças de candomblé. As “roças de candomblé” não têm limites. Isso constitui um dos desafios para pensar a recriação do espaço na cidade pelas religiões de matriz africana. Nos últimos anos tem sido muito positiva a experiência da criação de “redes” que além de dar visibilidade a trabalhos realizados por todo o Brasil, solidificam laços essenciais para a manutenção das tradições negras no Novo Mundo. Verdade é que algumas dessas comunidades/terreiros constituídas no século XIX, que se afastaram do centro urbano, ora por prestígio ou afim de garantir o culto, atualmente enfrentam além da especulação imobiliária que empurra parte da população para a chamada periferia, os velhos discursos racista de um lado por alguns programas oportunistas e do outro pelas falas ignorantes de algumas denominações neopentencostais que em alguns casos tem ido para o embate físico. Soma-se a isso questões particulares de “vizinhos” que variam dos condomínios a pessoas físicas que acabam se aglomerando em torno dos terreiros e na maioria das vezes invadindo o espaço sagrado através de janelas que ignoram a lei que regulamenta tal construção ou mesmo escavando as encostas da comunidade para que as águas das chuvas comprometam o solo, provocando o deslizamento, facilitando a ocupação forçada, uma verdadeira “grilagem urbana”, história particular bem conhecida pela maioria dos terreiros de candomblé presentes na cidade de Salvador. Junta-se a estes fatos, a violência crescente na cidade que obriga estas comunidades não apenas conviver, mas procurar alternativas para enfrentá-la a fim se levar uma vida onde se possa cultuar os ancestrais. A vida dos terreiros na cidade é de fato um desafio. No momento em que ouvi aquele apelo inflamado do radialista ao órgão competente, fiquei pensando se o contrário acontecesse, se a sua reação seria a mesma? Em outras palavras. Se o povo de candomblé cada hora que fosse oportunado pelos sons de mais de 70 decibéis dos aparelhos de som dos vizinhos fizesse apelo a uma emissora de rádio? Conheço casos de terreiros que aos domingos, dia consagrado para a renovação dos laços da comunidade com os ancestrais através de um ritual chamado osé, são impossibilitados de realizar qualquer atividade religiosa porque as caixas de som colocadas sobre as lages provocam barulho desde as primeiras horas da manhã até a madrugada seguinte, contrariando todas as normas da Lei 5354/98 que dispõe sobre sons urbanos, fixa níveis e horários em que será permitida sua emissão, cria a licença para utilização sonora e dá outras providências. Sem falar naquelas comunidades que a fim de garantir o culto, assim o faz com a maior descrição, pois qualquer deslize pode acionar a ”igreja vizinha”, assim chamada pois pode está ao seu lado ou em frente, locais preferidos por algumas denominações a fim de ficarem mais “próximos do demônio” para combatê-lo, como costumam dizer . Acioná-las, significa dizer: colocar um alto falante, ou como se diz: virar a boca do alto falante ou das caixas de som para dentro do terreiro, sucumbindo o som dos atabaques, das palmas, a voz, ou qualquer outro instrumento litúrgico, sem falar das palavras de “exorcismo” lançadas em direção a comunidade/terreiro. E o que dizer dos foguetes que sobem por minuto em alguns bairros? Que no mínimo é uma linguagem que todos entendem sobre a qual recai o tabu de não falar para não se calar para sempre. Desconheço a existência de algum terreiro que já tenha acionado um vizinho ou alguma “igreja vizinha” Isso não significa que não haja registro de queixa, antes o fato de que, se na maioria dos casos assim não fazem é porque acreditam que a cordialidade é a melhor maneira de garantir o viver em comunidade como se todos ao redor do terreiro fosse parte dele. Os terreiros de candomblé vem na verdade, resistindo pois não querem mais assistir a derrubada de outra comunidade por um capricho ou falta de entendimento entre órgãos que deveriam representar a cidade, mas que ao contrário, ao invés de dialogar entre si estão sempre preparando um projeto para apresentar às comunidades/ terreiros próximo às eleições. Acredito, de fato, que estas coisas só acontecem porque alguns segmentos do poder público que deveriam apoiar, proteger e promover o patrimônio afro-brasileiro atuam ainda de forma tímida, ora pelo despreparo de alguns representantes, pela falta de conhecimento de questões referentes a cidade e os terreiros, ora mesmo pela falta de respeito e compromisso conosco. Esse fato resulta no ostracismo e no cinismo de algumas instituições que insistem em se lembrar do povo de candomblé a cada quatro anos. Pensar sobre as comunidades/terreiros e a cidade, é pensar, sobretudo, sobre nós mesmos. Sobre a dívida que as cidades tem com estas comunidades enquanto mantenedoras de identidades e centros de promoção da cidadania. Se os atabaques forem impedidos de tocar, se os foguetes forem proibidos de estourar, se as palmas, os sons dos instrumentos rituais não puderem mais ser ouvidos graças ao “apelo”da cidade, que sons restarão nestas ? Nas comunidades em que estamos inseridos? Certamente apenas o dos foguetes, das balas perdidas e o gemido de dor e desesperança saído num dia de uma casa, no outro de uma igreja, depois de um terreiro e assim por diante. Nós que acreditamos nos nossos ancestrais vamos continuar lutando para não vermos esse dia chegar; nós e as nossas gerações. Para isso vamos continuar afirmando que o “barulho” da cidade, entendido como os diferentes apelos que traduzem a sua complexidade podem se transformar na mais linda melodia. Talvez possamos começar desligando os alto falantes e caixas de sons que estão voltadas para os nossos vizinhos a fim de ouvirmos os sons que falam dentro de nós mesmos. Em outras palavras, precisamos dar voz ao sagrado que mora dentro de nós. Isso é vivência de nossa ancestralidade.

2 comentários:

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  2. Fantástico o seu texto. É de fato muito triste que em tempos como esses os tambores ainda sejam calados pela ignorância. Como estudante de gastronomia me faz muito mal ver que estamos perdendo tanto de nossa cultura em detrimento da valorização de modismos e pratos cada vez mais "vazios" de Patrimônio. É ainda nos terreiros que podemos ver a força de nossa cultura culinária, os saberes e fazeres que deveríamos colocar nos pratos que produzimos da dita Alta Gastronomia. Sinceramente não vejo nada de valor em um prato sem essa força, sem raiz. Fico feliz de encontrar aqui um espaço de desabafo dessa "nossa" indignação. Axé

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.