terça-feira, 17 de agosto de 2010

ORIXA ILU E ORIXA IGBO


Neste texto vamos abordar o desconfortável tema do sincretismo afro-católico. Desconfortável não por ser algo revisitado suficiente por outros autores, mas pela série de estigmas que ao longo da história das religiões de matriz africana no Brasil, este conferiu a estas. Desta maneira, gostaríamos de iniciar esta reflexão retomando a afirmação de que o fenômeno do sincretismo é universal e por isso acompanha os grandes modelos religiosos do inicio de sua formação aos dias de hoje. Pena que tal tema, nos estudos afro-brasileiros, ao aparecer na década de 30 serviu dentre outras coisas para legitimar a idéia da suposta inferioridade do pensamento africano, elaborada no século XIX a partir das teorias racistas. Assim por muito tempo, tal assunto quando apareceu nos estudos afro-brasileiros sugeriu leituras preconceituosas que desautorizavam as visões de mundo africana, graças a relação que estes desce cedo estabeleceram com o catolicismo português. As leituras limitadas de tais relações se deram a partir da concepção de uma teoria conspiratória. Em outras palavras, alguns estudos apresentam as relações entre negros e brancos no Brasil colônia a exemplo de um campo de futebol, de um lado os negros, do outro lado os brancos. É certo que na colônia, como ainda hoje, as relações entre os não brancos e os que alto designaram-se brancos ainda continuam sendo algo predefinido. Atentar-se a isso talvez seja o primeiro passo para desmascarar o racismo brasileiro, racismo sutil, silencioso, cordial, camarada que empurra o homem e a mulher negra para o mundo do “deixa disso”, do “para com isso”, mas que sempre está ali constituindo as relações mais “familiares”. Essa suposição da teoria conspiratória, ou da ação dos indivíduos a partir de “um lugar” sugeriu a teoria da dissimulação, que seria uma espécie de “faz de conta”. Desta maneira, as relações estabelecidas desde cedo entre o universo religioso africano com outros grupos seria explicada a partir desse faz de conta onde, por exemplo, os santos católicos através de um jogo de correspondências, de analogias externas, seriam uma espécie de máscara branca no rosto de ancestrais africanos. Tal idéia nos anos 80, a partir da caminhada de quase vinte anos de movimentos negro e da presença de alguns intelectuais nos terreiro provocou uma espécie de mau estar no universo afro-brasileiro, ao menos para os participantes da II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, realizada na cidade de Salvador. Quando se refletia sobre a o retorno à África, foi elaborado um documento, na forma de manifesto que afirmava afim de garantir a África mítica e pureza africana, era necessário romper com o sincretismo afro-católico, expresso através da correspondência entre santos católicos e orixás, da ida das comunidades terreiros ao recinto católico por ocasião de algumas festas e da presença de altares católicos no barracão dos terreiros. Não estamos bem certo se o objetivo do documento produzido no encontro era mesmo desconstruir as relações entre o candomblé e catolicismo a fim de legitimar o primeiro como religião, mas com certeza quando algumas lideranças religiosas assinaram tal texto, transformado pela mídia num Manifesto anti-sincretismo, era a defesa de suas tradições como religião que tinham em mente. Esse fato foi abordado pela Prof. Dra. Josildeth Gomes Consorte que estudou tal documento durante dez anos. A partir das contribuições de seu trabalho realizamos uma pesquisa publicada sob forma de livro intitulado: Orixás Santos e Festas, onde chamamos a atenção para o fato de diferentemente de como se apresenta, o fenômeno do sincretismo é sentido de forma diversa pelas pessoas. Em outras palavras, ao contrário da idéia de “faz de conta”, mistura, fusão, justaposição, jogo de correspondências, analogias, confusão, dentre outras, o fenômeno do sincretismo tem a ver mesmo com atribuição de significados, com sentimentos. Desta maneira, a menos nas religiões de matriz africanas deve ser entendido como algo além das mascaras e disfarces, até mesmo porque não se reduz a apenas a vivências externas, ao contrário, em alguns momentos chega a ser constituidor de ritos específicos reconstruídos no Brasil, como fez o próprio Cristianismo quando se deparou com as religiões antigas, contemporâneas a sua formação. Dizer que o sincretismo afro-católico não pode ser reduzido a relações exteriores, nem ao faz de conta explicado a partir da teoria da dissimulação é ao mesmo tempo reconhecer a capacidade que homens e mulheres negros tiveram de contrariando a teoria conspiratória, romper com os lugares impostos a estes na sociedade e intervir a partir de seus lugares, tornando-os livres para criar, reinventar e dar continuidade a universos fragmentados pela escravidão que não foram destruídos graças a capacidade de diálogo com elementos simbólicos que se depararam numa verdadeira colônia. O viver em colônia facilitou o diálogo entre africanos, ameríndios, portugueses, mouros, ciganos, cristãos novos, espanhóis, holandeses e muitos outros povos. O resultado foi a produção de modelos religiosos onde símbolos provenientes de várias matrizes culturais não apenas circulam externamente, mas dentro do corpo dos próprios iniciados. É interessante também observar que tais relações só foram possíveis, graças à dinâmica de juntar do pensamento africano somado à proximidade do universo católico português.Em outras palavras, o catolicismo chegado da Península Ibérica, ao contrário do que havia se afirmado no século XIX era por exemplo tão sensual quanto o pensamento africano, basta olharmos para os santos barrocos que se não choravam nas igrejas, lamentavam a má sorte em alguns oratórios ao serem submetidos a um verdadeiro ritual de tortura pelos devotos. Depois, como chamou a atenção certa ocasião a Yalorixá Olga do Alaketu, orixás e santos da igreja no Brasil eram estrangeiros. Isso no seu entender significava o primeiro passo para o dialogo e entendimento de relações que não podiam ser reduzidas a algo superficial e externa. Em alguns terreiros de candomblé de tradição jeje-nagô, guarda-se ainda a expressão igbo para designar os não negros. Tal palavra também era utilizada por alguns povos de língua yorubá para chamar os seus vizinhos, os estrangeiros, aqueles vistos como “de fora”, categoria bem entendida pelas ciências sociais. Quanto às relações que desde cedo os universos africanos estabeleceram com os “estrangeiros” é algo que ainda esta para ser melhor estudada. Fato é que se não foram confundidos, desde cedo estes estrangeiros submetidos também a distância de suas terras de origem foram incorporados no universo religioso reconstruído no Brasil como estrangeiros, a semelhança dos ancestrais africanos. Talvez esse fato comece a explicar a presença não somente de altares católicos em locais públicos onde se realizam as festas de candomblé, como também a tradução de rezas católicas para as línguas africanas, sem falar na evocação de orações católicas e alguns santos em momentos rituais protegidos dos olhares até mesmo daqueles que elaboraram a teoria do faz de conta. Verdade é que até mesmo os santos católicos apresentados aos africanos no contexto da escravidão, não foram vistos por eles como seus senhores. Isso deu a possibilidade destes serem invocados ao lado dos orixás Ilu. Ilu, a terra distante, aquela deixada para trás, trazida apenas na memória e nas lembranças. Foram essas terras, o sentimento de fidelidade a elas que possibilitou às religiões de matriz africana juntar num mesmo sentimento religioso os orixás ilu com os orixás igbo, transformando essa experiência em algo que ainda hoje continua desafiando o pensamento ocidental greco-romano-cristão acostumado a dividir as coisas, a vida e o mundo.

Um comentário:

  1. Prezado Vilson,
    Permita-me por favor.

    A Professora Josildete Consorte está com novo trabalho sobre o sincretismo no livro "Dos Yoruba ao Candomblé Ketu", ed. Edusp, lançado agora em 10 de agosto de 2010

    Queria convida-lo a fazer uma visita ao blog do livro:
    www.dosyoruba.rg3.net

    Obrigado pelo seu tempo.

    LUIZ L. MARINS

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Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.