sexta-feira, 19 de março de 2010

SUCOM QUER OBRIGAR TERREIROS A TIRAR LICENÇA PARA TOCAR CANDOMBLÉ


Era quinta feira, dia consagrado aos donos do território, Odé, orixás caçadores, quando as 9 horas, um tímido rapaz tocou a campanhia do Ilê Odô Ogê, conhecido como Pilão de Prata, identificando-se como fiscal da Superintendência de Controle e Ordenamento do Solo Urbano do Município de Salvador (SUCOM). Constrangido, sua educação misturava-se com a timidez de está cumprindo a árdua tarefa de notificar aquela comunidade pelo barulho provocado pelos “instrumentos de percussão”, como referiu-se aos atabaques. Numa mistura de temor e respeito, várias vezes frisou que não entendia nada, estava ali apenas cumprindo o seu papel de fiscal. Fez algumas perguntas sobre o tipo de instrumentos que a comunidade realizava, quis sentar na escada que dá acesso a uma praça de dentro do terreiro, para não adentrar no recinto sagrado, mas insistir que fossemos para uma sala mais confortável. Lá ele me explicou que a sua visita não tinha nenhum caráter punitivo, apenas a intenção de averiguar os espaços e instrumentos que levaram um anônimo a denunciar o templo religioso. Logo me apresei e fiz ele ler o texto: O terreiro e o barulho na cidade, publicado no Jornal a Tarde na última sexta-feira. Achei até uma coincidência após tal provocação receber a visita de um representante do órgão que regula dentre outras coisas, sons urbanos, fixa níveis e horários em que é permitido sua emissão e cria licença para utilização sonora. Coincidência ou não, fato é que aquele jovem fiscal estava ali representando a Lei 5354/98. Enquanto seus olhos corriam atentamente no texto, apresentei-lhe uma resumida história daquela roça de candomblé, originada de uma casa de taipa coberta com folhas de zinco no ano de 1963, quando o atual “morro do Cachundé” era apenas uma duna e abaixo havia a lagoa utilizada pelas poucas pessoas para lavar roupas e por alguns terreiros, dentre eles, o Pilão de Prata para realizar alguns rituais. Lembrei também que tal comunidade terreiro já havia sido tombada pelo Instituto de Patrimônio Artístico Cultural da Bahia em 9 de dezembro de 2004, sem falar nos Decretos Lei Municipal e Estadual que o reconhece como Utilidade Pública. lhe mostramos o nosso Museu, a Biblioteca e a Escola que aguarda a dois anos financiamento para realização de atividades, embora nesse ano foi utilizada para exibir filmes durante o Ciclo litúrgico que foi concluído no dia 14 de março, com recursos do próprio terreiro e ajuda da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia. Nada adiantou, ele tinha que retornar com seu dever cumprido e baseado no Artigo 6 da Lei 5354/98 notificou a comunidade terreiro com o seguinte texto: “O responsável pelo estabelecimento supra-citado fica ciente que a emissão sonora gerada em atividades não residenciais, somente poderá ser efetuada após expedição pelo órgão competente da Prefeitura do Alvará de autorização para utilização sonora.” Isso me trouxe a lembrança dos tempos terríveis de Pedrito, que nunca saíram da memória do povo de candomblé. Mais uma vez salta os olhos que tais órgãos que deveriam estreitar relações com a cidade seja liderado por dirigentes mal assessorados que no mínimo deveriam saber interpretar a Lei 5354/98 que diz no inciso IV do Capítulo 14 que “não estão sujeitas às proibições referidas nesta Lei o sons produzidos por sinos de igrejas e de templos religiosos desde que sirvam exclusivamente para indicar as horas ou anunciar a realização de atos ou cultos religiosos.” Por que então, dois pesos e duas medidas? Por que uma vez por ano não podemos tocar os nossos clarins e atabaques, tocar nossos foguetes para anunciar a realização de nossos atos e cultos religiosos? O que dizer então das alvoradas festivas de outras denominações religiosas realizadas as 5 horas, ao raiar do dia? Queremos abrir esta discussão com o Sr. Superintendente. De que o Estado Brasileiro não é laico já sabemos, agora queremos no mínimo exercer a liberdade de culto, direito garantido pela nossa Constituição. Esse fato nos dá a entender na verdade, que os órgãos municipais e estaduais não dialogam entre si, pois esta mesma comunidade está entre os 1068 terreiros mapeados através de um trabalho pioneiro no Brasil, resultado da parceria entre a Prefeitura Municipal de Salvador, através da Secretaria de Reparação (SEMUR) e da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), o Ministério da Cultura, através da Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial (SEPPIR) em convênio com a Universidade Federal da Bahia através do Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO). Porque o catálogo produzido não esta sendo consultado? Se até agora de nada serviu para o povo de candomblé que até então aguarda o inicio da regularização fundiária e outras ações do poder público, que pelo menos sirva para os órgãos do governo consultar a fim de evitar o constrangimento de nossos sacerdotes que além da função religiosa cumprem também papel de médicos, psicólogos, economistas, sociólogos e outras. Gostaria com este texto de abrir o diálogo com os órgãos envolvidos com estas questões direta ou indiretamente, bem com a sociedade como um todo. A notificação 410703 de 18 de março de 2010 não nos intimida porque é equivocada, na verdade ela nos causa vergonha por estarmos sendo tão mal representados. O que não queremos mais, é assistir a demolição de outras comunidades terreiros, nem a cobrança indevida do IPTU, fato que vem se arrastando já há algum tempo na secretaria da fazenda do Municipio sem nenhuma posição significativa. O fato que aconteceu no terreiro Pilão de Prata poderia acontecer em qualquer outro. Ou quem sabe já não vem acontecendo? Fato é que o dano psicológico, causado pelo constrangimento e a vergonha de ter um carro da prefeitura e um agente de fiscalização na porta de uma residência é irreparável. De uma coisa temos a certeza: esta luta será travada juntamente com todos os Orixás, Nkices, Caboclos e Guias. Avante!!!

8 comentários:

  1. Li o texto atraves de email de Iane.
    Estranhei o tom suave alidado à perspicácia certeira. É alguém diferente do habitual que está escrevendo isso", pensei... Questionamento sério, abordagem apropriada, dispensando performances indignadas e inflamadas.
    Com surpresa vi que era voce. Eu participei de uma mesa falando do cha... E lhe prometi um video sobre a encantaria...posso mandar pelo correio.
    reikibahia@gmail.com

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  2. em tempo:
    é claro que o evento é de causar indignação, mas nem por isso o texto tem que mostrar destempero...

    um discurso maduro tem outro efeito, e estou certo de que todos conseguirão um bom resultado.

    Enquanto isso, aqui perto, as igrejas evangélicas abusam inacreditavelmente do volume dos microfones. Eles devem pensar que Jesus ficou surdo...

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  3. Olá Vilson, li com atenção seu texto e gostei do conteúdo proposto.

    O recebi através de um email hoje, que a Iyá Iane ti Oyá de Macaé- RJ me enviou, pois é através dos emails dela que sempre recebo boas informações sobre o que ocorre no universo baiano de nossas religiões negras e indígenas.

    Logo quis entrar no link proposto, e quando entro, vejo você, o mesmo parceiro que em 2008, compartilhou uma mesa sobre comunicação comigo e outros parceiros no Terreiro Pilão de Prata, onde foi local sede do Alaiandê Xirê daquele ano. Lembro com precisão de sua fala...

    De fato quando leio algo tão inquietante como o fato da notificação do terreiro pela Superintendência de Controle e Ordenamento do Solo Urbano do Município de Salvador (SUCOM), fico incitado à mover uma energia (ou fumaça) com os juristas do Quilombo Cultural Malunguinho, entidade que sou coordenador geral para discutirmos o fato e movermos alguma ação, mesmo que uma carta de apoio as ações do terreiro, que venha a mostrar nosso apoio pleno aos nossos direitos como também uma forma de publicar nossa indignação com o absurdo.

    Tudo isso remonta o grande abantesma do passado. Repressão? Racismo? Preconceito? Ações pensadas contra o povo de terreiro? Não sei denominar agora, precisaria de uma análise política e jurídica mais aprofundada para perceber com precisão o que significa este ato, mas o denomino agora como ato de desrespeito as tradições fundadoras da identidade brasileira.

    Leve nossa indignação ao sacerdote Pai Air, Osogian guerreiro daquela roça cheia de axé e prosperidade. Ainda devo a ele uma garrafa de nossa Jurema Sagrada, líquido que nos ajuda a transcender o espaço limitado da mente ocidental.

    Dou todo meu apoio e já disponibilizo nossa ajuda para o que necessitar entorno deste caso. Com meu cachimbo, coloco a fumaça de Malunguinho na gira, pra perfurar as paredes da SUCOM, os corpos dos mandantes destes atos insubordináveis e descodificar as leis que nos afligem por uma infeliz incapacidade de interpretação jurídica destes que assumem cargos por indicação política, sem ter nenhuma condição de interagir com nossa sociedade contemporânea e pensante.

    Achei estranho você não ter colocado suas insígnias religiosas no seu perfil, colocou apenas as dignas acadêmicas, por favor, nos mostre sua formação no axé, isso é essencial para nos irmanarmos mais e melhor.

    Parabéns pela iniciativa.

    Alexandre L’Omi L’Odò.
    Iyawò L’Osún e Juremeiro.
    Produtor Fonográfico.
    Quilombo Cultural Malunguinho.

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  4. Pergunto se posso publicar seu texto em meu blog.

    Sugiro que quando postar sus textos, formate, pois em bloco como está, dificulta a leitura.

    Axé.

    L'Omi.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. interessante seu blog assim como seus livros...preciso sber mais sobre s.Cosme e S. Damião nos terreiros de Candomblé,o que voc~e pode me dizer sobre eles?
    Att.
    CLAUDIAAIYEHOTMAIL.COM

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.