Vamos dar continuidade à reflexão sobre o sacrifício de animais praticado pelas religiões de matriz africana que vem sendo considerado um ato de crueldade que pode está com os dias contatos no Estado de São Paulo caso um projeto de lei que tramita na Câmara de Deputados seja aprovado. A guisa de explicação vou retomar alguns conceitos. O primeiro diz respeito a própria noção de sacrifício que graças ao cristianismo e algumas praticas judaizantes ganhou ao longo dos tempos uma conotação de algo sangrento e violento. Para as religiões de matriz africana, a noção de sacrifício é algo mais amplo. Seguindo o principio básico de que as partes contêm o Todo e que cada ser individual é o deslocamento dessa matéria ancestral, o sacrifício, entendido como uma mudança da forma inicial significa o retorno às origens, servindo ele para manter a vida e o equilíbrio do Universo. Tomemos como exemplo a comida. “Nada no mundo mantêm-se vivo sem comer,” diz o provérbio. Assim, grãos, folhas, favas, frutas, flores, sejam eles esmagados, triturados, maceradas, cortadas, juntamente com a própria água derramada que escorre no chão são sacrifícios primeiros que antecedem aos ritos propiciatórios da vida. Assim, alargando a noção de sacrifício, à semelhança do judaísmo antigo, que o grande momento da celebração era sintetizado com “o pão partido”, podemos perceber a refeição como um dos momentos sacrificiais por excelência. Isso torna a cozinha como principal lugar de produção desse Sagrado. O problema está quando perdemos a noção de Sagrado, ora lhe opondo a outros conceitos, ou quando simplesmente o fazemos desaparecer, a fim de adequar nossa linguagem às questões mais modernas. De fato, quando nos afastamos de tal principio a relação com os animais e vegetais torna-se irresponsável, pois a primeira coisa a que renunciamos é o fato de também participarmos da teia da vida. A proibição do sacrifício de animais fundamentada na idéia de maus tratos não se sustenta se seguirmos a lógica a que estamos nos referindo. Talvez valha mesmo para os animais engordados em confinamento como bois e aves. Talvez isso se aplique bem ao Foie gras, fígado gordo, um dos pratos mais tradicionais da culinária francesa que obriga o pato a ingerir uma ração hiper calórica, empurrada “guela abaixo” com a ajuda de um funil a fim dele desenvolver uma esteatose hepática, uma doença, a gordura no fígado. Noticia que não nos espanta, tendo em vista que a produção de doenças tem tornado-se pratica comum da industria de alimentos. E a sopa chinesa feita com barbatana de tubarão que faz com que centenas destes animais sejam mutilados e soltos no Oceano, morrendo em seguida? Nada contra os franceses e os chineses, apenas tomei como exemplo dois animais que ocupam lugar especial no universo afro-brasileiro, o pato e o tubarão. Ambos seres encantados que desde cedo serviram como mensageiros dos Ancestrais cumprindo entre alguns povos africanos função semelhante a dos carneiros na cultura islâmica que ate hoje são sacrificados diante do silencio dos mesmos ativistas vegetarianos que bradam contra o sacrifício de animais nas religiões afro. Como se vê, estamos apenas iniciando uma longa discussão. A relação entre sacrifício e maus tratos, deve ser, de fato, colocado não somente no âmbito das religiões , como vem sendo feito de forma açodada e preconceituosa, reproduzindo antigos estigmas, mas deve ampliar-se para instancias mais amplas. Deve mesmo ser trazida para dentro de nós. Somente assim, apropriando-se desse Sagrado como parte de um Todo onde outros seres estão integradas, nos tornaremos mais responsáveis , ligando-nos a eles. Quem sabe assim não possamos abandonar a milenar linguagem sacrificial e encontremos oura maneira de expressar a forma como nos mantermos vivos no mundo?
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
CANDOMBLE E CRIME DE CRUELDADE (PARTE I)
Vem tomando fôlego no pais, inspirado pelo projeto do deputado estadual paulista Feliciano Filho que esta sendo analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Estado de São Paulo, mobilizações em torno da “proibição do sacrifício de animais em práticas rituais religiosas.” O texto não cita explicitamente as religiões afro-brasileiras, vinculação que está sendo feita por alguns grupos e alguns meios de comunicação. Já tivemos a oportunidade de falar sobre o sacrifício neste espaço, um ano atrás, artigo que foi publicado no livro: Na palma da mão: temas afro-brasileiros e questões contemporâneas, pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). Desta maneira não vamos nos repetir aqui. Projeto semelhante foi vetado por “inconstitucionalidade” na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo há um ano. Estas idéias chegaram à cidade de Salvador através da denuncia de uma ambientalista de maus tratos e comércio de animais silvestres na Feira de São Joaquim recentemente reconhecida como patrimônio cultural, fato que foi averiguada pela 3 Delegacia Territorial situada no Bonfim. O caso gerou revolta e polêmica entre alguns feirantes que vivem do “comércio sagrado.” Já há algum tempo, as religiões de matriz africana vem se deparando com assunto que uma vez ou outra entra em pauta, sempre reproduzindo o discurso falso - cientifico, higienista e racista que existe em torno dos elementos civilizatórios negro-africanos reorganizados no Brasil, presente em várias expressões sobretudo nas religiões de matriz africana, seja elas o Batuque do Rio Grande de Sul, o Tambor de Mina do Maranhão, os Candomblés de São Paulo e Rio de Janeiro, a própria Umbanda espalhada por todo Brasil, o Xangô, o Xambá e a Jurema de Pernambuco, Paraíba e outras cidades do Norte e Nordeste brasileiro, as casas nagôs do Recôncavo Baiano, os terreiros de Egun baianos, o Jarê da Chapada Diamantina e tantas outras. Tive oportunidade de ouvir depoimentos sobre isso em cidades como Porto Alegre, que concentra o maior numero de casas afro-brasileiras no pais, em Belém do Pará e em Belo Horizonte. Em todos estes lugares, a denuncia baseava-se no Artigo 3, inciso 1 e 2 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO de 27 de janeiro de 1978 que reza: “Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos crués. Se for necessário matar um animal, ele deve ser morto instantaneamente sem dores e de modo a não provocar-lhe angustia”. E ainda no Artigo 9 que fala: “Quando o animal é criado para alimentação, ele deve ser alimentado , alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor.” Vamos alargar esta discussão na próxima semana. No momento vamos ficar com a pergunta de uma sábia sacerdotisa que interpelada sobre o assunto, respondeu: “pena que não fazem a mesma afirmação quando se chega nos açougues ou mesmo na sessão de frios dos grandes supermercados. Isso nos faz pensar dentre outros temas contemporâneos na industria de alimentos, na produção de carnes e outros derivados inventados. Como sugere Michael Pollan, “os animais criados para o corte vira seu estilo de vida passar por uma revolução nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial” graças ao confinamento, a alimentação a base de milho, suplementos de proteínas e gordura, o que resultou em animais mais doentes, em carnes menos saudáveis e na redução do tempo para abate. Não vamos entrar no mérito de como isso é feito. Por que tema semelhante não é colocado nas portas das industrias de alimentos? Em entrevista a um jornalista da Folha de São Paulo, trouxe a idéia de que ao contrário do que se afirma nos terreiros, uma das condições para o sacrifício, conceito amplo e de vários significados, longe da conotação violenta e sangrenta judaico-cristão, é que os animais estejam saudáveis para assim fazermos a experiência do sagrado que há neles. Assim repetir uma velha frase que diz que nos terreiros os animais “morrem” com mais dignidade do que nos abatedouros. Dignidade porque fazem parte como todos os seres da teia da vida e por isso pode representá-los mantendo como os grão a relação com nossos ancestrais, mas essa é uma conversa que apenas estamos começando.
terça-feira, 27 de setembro de 2011
IBEJI, ORIXÁ KOLOBÔ
O culto aos gêmeos reveste-se de particularidades em algumas partes do Continente Africano onde estes e outras crianças nascidas com alguma peculiaridade recebem tratamento especial a exemplo daquelas que chegam ao mundo com a placenta presa ao corpo, os que nascem com o cordão umbilical enrolado no pescoço ou mesmo aquelas que nascem após sucessivas mortes. Tenho insistido que tal culto liga-se a noção de continuidade, prosperidade e descendência, razão pela qual é associado à terra através da imagem do kolobô, um recipiente de barro. Talvez esta ligação nos ajude entender a afirmação de que “ ibeji, os gêmeos comem de tudo.” Desta maneira, o banquete anual dedicado a eles nos permite visualizar a grande variedade que compõe, se assim pudermos falar, “o cardápio dos orixás.” Em outras palavras, o conjunto de iguarias que compõem a cozinha ritual reconstruída no Brasil que ainda hoje pode ser apreciada em alguns terreiros de candomblé, demonstrando a habilidade que homens e mulheres africanas tiveram quando elaboraram a chamada cozinha de orixá no Brasil, pratos elaborados respeitando os chamados “preceitos”, fórmulas rituais mantidas pela tradição de cada grupo religioso. Ligado à terra, entendida como principio primordial de onde brota a vida, “os gêmeos”recebem todos os grão e algumas comidas a base de raízes. O banquete dedicado a estes ancestrais é servido com o caruru, espécie de molho de quiabos que acompanha as iguarias. Tenho insistido que particularmente, tal culto no Brasil ganhou dimensões bastante amplas. Desta maneira, a devoção aos gêmeos além de interferir na representação de santos católicos como Cosme e Damião ultrapassa o universo das religiões de matriz africana. Assim, seu culto pode ser encontrado com características próprias em todas as cidades brasileiras em oratórios particulares, guardados por famílias que ao longo de gerações mantém viva a promessa de oferecer o tradicional caruru que em algumas ocasiões é antecido por rezas e novenas.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
QUIABO, A PLANTA DO RENASCIMENTO
Comida obrigatória dos faraós no Egito, o quiabo - Abelmoschus esculentus (L) Moench ocupa lugar de destaque na cozinha ritual dos terreiros de candomblé. A planta originária do continente africano chegou ao Brasil certamente como uma exigência do paladar africano que logo se impões no Brasil colônia. Nas comunidades terreiros tal verdura recebe tratamento especial, contituindo-se como base de várias comidas rituais, as chamadas comidas votivas dedicadas aos orixás em ocasiões especiais que visam reforçar, estreitar ou reconstruir os laços dos fiéis com o Sagrado. Esta verdura é tão importante que alguns terreiros conservam o hábito africano de não comer as suas sementes, à semelhança de muitos povos que sabiam da importância destas para garantir a continuidade de tal cultura. Como no Egito Antigo, recebem comidas à base de quiabos, os ancestrais ligados às dinastias e alguns que se relacionam com estes. A exemplo do orixá Xangô, um dos reis de Oyó, de culto trazido para o Brasil pelos reis, rainhas e sacerdotes que aqui entraram. Come também quiabo Oxalá, considerado um dos ancestrais mais antigos, representativo dos primeiros grupos humanos que saíram pelos continentes para povoar a terra e erguer as civilizações. Também recebe esta verdura, Nanã, ancestral do desenvolvimento e da transformação, considerada também principio criativo do Universo, motivo pelo qual participa de todos os seres vivos como celeiro que acolhe e guarda todo ser dotado de força vital. Dar-se comidas a base de quiabos Ibeji, literalmente, os gêmeos por conta de sua relação com a continuidade. Isto explica a prática que resiste ainda hoje em algumas famílias de colocar, conforme a promessa, de três a sete quiabos no tradicional caruru dedicado a Ibeji, onde os quiabos são cortados observando várias normas prescritas pela tradição, normas que lhe confere o nome “caruru de preceito.” Ainda está para ser discutido os “carurus” dedicados as orixás gêmeos feitos sob “encomenda”. Os chamados “vindos da rua”. Há algum tempo não muito distante de nós, o “caruru dos meninos”, outro nome dado ao conjunto de iguarias oferecidas aos gêmeos, era “encomendado a uma pessoa” que preparava toda a comida dentro da casa de quem estava oferecendo o prato, afinal como ainda acredita-se: “comida de orixá não pode atravessar encruzilhadas.” Certo que a chamada “modernidade” e a redefinição do tempo, somado aos produtos oferecidos pela indústria de alimentos, a exemplo dos fast food, faz urgir em algumas pessoas mudanças, ora para “aproveitar esse tempo”, que sempre tornar-se escasso, ora para ostentar prestígio, incluindo algumas modificações. Pela brevidade do tempo não vamos aprofundar este debate. Deixemos para outra ocasião. Retornando ao nosso tema, a base principal do caruru de Ibeji é o quiabo. Quiabo inteiro colocado na panela distribuído aleatoriamente no prato de alguns comensais que até certo tempo mantiam o compromisso de retribuir aquele banquete à família que estava oferecendo, prestando homenagem aos gêmeos. Isso garantia a presença do caruru “durante todo ano” por se acreditar que Ibeji não abre mão de receber suas comidas preferidas oferecidas pela pessoa escolhida, em outras palavras, “apontada” pelo quiabo inteiro, representando o próprio ancestral. Recebe também comida a base de quiabo, Oyá, ancestral do rio Niger por conta da sua relação com o orixá Xangô. Na verdade, as comidas feitas de quiabo oferecidas a ela representam o próprio rei. Nos terreiros de candomblé, ao menos nas casas de tradição ioruba, o quiabo se faz presente em todos os ritos de passagem, mesmo quando ele está ausente. Ele serve para marcar assim todas as cerimônias de renovação, continuidade. Come-se quiabo para fortalecer o axé. Quiabo é símbolo de prosperidade, êxito nos negócios e serve também para impedir que algumas coisas que atrapalham o nosso axé aconteçam. Há poemas que dizem, “que no meio das dificuldades encontremos quiabo.” A fim de garantirmos que nada de ruim nos aconteça. O quiabo neste trecho nos é apresentado se não, como uma pessoa, um ser individualizado. Isso nos remete a um mito já registrado por alguns autores, mantidos pelas comunidades terreiros. Conta-se que uma grande seca se abateu sobre a terra. Tudo começou a perecer, a começar pelas flores, as árvores depois de despir-se de suas folhas começaram morrer, as crias dos animais também padeceram, abateu-se sobre a humanidade a fome, doenças e a guerra, não tendo mais a quem recorrer, um ancestral chamado Okô, que nos ocuparemos na próxima semana, aquele que inventou a roça, cultivou, domesticou as primeiras plantas, saiu pelo mundo a procura de uma solução ante a emergência do desaparecimento da vida. Okô, então chegou diante do orixá Exu, aquele que havia entrado primeiro na cidade criada pelo fundador do Universo e lhe pediu que clamasse ao céu para enviar a chuva, o céu que anteriormente já havia entrado em disputa com a terra para ver quem era o mais importante.Exu aceitou o desafio e lhe pediu uma comida especial temperada com pimenta. Okô, assim fez e depositou a comida sobre Okê, a montanha, por ser o lugar mais alto. Exu fartou-se da iguaria demasiadamente apimentada e depois que percorreu todos os rios da terra, não encontrando água, tratou de reclamar ao céu que fizesse cair sobre a terra a chuva. O céu atendeu o pedido do velho amigo e entregou a Exu gotas de águas para serem derramadas sobre a terra. Atrapalhado, o poema diz que Exu no caminho, deixou cair algumas gotas de suas mãos e a chuva antecipou-se à sua chegada na terra. Quando desceu da montanha, ao parar diante de Okô, percebeu que o quiabo já havia lançado as primeiras folhas. Estava garantida assim a continuidade e a permanência da vida sobre a terra. Desta maneira, a exemplo do ilhame, do milho e da mandioca nas Américas e do arroz na Ásia, reconhecidos como raízes e grãos civilizatórios, o quiabo constituiu uma das plantas cultivadas de maior importância para algumas civilizações africanas, a menos para aquelas que afirmavam descender de um poder Divino representado pelo do rei. Além da fixação dos grupos humanos na terra, ele nos ajuda a pensar no esforço que as primeiras civilizações empreenderam para manter-se vivas através de noções como descendência e ancestralidade, mantidas vivas ora através do não consumo da sementes de algumas plantas a fim de semeá-las, ora através da sua distribuição inteiros em pratos de fiéis, devotos que transcendem às religiões afro-brasileiras e que ainda hoje oferecem o caruru aos meninos, referenciados as vezes nas figuras dos santos católicos Cosme e Damião transformados em gêmeos no dia vinte e sete de setembro. Vamos refletir sobre isso
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
ORIXÁ OKÊ, O QUE NOS VELA , NOS PROTEGE E NOS GUARDA
Hoje vamos falar sobre o orixá Okê. Nos terreiros de tradição jeje-nagô tal principio ancestral é lembrado como um dos mais antigos. Por isso recebe culto junto aos ancestrais criadores a exemplo de Oxalá. De acordo com algumas histórias, Okê foi um dos primeiros orixás a ser criado por Oduduwa, o Universo. Conta o poema que onde a substância escura atirada por Oduduwa sobre as águas se acumulava, ia formando os montes. Nascia, assim, o orixá Okê, as montanhas e tudo que elas significaram para os primeiros grupos humanos. Okê por ligar-se aos primeiros grupos humanos é representado por caçadores e caçadoras. Mais do que referência às alturas, ao distanciamento do grupo social, à solidão ou à fuga, as montanhas desde cedo significaram para estes grupos, espécies de guardiões e guardiães. Como olhos, sempre atentos, desde cedo, elas receberam culto especial como verdadeiros amigos, na linha ioruba chamados de adele, guardiões, guardiães, vigias. Basta observarmos como elas nos acompanham. Aos pés das montanhas, desde cedo, os primeiros grupos humanos levaram até o Sagrado as suas súplicas, porque uma das funções de Okê era conduzir os seus pedidos a alguns ancestrais como orun, o sol e oxu, a lua. Diz que quando Oduduwa criou Okê, lhe investiu também do poder de transformar-se, sumir e aparecer em lugares diferentes a fim de estar acompanhando o seu povo em todas as partes da terra. É por isso que algumas vezes temos a sensação de estarmos sendo seguidos pelas montanhas. Dos princípios ancestrais que recebem culto nas montanhas, destaca-se uma caçadora chamada Iyeye Okê, literalmente, a mãe da montanha. Acredita-se que Iyeye Okê anda sempre sozinha, mas na verdade ela acompanha cada um de nós. É ela quem protege os caçadores, caminha ao lado das caçadoras ao mesmo tempo em que confunde os homens aparecendo como uma grande caça. Iyeye Okê no principio da humanidade conduzia os primeiros grupos nas grandes caçadas e também protegia os animais das matanças desmedidas. Por ela está sempre fora de casa, acreditou-se que ela anda sozinha. Verdade é que a sua companhia é o orixá Okê, as montanhas, motivo pelo qual divide com ele as funções de amparo, guarda e proteção. Por fim, gostaria de lembrar uma história que nos ajuda a pensar sobre a importância de tal orixá. O mito que conta como as montanhas salvaram a humanidade. Diz que já há algum tempo, Iyemanjá, a barriga que pari filhos e filhas de todos os tipos, queria retornar de uma terra onde era muito maltratada. Suplicando a Olokum, os mares, choveu incessantemente dia e noite inundando aquela terra. Rodeada pelas águas, Iyemanjá fogiu por um volumoso rio que se formou. No meio do caminho as águas tiveram de parar diante de Okê, a montanha, que altiva colocou-se esguia à sua frente. A fim de prestar homenagem a Okê, Iyemanjá pediu a um de seus filhos que daquele momento em diante pratos feitos a base de quiabos, fossem oferecidos sobre as montanhas, em sinal de respeito e reconhecimento à sua antiguidade. Em retribuição, Okê dividiu-se em duas partes abrindo caminho para a fuga da mãe dos orixás. Por onde Iyemanjá passava, Okê ia se dividindo. Este é o motivo pelo qual encontramos ainda hoje montanhas “partidas” ao meio. Ao chegar diante de Okê, os grupos que procuravam Iyemanjá, a montanha lhes pareceu mais alta. Vendo a terra seca, concluíram que a mãe dos orixás só podia ter morrido na sua fuga. A humanidade assim estava salva. Iyemanjá pode voltar para o seu reino e fazer-se presente em todos os rios. Diante de Okê, o grupo que perseguia Iyemanjá tornou-se imóvel, encantados aos “pés da montanha” nunca mais saíram. Acredita-se que eles até hoje moram lá e se limitam a repetir as vozes daqueles que chegam diante do Orixá Okê.
terça-feira, 6 de setembro de 2011
O PRINCIPE DAS AGUAS
A pedido de um leitor hoje vamos falar sobre o orixa Logun ede. Dentre nós tal principio ancestral ganhou vários significados. Assim é comum ouvirmos várias histórias sobre o mesmo. Eu diria que Logun ede é um dos orixás que nos últimos anos mais se modificou. Como ouve-se dizer, cada um tem uma história para contar sobre ele, carinhosamente chamado de Logun. Em algumas destas histórias ele aparece como hermafrodita ou ainda um principio ora masculino, ora feminino. Não vamos, todavia entrar neste debate. Fato é que Logun ede é um dos orixás que nos foi legado pelo povo de igexá muito antigo e o seu culto pode ser encontrado em várias cidades africanas banhadas por um rio que recebe denominações como Einlé, Oxun e assim por diante. Verdade é que como um dos ancestrais fundadores do povo de igexá, Logun ede é um caçador e já tivemos oportunidade de falar sobre a importância de tal figura para os primeiros grupos humanos. Ele, porém guarda uma particularidade: sua relação com as águas. Isso aparece nos vários mitos. Logun relaciona-se com todas as Iabás, princípios femininos que garantem a fertilidade da terra e o equilíbrio do mundo. Como principio ancestral primordial do povo de igexá, como Obatalá e Oxumarê, Logun é a criação indiferenciada. Talvez seja este um dos motivos pelo qual ora ele aparece ligado à terra e ao mesmo tempo ligado às águas através da imagem do caçador que vive a beira do rio. Outra imagem bastante criativa guardada pela tradição é a associação de Logun às crianças. Na verdade, Logun relaciona-se a todos os seres vivos recém criados. Ele é a certeza da continuidade da criação renovada a cada dia. Daí entender o provérbio que diz: É santo menino que velho respeita. Outro símbolo desse ancestral ao lado do peixe, é o camarão. Há quem diga que Logun é o próprio camarão que enfeita as comidas votivas dedicadas a ele. Há terreiros também que associam Logun ede aos doces, razão pela qual recebe uma comida a base de milho quebrado chamada lêlê. Há quem refira-se a Logun como um pescador, mas gosto mesmo da imagem que diz ser Logun o leito que sustenta todos os rios. Desta maneira é ele quem garante o encontro das águas propiciando que todas elas sigam em direção ao mar. Logun é ainda mistério, mistério da transformação representado ora pela arma dos caçadores, ora pelo leque das Iabás. É por fim o buraco chamado Ibualama para onde corre todas as águas escuras do rio do mesmo nome, para retornarem cristalinas inspirando mais histórias sobre o príncipe das águas.
domingo, 7 de agosto de 2011
DO MUNDO À BARRIGA DAS GRANDES MÃES.
Hoje vamos falar sobre a barriga, entendida como tudo que diz respeito às “coisas de dentro.” Em outras palavras às entranhas Para alguns grupos africanos, a barriga reveste-se de particularidade. Ela goza de tanta importância que se encontra referendada na natureza por tudo que é redondo. Assim, panelas, cabaças, até mesmo algumas frutas e ainda a própria idéia de mundo podem ser entendidas a partir desta imagem. Na verdade, a “idéia da barriga” diz respeito a tudo que se organiza como sistema. Em muitas civilizações antigas a barriga é confundida com a própria terra que como a primeira imagem dar origem a todos os seres. Desta maneira ela é o grande ventre que “pare filhos e filhas de todos os tipos.”. Nos terreiros de candomblé, o culto às coisas de dentro, ao principio da transformação está relacionado com os princípios universais femininos, chamados Yabás. Todavia é sobre o culto à terra entendida como Grande Mãe, que isso pode ser melhor compreendido. Nos terreiros, pouco se fala sobre as Grandes Mães. Evocá-las consiste numa das maiores transgressões. Este fato vem apresentando modificações a partir dos anos 90. Como já tivemos oportunidade de lembrar, as religiões tradicionais africanas baseiam-se na noção de ancestralidade, entendida como princípios universais dos quais somos deslocamento. Esta ancestralidade é atravessada pelos nossos antepassados, pais e mães que nos antecederam que por sua vez surgem como manifestação desse Sagrado. Os antepassados que representam grandes famílias são cultuados em sociedades secretas, a exemplo da sociedade de Egungum preservada no Brasil. A Terra, reverenciada como Grande Mãe recebe culto em sociedades secretas semelhantes. Mesmo desaparecida no Brasil, tal conceito aparece de forma fragmentada em alguns momentos nos terreiros ou ainda num dos rituais mais complexos reelaborados pelos africanos iorubas, particularmente, e seus descendentes: o Ipadê, ou Padê, ocasião em que os antepassados de cada grupo são invocados como elementos fundantes das respectivas comunidades. Autores como Pierre Verger e Monique Augras, já chamaram a atenção sobre a reinterpretação do culto às Grandes Mães após o contato com o Cristianismo e o Islamismo. Entendidas como feiticeiras, ou ainda como algo que deve ser aplacado, tal culto que na origem era cercada de significado foi reduzido ao temor e às vezes ao medo. Desta maneira, temos, de fato, que retomar a imagem das Grandes Mães a partir de uma de suas representações mais antigas, a terra. Embora a representação do pássaro seja a que é hoje mais revisitada. Gosto muito de um poema registrado por Verger que diz que no inicio, Olodumaré enviou para criar o mundo, grupos liderados por Oxalá e Ogun. Estes grupos partiram acompanhados por uma mulher, que diante da missão dada a estes, retornou e interpelou Olodumaré para que ele definisse melhor a sua função. O poema segue contando que Olodumarë lhe disse que ela poderia segui-los em todos os lugares pois deveria ser “a mãe deles.” Como a imagem da terra, a figura da mãe, entendida como a terra, ventre aberto ao mundo foi perdendo significado dentre nós. Retomando fragmentos desse poema, podemos refletir sobre a importância das Mães Ancestrais, chamadas de “Minha Mãe” no universo religioso de alguns terreiros de candomblé. Desta maneira para que imagem mais fértil do que a barriga, “o mundo de dentro” e tudo que ele representa? Assim, a barriga recebe culto especial como a terra e algumas árvores. Ela é consagrada às Grandes Mães que mais do que principio de temor que deve ser aplacado estar para ser reverenciado como aquelas das quais nos desprendemos e ganhamos um corpo. Este é um dos maiores sentidos do silêncio que cerca seu culto, culto este que nas poucas vezes que é realizado é cercado de mistério onde palavras incompletas alternam-se com imagens tracejadas na terra que apenas poucos iniciados compreendem o significado. As Grandes Mães estão presentes, assim em tudo que tem vida, mas em especial é representada pelas mulheres graças à capacidade de gerar que desde o inicio foram investidas. Mulheres nos primórdios representadas como caçadoras atentas a qualquer ameaça à vida do grupo, daí a imagem do poema: “tu serás a mãe deles...”mulheres que desde o inicio receberam culto junto a terra pois dela dependia o equilíbrio e sustento do grupo, mas também que se relacionou com astros como o sol, a lua e constelações inteiras. É um pouco desse conhecimento que podemos refletir ao nos referirmos às Grandes Mães, diante das quais nos dobramos em direção a terra a fim de reconhecê-las como “minha mãe”, terra da qual somos parte e descendemos.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
“AOS PÉS DO ORIXÁ”
Dando continuidade à conversa sobre as “representações do corpo no universo afro-brasileiro”, vamos falar sobre os pés. Como as mãos e a cabeça, em momentos especiais, eles podem significar o corpo todo. Basta atentarmos para o ato de ungir, banhar, ou simplesmente lavá-los, presente nas culturas antigas significando purificação ou simplesmente um banho lustral que reverencia todo o corpo, lhe restaurando o aspecto de santidade.
Nos terreiros de candomblé, os pés, chamados “esé” são adorados como divindades. Estes a principio nos colocam numa relação direta com os antepassados, pais e mães dos quais descendemos. Daí a importância de está descalço para poder tocar na terra, a grande morada dos antepasados. Infelizmente sobre tal gesto recaiu uma série de preconceitos, desta maneira, andar descalço significou durante muito tempo uma espécie de sujeição, ou ainda um gesto demonstrativo de uma determinada condição social.
Ainda hoje, algumas pessoas conservam o hábito de deixar o calçado na porta da casa de quem está visitando. Assim fizeram durante muito tempo os ex-escravos ao chegar à porta de seu antigo dono. Tirar o calçado significava assim a expressão de sua eterna gratidão ao seu antigo senhor. Claro que tal gesto servia mais para o segundo, do que para os libertos e seus descendentes. Desta maneira, os pés foram ganhando outras representações.
Nos terreiros, os pés são consagrados a Oxalufan, o ancião, o mesmo que representa os primeiros grupos humanos que saíram caminhando para povoar a terra. Sábia associação de nossos tios e tias que desde cedo sacralizaram os passos lentos apoiados sobre cajados rituais de mães e pais reverenciados como avôs e avós de todos os grupos humanos.
Oxalufan é o verdadeiro corpo ancestral que esconde sob as suas vestes brancas, -que nada tem a ver com a paz propagada no ocidente- nossos antepassados. Graças a Oxalufan somos corpo. E para que representação melhor do que a imagem da pedra, base de sustentação das maiores construções que a humanidade teve noticias? Os pés sustentam o nosso corpo assim como Oxalufan como uma pedra angular sustenta os corpos que formam o mundo visível e mais aqueles que os nossos olhos nos tornam cegos para alcançá-los.
Estar em pé, saltar, correr são sinônimos de alegria, realizações. É estar saudável. É ter axé. É poder participar de momentos mágicos quando ainda os deuses e os homens juntos amassavam com os pés, o trigo, para fazer o pão; a cevada para fazer a cerveja e a uva para fazer o vinho.
Gosto muito da expressão: “lese orixá”, entendida literalmente como: “aos pés do orixá”. A imagem dos pés nas religiões de matriz africana antes de nos colocar numa posição de sujeição, nos dignifica ao nos situar; se não no mesmo nível da divindade, num plano onde as nossas relações com o Sagrado se realiza na sua totalidade. Estreitando os laços com nossa ancestralidade, os pés possibilitam-nos trilhar por outros caminhos, abrindo novos horizontes, nos tornando, no mínimo, mensageiros de sonhos semelhantes aos dos primeiros homens e mulheres que inventaram a geometria e a matemática, liderados pelos passos lentos e firmes do velho Orixá.
Nos terreiros de candomblé, os pés, chamados “esé” são adorados como divindades. Estes a principio nos colocam numa relação direta com os antepassados, pais e mães dos quais descendemos. Daí a importância de está descalço para poder tocar na terra, a grande morada dos antepasados. Infelizmente sobre tal gesto recaiu uma série de preconceitos, desta maneira, andar descalço significou durante muito tempo uma espécie de sujeição, ou ainda um gesto demonstrativo de uma determinada condição social.
Ainda hoje, algumas pessoas conservam o hábito de deixar o calçado na porta da casa de quem está visitando. Assim fizeram durante muito tempo os ex-escravos ao chegar à porta de seu antigo dono. Tirar o calçado significava assim a expressão de sua eterna gratidão ao seu antigo senhor. Claro que tal gesto servia mais para o segundo, do que para os libertos e seus descendentes. Desta maneira, os pés foram ganhando outras representações.
Nos terreiros, os pés são consagrados a Oxalufan, o ancião, o mesmo que representa os primeiros grupos humanos que saíram caminhando para povoar a terra. Sábia associação de nossos tios e tias que desde cedo sacralizaram os passos lentos apoiados sobre cajados rituais de mães e pais reverenciados como avôs e avós de todos os grupos humanos.
Oxalufan é o verdadeiro corpo ancestral que esconde sob as suas vestes brancas, -que nada tem a ver com a paz propagada no ocidente- nossos antepassados. Graças a Oxalufan somos corpo. E para que representação melhor do que a imagem da pedra, base de sustentação das maiores construções que a humanidade teve noticias? Os pés sustentam o nosso corpo assim como Oxalufan como uma pedra angular sustenta os corpos que formam o mundo visível e mais aqueles que os nossos olhos nos tornam cegos para alcançá-los.
Estar em pé, saltar, correr são sinônimos de alegria, realizações. É estar saudável. É ter axé. É poder participar de momentos mágicos quando ainda os deuses e os homens juntos amassavam com os pés, o trigo, para fazer o pão; a cevada para fazer a cerveja e a uva para fazer o vinho.
Gosto muito da expressão: “lese orixá”, entendida literalmente como: “aos pés do orixá”. A imagem dos pés nas religiões de matriz africana antes de nos colocar numa posição de sujeição, nos dignifica ao nos situar; se não no mesmo nível da divindade, num plano onde as nossas relações com o Sagrado se realiza na sua totalidade. Estreitando os laços com nossa ancestralidade, os pés possibilitam-nos trilhar por outros caminhos, abrindo novos horizontes, nos tornando, no mínimo, mensageiros de sonhos semelhantes aos dos primeiros homens e mulheres que inventaram a geometria e a matemática, liderados pelos passos lentos e firmes do velho Orixá.
sábado, 9 de julho de 2011
CABOCO CAMARADA
Não obstante o sentimento cívico que envolve o Estado da Bahia, particularmente em cidades como Salvador, do Recôncavo Baiano e do Baixo Sul, a data do 2 de julho, comemorada no sábado passado é mesmo consagrada ao Caboco. Resolvemos privilegiar essa expressão porque é ela que aparece no cotidiano das comunidades terreiros. Este fato me traz à memória uma ocasião em que fui “corrigido” por um de meus informantes numa de minhas idas a campo. Ao questioná-lo sobre onde haveria festa de caboclo, o mesmo me respondeu: “não é caboclo, mas caboco”. Ele nunca me explicou o significado do segundo nome, mas me definiu o que seria o primeiro, afirmando enfaticamente: não é caboclo, mas caboco. Caboco é o índio do candomblé. O apelo desse informante no mínimo nos ajuda refletir sobre a natureza de nossos sujeitos, homens e mulheres que possuem também seus conceitos e visões de mundo, ao mesmo tempo em que nos convida a pensar sobre as relações entre o índio e as religiões de matriz africana, fato que ainda está para ser melhor compreendido pelos estudos afro-brasileiros, longe dos estereótipos que a partir dos anos 90 reduziu a presença do “índio do candomblé”, como uma espécie de releitura africana das tradições indígenas, ou ainda algo que a fim de legitimar uma africanidade deveria ser expurgado para o mundo do faz de conta e da dissimulação. Esse pensamento orientou a maioria dos estudos afro-brasileiros realizados a partir de finais do século XIX. No entender de alguns autores, a presença do caboco em algumas tradições religiosas corrompia o conceito de tradição acabado de ser reinventado nesse período. Todavia, o índio se faz presente em todos os modelos reorganizados no Brasil, as vezes de forma mais contundente, outras de forma mais discreta, mas estão lá, chamando, sobretudo a atenção para relações que deste cedo africanos e povos indígenas estabeleceram diante de questões históricas semelhantes as quais foram expostos. Gosto muito de uma música entoada pelos cabocos que diz: “irmão, irmão meu, tem dó de mim, tem dó de eu.” Esta canção nos permite pensar, dentre outras coisas, mesmo com “ possíveis estranhamentos” desses grupos, ao menos que africanos e povos indígenas em algumas ocasiões foram obrigados a construir relações de solidariedade. Não estamos ignorando o fato de que algumas pessoas podem achar algumas de nossas afirmações ingênuas. Na verdade elas servem mesmo para chamar a atenção para a capacidade de articulação de sujeitos históricos sobre os quais recaíram preconceitos de que não foram capazes de lutar pela sua liberdade. Vejamos algumas possibilidades de encontros. Povos indígenas e africanos partilhavam a “espiritualidade da terra”. Como muitas civilizações antigas, a terra era mais do que o sustento de seus pés e fonte de sobrevivência. Ela sustentava o céu e era reverenciada como grande genitora de onde saíram as primeiras famílias. E o saber da medicina? Outro lugar de encontro. Um saber mágico religioso baseado em noções complexas sobre o corpo e um elaborado sistema de classificação de plantas. Exemplo disso pode ser encontrado nos “rituais de curas” espalhados por todo Brasil, batizados ora como afro, ora como indígena. Palavras emprestadas dos povos indígenas desde cedo circularam nos modelos afro-brasileiros reorganizados pelos africanos e seus descendentes. E a comida ritual dos terreiros? Outro exemplo dessa relação onde desde cedo, os povos indígenas forneceram elementos como alguns tipos de feijão, o milho (Zea Mays) de todas as cores e a mandioca, sem falar em algumas técnicas incorporadas pela “cozinha dos orixás.” E as visões de mundo diversas? Outro lugar de encontro, a exemplo de conceitos como o de “encantado,” chamado em algumas ocasiões como “um vento”, algo que não consegue ser definido. Encantar-se é modificar-se, é poder aparecer, mostrar-se de outra forma, ao mesmo tempo esconder-se. Encantar-se é ter poder. Encantar-se é encher-se de Divino. Alguns terreiros estão cheios de histórias de tios e tias que se transformavam em pássaros ou apareciam em vários lugares ao mesmo tempo. Tupinambá, Ubirajara, Pena Branca, Rompe Mato, Jurema, Flecheiro, Gentil, Boiadeiro, Rei das ervas, Jaguaraci, o desaparecido caboco Eru são alguns nomes que persistem na memória dos terreiros, tratados de senhor, ao lado de caboclas como Jussara e Jurema, “confundida” ora com um pássaro, ora com a árvore de onde se extrai a bebida do encantamento. Jurema em alguns locais emprestou seu nome para designar alguns modelos religiosos. Como não mencionarmos neste texto cabocos que deram nomes a seus filhos como Sr. Jubiabá, Neive Branca, ou ainda que ficaram imortalizados em seus sacerdotes como Sr. Pedra Pedra, caboco do saudoso Joãozinho da Goméia? Como não falar do caboco da Iyalorixá Olga do Alaketu? Junta-se a isso imagens como a de Baba Iaô que aparece ao raiar do dia nos terreiros de Egungum. Como explicar a presença dessa figura num modelo reconhecidamente “africano”? Apenas como um índio do candomblé, semelhante à aparição de alguns orixás em alguns terreiros “vestidos de índio”. Mais do que “o dono da terra”, o índio do candomblé pode nos ajudar refletir sobre a capacidade que estes grupos tiveram de dialogar entre si, valorizando o que tinham de mais importante, a diversidade cultural e os múltiplos universos. No mais, estes encontros aconteceram observando mesmo relações de “camaradagem”, outro conceito fundamental para compreendermos esses diálogos. Isso ajuda explicar a expressão que diz: onde os africanos tiravam os pés, o índio colocava o dele. Xeturá!!!!!
terça-feira, 7 de junho de 2011
O MUNDO NA PALMA DAS MÃOS
Na semana passada iniciamos uma conversa sobre o corpo nas religiões de matriz africana. Lembramos a sua noção como “instrumento” e algo que deve ser visto na sua totalidade, além de concepções sobre “limpeza” e “sujeira” que envolvem o corpo. Hoje vamos nos ocupar das mãos. Para compreendermos isto, temos antes que retomar a idéia de que o corpo não apenas é uma espécie de “réplica” da sociedade, mas também “um deslocamento de matérias ancestrais”. Desta maneira, cada um de nós traz a marca de nossos antepassados. Daí se dizer que o nosso lado esquerdo corresponde à nossas mães e o lado direito à nossos pais. Dentro desta visão de totalidade de mundo porque somos corpo, situam-se as mãos que em algumas ocasiões especiais podem significar juntamente com os pés o corpo todo. Por isso, as mãos gozam de prestígio dentro das religiões de matriz africana e recebem culto especial. Logo pode-se entender a expressão que diz: tudo nestas religiões inicia-se através das mãos. Mãos dos sacerdotes e sacerdotisas que após a invocação dos orixás arremessam os búzios a fim de revelar ao consulente a “vontade dos orixás”. Mãos que são estendidas o tempo todo pelos iniciados pedindo a benção dos mais velhos, que em algumas tradições as acenam da direita para a esquerda, “respondendo” o pedido. Mãos que são beijadas o tempo todo, trocando gentilezas ou expressando um dos maiores conceitos das religiões afro-brasileiras: o presente, “algo que deve ser retribuído”, garantindo o equilíbrio das relações. Afinal, como se ouve dizer: “é dando que se recebe.” Ou ainda “ninguém é tão pobre que não tenha o que dar e ninguém é tão rico que não venha precisar.” Daí a importância de doar e receber com as duas mãos. Como a cabeça que significa o corpo todo, as mãos, recebe culto particular que visa garantir as suas funções ou antes, lembrar aos iniciados a sua importância. Bastante ilustrativa a imagem do criador como oleiro, “aquele cujas as mãos é seu principal instrumento.” São nas mãos abertas que as comidas dedicadas aos orixás são colocadas e não podemos esquecer que bem distante de nós, civilizações milenares observando atentamente as linhas de nossas mãos nos legaram conhecimentos que afirmaram ser estas linhas espécies de sínteses de histórias individuais. Talvez por elas assemelhar-se aos caminhos que se entrecruzam na encruzilhada, outro conceito de vital importância para os universos afro-brasileiros. Caminhos que nos permitem refletir sobre a diversidade de saberes dispersos no mundo, ou se assim preferirmos, diversidade de conhecimentos presentes em cada indivíduo de forma particular. É um pouco dessa concepção que o nosso trabalho intitulado: Na palma da minha mão, temas afro-brasileiros e questões contemporâneas, que será lançado no próximo dia 9 de junho na Biblioteca Pública dos Barris tenta enfrentar. Trata-se de reflexões em sua maioria apresentadas nesta coluna que abordam temas relacionados às religiões de matriz africana, atentando-se para o valor de cada pessoa como responsável pela produção do conhecimento. Daí a imagem das mãos que hoje nos ocupamos. A novidade do trabalho está nas ilustrações. No trabalho do artista Rodrigo Siqueira que “diviniza”o texto através do desenho, uma das formas mais antigas de traduzir algo. Através das mãos do artista, das linhas tracejadas por este e das cores misturadas sobre a tela, o mundo vai ganhando sentido através de uma linguagem que durante tempo ficou de fora das “concepções tradicionais de produção de saber e conhecimento.” Desta maneira, a riqueza do livro assenta-se não no trabalho escrito, mas nas ilustrações que -rememorando o mito primordial que diz que no inicio do mundo o orixá Oxun, a mesma que combinou os sons, inventando a música, atribuiu cores às coisas, através das mãos, transformou o mundo numa grande tela, através de suas linhas- nos presenteia com uma exposição de óleo sobre telas intitulada: Na palma de minha mão, chamando a atenção para a necessidade de descobrirmos em nós mesmos o ponto de partida de trajetórias que nos conduzirão a diversos caminhos. E este inicio pode estar nas nossas mãos; se não, ao seu alcance.
terça-feira, 31 de maio de 2011
EM TORNO DA NOÇÃO DO CORPO NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Hoje vamos iniciar uma série de textos sobre o significado do corpo nas religiões de matriz africana. Corpo negro, a todo o tempo todo negado por estereótipos resignificado nestas religiões.
Uma das primeiras noções que aparece nos terreiros é a de que o corpo é um instrumento. Através dele, os ancestrais se fazem presente na comunidade, daí a sua vital importância.
Nas religiões de matriz africana através da iniciação o indivíduo aprende a perceber-se como corpo, em outras palavras: algo que está integrado no Universo. Exemplo dessa concepção encontramos na maioria das civilizações antigas, em especial, no Egito onde a mumificação e todos os ritos que lhe envolvia garantiam o renascimento, entendido como continuidade da vida. Assim em vários mitos podemos observar a relação entre este e a terra, outro conceito por excelência para os primeiros grupos humanos.
Nos terreiros de candomblé, acredita-se que Oxalá é o dono do corpo. Ele é corpo ancestral no qual participamos. Isso aparece contado em vários poemas como o que diz que este orixá teria modelado todos os seres a partir da mistura primordial da água com a terra, dois elementos de vital importância para as primeiras comunidades, ou se quisermos ir mais longe, um dos maiores anseios destas a fim de fundar as cidades. Diz o mito repetido pelos tios e tias do candomblé, que Oxalá teria modelado os seres vivos dessa mistura e logo após eles receberam o sopro da vida, aquilo que é “tirado” a fim de ingressarmos no mundo dos antepassados. Fato este que não diminui em nada a concepção do ara, corpo.
Diferente da concepção que encontramos em outras culturas ou mesmo da divisão formulada pela ciência moderna, o corpo, nem mesmo o “sopro vital” pode ser entendido como algo que antecede a existência do corpo, ou algo dotado de individualidade. O sopro vital não pode ser entendido também como uma memória cumulativa de experiências, pois ele só existe num corpo que quando desaparece. Quando o corpo “desaparece” aquilo que dar vida aos seres integra-se na Natureza, uma das expressões por excelência do Sagrado. Desta maneira nada antecede o corpo e não há outra forma de compreender o mundo sem este conceito.
Segue um dos poemas dizendo que o primeiro ser dotado de forma que Oxalá modelou foi uma pedra avermelhada, em seguida os astros e os demais seres. Assim através do nosso corpo participamos desses elementos. Liga-se também ao corpo, Exu, principio de comunicação. Segundo algumas histórias, ele seria esse primeiro ser dotado de forma, a pedra fundamental. Daí ser Exu o responsável pela realização de tudo no mundo e por manter o equilíbrio desse sistema no qual estamos integrados, o que é garantido através das várias oferendas denominadas por algumas tradições religiosas de ebó, ou bozó, termo que caiu em desuso graças à conotação pejorativa que adquiriu no decorrer do tempo.
Esclarecido isso, podemos agora transitar sobre outras expressões que envolvem o corpo como a expressão: “corpo fechado”. Ter o corpo fechado significa mantê-lo integrado com o universo. É o mesmo que estar saudável. A doença desta maneira é sempre interpretada como um desequilíbrio.
Uma vez que corpo além de instrumento pode ser entendido como uma pequena sociedade, sobre ele recai uma série de interdições, ou tabus já conhecidos por algumas pessoas através das palavras quizilas ou ewó. Chama-se quizilas tudo que enfraquece o nosso corpo ancestral. Daí ouvirmos repetidas vezes que algumas interdições que são descumpridas, podem até não refletirem diretamente no corpo que apalpamos o tempo toso, mas sobre a nossa ancestralidade, pois mais do que garantir a nossa identidade de pessoa, os tabus servem mesmo para cada vez mais estreitarmos os nossos laços com esta, com o momento inicial falado no mito, quando Oxalá concebeu o primeiro ser dotado de forma.
Outra noção que aparece ligada ao corpo é de poluição, através da expressão “sujar o corpo.” Nos últimos anos tenho refletido muito sobre esta. E logo de imediato acredito o islamismo juntamente com o judaísmo tenha nos influenciado. Isso não significa que a noção de sujeira e poluição não estivesse presente nas culturas africanas que nos emprestaram as suas matrizes. Este é um tema que ainda estou pensando. De qualquer maneira temos que repensar a forma como este aparece algumas ocasiões. Um fato positivo é que tal idéia nos faz refletir o tempo todo sobre a importância da “corporeidade.” Através dos banhos rituais, “mantemos o nosso corpo limpo”, ou se preferirmos reconstruímos o tempo todo o divino que está em nós.
sexta-feira, 22 de abril de 2011
ORIXA ILU E ORIXA IGBO
Neste texto vamos abordar o desconfortável tema do sincretismo afro-católico. Desconfortável não por ser algo revisitado suficiente por outros autores, mas pela série de estigmas que ao longo da história das religiões de matriz africana no Brasil, este conferiu a estas. Desta maneira, gostaríamos de iniciar esta reflexão retomando a afirmação de que o fenômeno do sincretismo é universal e por isso acompanha os grandes modelos religiosos do inicio de sua formação aos dias de hoje. Pena que tal tema, nos estudos afro-brasileiros, ao aparecer na década de 30 serviu dentre outras coisas para legitimar a idéia da suposta inferioridade do pensamento africano, elaborada no século XIX a partir das teorias racistas. Assim por muito tempo, tal assunto quando apareceu nos estudos afro-brasileiros sugeriu leituras preconceituosas que desautorizavam as visões de mundo africana, graças a relação que estes desce cedo estabeleceram com o catolicismo português. As leituras limitadas de tais relações se deram a partir da concepção de uma teoria conspiratória. Em outras palavras, alguns estudos apresentam as relações entre negros e brancos no Brasil colônia a exemplo de um campo de futebol, de um lado os negros, do outro lado os brancos. É certo que na colônia, como ainda hoje, as relações entre os não brancos e os que alto designaram-se brancos ainda continuam sendo algo predefinido. Atentar-se a isso talvez seja o primeiro passo para desmascarar o racismo brasileiro, racismo sutil, silencioso, cordial, camarada que empurra o homem e a mulher negra para o mundo do “deixa disso”, do “para com isso”, mas que sempre está ali constituindo as relações mais “familiares”. Essa suposição da teoria conspiratória, ou da ação dos indivíduos a partir de “um lugar” sugeriu a teoria da dissimulação, que seria uma espécie de “faz de conta”. Desta maneira, as relações estabelecidas desde cedo entre o universo religioso africano com outros grupos seria explicada a partir desse faz de conta onde, por exemplo, os santos católicos através de um jogo de correspondências, de analogias externas, seriam uma espécie de máscara branca no rosto de ancestrais africanos. Tal idéia nos anos 80, a partir da caminhada de quase vinte anos de movimentos negro e da presença de alguns intelectuais nos terreiro provocou uma espécie de mau estar no universo afro-brasileiro, ao menos para os participantes da II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, realizada na cidade de Salvador. Quando se refletia sobre a o retorno à África, foi elaborado um documento, na forma de manifesto que afirmava afim de garantir a África mítica e pureza africana, era necessário romper com o sincretismo afro-católico, expresso através da correspondência entre santos católicos e orixás, da ida das comunidades terreiros ao recinto católico por ocasião de algumas festas e da presença de altares católicos no barracão dos terreiros.Não estamos bem certo se o objetivo do documento produzido no encontro era mesmo desconstruir as relações entre o candomblé e catolicismo a fim de legitimar o primeiro como religião, mas com certeza quando algumas lideranças religiosas assinaram tal texto, transformado pela mídia num Manifesto anti-sincretismo, era a defesa de suas tradições como religião que tinham em mente. Esse fato foi abordado pela Prof. Dra. Josildeth Gomes Consorte que estudou tal documento durante dez anos. A partir das contribuições de seu trabalho realizamos uma pesquisa publicada sob forma de livro intitulado: Orixás Santos e Festas, onde chamamos a atenção para o fato de diferentemente de como se apresenta, o fenômeno do sincretismo é sentido de forma diversa pelas pessoas. Em outras palavras, ao contrário da idéia de “faz de conta”, mistura, fusão, justaposição, jogo de correspondências, analogias, confusão, dentre outras, o fenômeno do sincretismo tem a ver mesmo com atribuição de significados, com sentimentos. Desta maneira, a menos nas religiões de matriz africanas deve ser entendido como algo além das mascaras e disfarces, até mesmo porque não se reduz a apenas a vivências externas, ao contrário, em alguns momentos chega a ser constituidor de ritos específicos reconstruídos no Brasil, como fez o próprio Cristianismo quando se deparou com as religiões antigas, contemporâneas a sua formação. Dizer que o sincretismo afro-católico não pode ser reduzido a relações exteriores, nem ao faz de conta explicado a partir da teoria da dissimulação é ao mesmo tempo reconhecer a capacidade que homens e mulheres negros tiveram de contrariando a teoria conspiratória, romper com os lugares impostos a estes na sociedade e intervir a partir de seus lugares, tornando-os livres para criar, reinventar e dar continuidade a universos fragmentados pela escravidão que não foram destruídos graças a capacidade de diálogo com elementos simbólicos que se depararam numa verdadeira colônia. O viver em colônia facilitou o diálogo entre africanos, ameríndios, portugueses, mouros, ciganos, cristãos novos, espanhóis, holandeses e muitos outros povos. O resultado foi a produção de modelos religiosos onde símbolos provenientes de várias matrizes culturais não apenas circulam externamente, mas dentro do corpo dos próprios iniciados. É interessante também observar que tais relações só foram possíveis, graças à dinâmica de juntar do pensamento africano somado à proximidade do universo católico português.Em outras palavras, o catolicismo chegado da Península Ibérica, ao contrário do que havia se afirmado no século XIX era por exemplo tão sensual quanto o pensamento africano, basta olharmos para os santos barrocos que se não choravam nas igrejas, lamentavam a má sorte em alguns oratórios ao serem submetidos a um verdadeiro ritual de tortura pelos devotos. Depois, como chamou a atenção certa ocasião a Yalorixá Olga do Alaketu, orixás e santos da igreja no Brasil eram estrangeiros. Isso no seu entender significava o primeiro passo para o dialogo e entendimento de relações que não podiam ser reduzidas a algo superficial e externa. Em alguns terreiros de candomblé de tradição jeje-nagô, guarda-se ainda a expressão igbo para designar os não negros. Tal palavra também era utilizada por alguns povos de língua yorubá para chamar os seus vizinhos, os estrangeiros, aqueles vistos como “de fora”, categoria bem entendida pelas ciências sociais. Quanto às relações que desde cedo os universos africanos estabeleceram com os “estrangeiros” é algo que ainda esta para ser melhor estudada. Fato é que se não foram confundidos, desde cedo estes estrangeiros submetidos também a distância de suas terras de origem foram incorporados no universo religioso reconstruído no Brasil como estrangeiros, a semelhança dos ancestrais africanos. Talvez esse fato comece a explicar a presença não somente de altares católicos em locais públicos onde se realizam as festas de candomblé, como também a tradução de rezas católicas para as línguas africanas, sem falar na evocação de orações católicas e alguns santos em momentos rituais protegidos dos olhares até mesmo daqueles que elaboraram a teoria do faz de conta. Verdade é que até mesmo os santos católicos apresentados aos africanos no contexto da escravidão, não foram vistos por eles como seus senhores. Isso deu a possibilidade destes serem invocados ao lado dos orixás Ilu. Ilu, a terra distante, aquela deixada para trás, trazida apenas na memória e nas lembranças. Foram essas terras, o sentimento de fidelidade a elas que possibilitou às religiões de matriz africana juntar num mesmo sentimento religioso os orixás ilu com os orixás igbo, transformando essa experiência em algo que ainda hoje continua desafiando o pensamento ocidental greco-romano-cristão acostumado a dividir as coisas, a vida e o mundo.
domingo, 3 de abril de 2011
SALVADOR, A CIDADE INVENTADA PELOS AFRICANOS
Não obstante tudo que já se escreveu sobre o empreendimento português cuja planta foi trazida por Tomé de Sousa em 1549 para erguer a cidade que deveria tornar-se a cabeça da América Portuguesa, é digno de nota reafirmar que a cidade de Salvador é, de fato, a mais negra das Américas pois aqui, parafraseando um viajante do século XIX, desde cedo, tudo que caminhava, erguia-se e movimentava-se era negro. Negro não apenas na cor, mas nos diferentes sentidos impressos pelos africanos e seus descendentes aqui chegados. Fato é que esta cidade, não apenas a idealizada pelos portugueses, mas a vivida pelos degredados ao lado das populações indígenas que sobreviveram aos genocídios constantes que foram expostas, teve significativa contribuição dos universos culturais africanos que aqui fizeram-se presente. Mesmo nos momentos mais hostis, onde essas culturas estavam estigmatizadas e eram perseguidas, lá estava o negro e a negra, colocando não apenas a sua mão, mas o corpo inteiro, a fim de fazer da cidade de Salvador, local mais humano e acolhedor ou simplesmente aberto a diversidade. Desta maneira, se percorrermos a cidade com este olhar, logo perceberemos por traz das poucas árvores, águas e esquinas, que ainda nos restam, a profunda relação estabelecida entre esta e o sagrado por estes africanos. Sagrado presente nas Jaqueiras que outrora enchiam a cidade, dando-lhe aspecto de pomar, sem falar nas Gameleiras que uma vez por outra, ganham laços brancos especiais, denominados de ojás pelos terreiros de candomblé. Árvores, que mesmo desaparecidas continuam presentes no imaginário das pessoas como a “jaqueira do carneiro”. Pena que desapareceu de nossas memórias, a história da grande cobra que aparecia ora no bairro do Engenho Velho de Brotas, ora no Engenho Velho da Federação, à semelhança da serpente mítica que unia os reinos de Dahomé. Como não mencionar a Lagoa do Abaeté, referida pelo poeta como lagoa escura? O Abaeté era um complexo de lagoas que ao longo dos anos foram reduzidas graças ao crescimento urbano. Abaeté, é ainda,na verdade, morada de Iewa, o ancestral que escondeu um príncipe nas suas roupas, a fim de que a morte não lhe enxergasse. Certamente foram as negras que lavavam de ganho que levaram Iewa para a Lagoa do Abaeté, se não estas, foi uma negra quem contou pela primeira vez a história de que a origem da “lagoa escura arrodeada de areias brancas” seria as lágrimas de uma mulher que havia se recolhido para chorar a perda de um de seus filhos entre aquelas dunas. Talvez sejam mesmo as lágrimas das mulheres negras que choram a morte de seus filhos violentamente assassinados que alimentem a Lagoa. E como não mencionar o Dique, motivo ainda hoje de debate pelos historiadores? Holandês ou português? Não importa! “O Dique é africano” e para isso foi dividido em bacias, espaços imaginários conhecidos pelos donos de dois barquinhos que resistem, remando em direção às bacias de Oxun, de Yemanjá, de Nanan, ou àquelas sobre as quais não se falam. Pena que Oxumarê perdeu a sua Cachoeira para a poluição e depois que as “Matas de Pirajá” transformou-se num Parque, outro sinônimo de descaso, o culto aos orixás ficou sem esse espaço, atualmente controlado pelos traficantes e assaltantes, prova visível do descaso pelos “territórios afro-brasileiros” E as nossas ladeiras? Todas elas foram sacralizadas a exemplo das encontradas ainda hoje em cidades africanas. De forma especial, a Ladeira da Saúde e a Ladeira do Cabula. Nomes que também vão saindo de moda, caindo no esquecimento provocado pelo projeto de desafricanização que marcou a chamada “modernização das cidades”. Antes que as nossas esquinas, vulgarmente chamadas encruzilhadas se transformem em rotatórias, vamos lembrar das encruzilhadas das Sete Portas e do Largo do Tanque. Destaque também deve ser dado para as feiras de São Joaquim e do Japão, territórios negros onde circulam práticas africanas ao lado de tantas outras. Acredito que perceber a cidade de Salvador a partir também destes olhares que tem as religiões de matriz africana, como principal mantenedora, constitui um dos maiores desafios frente aos problemas sociais que atingem a cidade lhe fazendo ao mesmo tempo a mais negra da diáspora africana, a que também os descendentes de africanos lideram os índices de morte violenta, aglomerado populacional e déficit relacionados a saúde e educação. No mais, é continuar pedindo que Iemanjá, orixá, Mãe do Novo Mundo não abandone as pedras de praias que aos poucos vão desaparecendo como a do Rio Vermelho, de Itapuã e da Ponta do Humaitá a fim de que as suas areias possam ser convertidas em anos de felicidade para que possamos continuar contando histórias, renovadas quando reproduzidas, a semelhança de nossos pais e mães que antes mesmo de viver, idealizaram uma cidade. Acreditamos que estes sonhos sejam para a cidade seu maior legado e para nós, o maior presente.
À LIDER DAS MULHERES
Oba é um dos “orixás femininos” sobre a qual recaiu uma espécie de esquecimento. Todavia, não obstante este fato, ela goza de enorme significado no universo das religiões de matriz africana. Muito pouco se tem escrito sobre a mesma, talvez por ela nos remeter a um mito original que se repete em várias culturas que fala “de um tempo em que o mundo era governado pelas mulheres.” Em alguns terreiros de candomblé que ainda preservam a figura desse principio ancestral, Obá aparece como uma caçadora. Este fato faz alusão aos primórdios dos grupos humanos que tinham a atividade coletora como principal meio de sustento. Pena que ainda hoje quando retomamos esta imagem, logo nos vem à mente figuras masculinas, contrariando alguns mitos afro-brasileiros que trazem enfaticamente a presença de mulheres a frente de grupos que mais tarde darão origem às grandes civilizações. Em todos os mitos preservados no Brasil, Obá apresenta-se como caçadora ao lado de outras como Oyá e Iewá, daí a sua ligação direta com Odé, o caçador. Outra imagem que reforça a antiguidade do seu culto é a de que tal orixá também é um rio do mesmo nome que ainda hoje corta uma parte do território iorubá. Conta-se que, após vários dias de batalha, estando os orixás liderados por Ogum e Oxalá, fragilizados pela guerra, Obá não se contentando em reunir apenas as mulheres de seu tempo, convocou todas as fêmeas do mundo animal. Ao ver Obá chegar rodeada de animais, aquela guerra foi vencida porque os inimigos fugiram de seus postos. Afirma-se nos terreiros que Obá mantém relações profundas com os animais, outra imagem antiga preservada do tempo em que os primeiros grupos humanos acreditavam encantá-los através de seus desenhos. O tempo em que os caçadores e caçadoras confundiam-se com a própria caça. O culto a Obá é ainda hoje cercado de mistério. Mistério velado pelas cores escuras, representadas pelo vermelho encarnado que compõem seus elementos rituais nas poucas vezes em que aparece. Em alguns terreiros de tradição jeje nagô, a cantiga que diz “Obá, líder da sociedade Elekô comanda todas as mulheres guerreiras”, inicia a seqüência de músicas que dentre outras coisas, lembra a sua importância como representante das mulheres como caçadora, chamando para si funções sociais, políticas, culturais e religiosas. Em outras palavras, Obá, além de desempenhar um papel como desbravadora, cabia a ela defender o grupo, o protegendo em todos os sentidos, fomentar seu sustento e garantir a sua integridade política. Os caçadores eram ainda médicos, mágicos, verdadeiros entes divinos que sabiam que da relação de sua comunidade com os ancestrais dependia a sua permanência no mundo. Daí a expressão: “Obá Elekô”. Elekô, a exemplo de muitas outras sociedades secretas, era uma espécie de “maçonaria de mulheres”, que dentre outras funções, zelava pela preservação da relação entre estas e a terra, para alguns grupos humanos, a grande mãe ancestral. Pena que apenas persistiu dentre nós, fragmentos de uma história que diz ter sido Obá enganada por uma das mulheres de Xangô que a teria induzido cortar uma de suas orelhas. Acho mesmo que a imagem da orelha cortada por Obá neste mito é menos importante do que aquilo que considero tema principal: o amor. Obá é símbolo do amor, esse principio universal que por mais esforço já se tenha feito para traduzi-lo através das poesias, das filosofias, das religiões e recentemente da ciência, ainda é um mistério, talvez por ser ele um dos mais divinos. Gosto muito da história que diz que certa ocasião muito triste por ter perdido um de seus filhos, uma mulher adentrou-se na mata e pediu a Obá que o trouxesse de volta. Adormecida na floresta, a jovem sonhou com sementes que lhes eram trazidas por um enorme pássaro. Acordada do sono, a mulher foi procurá-las. Chegando a beira de um rio, mal pode conter a sua alegria ao deparar-se com as sementes que a noite havia sonhado, ao mesmo tempo em que se deu conta de que, era ela mesma o pássaro que a noite havia visto em sonho. Das sementes plantadas pela mulher arrebentou uma planta que se transformou numa árvore de tronco escuro a partir da qual a humanidade melhor podia se representar, trazendo presente na forma de esculturas seus antepassados: o ébano. Obá, dessa maneira é a “verdadeira deusa do ébano”, não somente da madeira escura, de brilho natural que tanto nos representa através das mãos dos artistas africanos, mas a verdadeira “deusa negra” presente em todas as mulheres, nossas irmãs e mães que hoje mais do que nunca vão ao enfrentamento para defender a sua dignidade através da garantia da integridade de seus filhos. Mulheres que embora tenham conquistado espaços nas sociedades contemporâneas ainda são aquelas mais estigmatizadas, violentadas e que tem seus direitos menos respeitados. Mulheres que como Obá amam, e por isso vão a luta pelos seus sonhos e são capazes não apenas de liderar quilombos, revoltas armadas, greves, movimentos sociais, mas grupos inteiros pois assim foi desde o inicio quando Obá saiu á frente convocando todas as mulheres para reconquistar o mundo.
quinta-feira, 24 de março de 2011
A IMPORTANCIA DA CABEÇA PARA AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA
A cabeça, chamada pela tradição jeje nagô de ori, goza dentro das religiões de matriz africana, de importância e significado particular, sendo desta maneira, motivo de adoração. A ela são dedicadas cantigas especiais, oferecidas comidas em certas ocasiões, ao mesmo tempo em que é adornada como forma de reconhecimento e distinção. Este culto individual talvez seja o que mais conseguiu preservar elementos do islamismo no momento em que as religiões afro-brasileiras, a menos aquelas influenciadas pelo chamado modelo jeje nagô, foram constituídas. Desta maneira, num complexo ritual que se desenrola protegido dos olhares curiosos, podemos em algumas casas de candomblé, ver alternando-se palavras islâmicas com iorubas, atestando o longo diálogo que desde cedo estas duas religiões estabeleceram. Como no extinto candomblé mussurumi, o culto a cabeça começa a desenrolar-se no por do sol para que antes do dia seguinte possa está concluído. No culto a Ori, é ressaltada a sua antiguidade e precedência aos próprios ancestrais, idéia elaborada observando a vida que se desenvolve no útero, na ocasião em que a cabeça é a primeira que pode ser contemplada. Desta maneira, ela não faz parte do corpo, mas representa o corpo inteiro. Corpo mítico, ancestral, do qual nada mais somos do que seu deslocamento. Esta filosofia permite nos colocar em confronto com saberes que não apenas fragmentaram o corpo, mas também limitaram a inteligência à cabeça. O culto a ori ao remetermos às nossas origens nos permite inicialmente conceber esta faculdade de significar, entender as coisas, que assim sendo, deve ser entendida no plural- inteligências- como algo que pertence a todo Universo, do qual somos parte. Afirmar que a cabeça é anterior aos orixás e por isso ela deve ser adorada primeiro, nos convida a refletir sobre a nossa participação no mundo como algo integrado; assim sendo, a inteligência não pode ser concebida como algo que esta limitado a uma parte do corpo, mas a todo corpo como algo que faz parte do universo. Nos terreiros de candomblé, muitas são as estórias que tentam ilustrar a importância do ori para as pessoas, dentre elas a que lembra um período em que estas não tinham cabeça e vagavam sem direção, até o dia em que um determinado rei, a fim de tornar o seu reino próspero, resolveu consultar Orunmilá, o velho adivinho, que prescreveu como oferenda, além de outros elementos, frutas redondas de todos os tipos. E assim foi feito. Chegado o momento exato para realizar a oferenda, não tendo como levar tudo que havia providenciado à presença de Orunmilá, Exu, o mensageiro, ofereceu ajuda. Sugeriu que sobre os ombros das pessoas fosse colocado uma rodilha, espécie de roda feita com um tecido torcido, que quando que fixou-se nos ombros transformou-se logo no pescoço. Em seguida, assim que a primeira fruta foi colocada sobre a rodilha, prendeu-se a ela e assim foi se sucedendo com toda a humanidade que a partir de agora havia ganhado uma cabeça. Afirma-se também nos terreiros que a cabeça é a síntese de nossas possibilidades, conceito que já abordamos, chamado destino, entendido como um conjunto de condições a partir do qual devo orientar as minhas ações e a minha vida para ser feliz e agir sempre certo, ou de acordo com o meu caminho, ou melhor, com as escolhas que faço diante do leque de possibilidades que me deparo a todo instante. Acredita-se também que é um artesão, chamado Ajalá quem modela as cabeças a partir dos elementos da natureza. “Cabeças que são distribuídas aleatoriamente.” Todavia, cabe à Iyemanjá, cuidar de todas as cabeças, razão pela qual recebe o título de Iyá ori “mãe das cabeças. Iyemanjá, a mesma que toma conta das contas que os iniciados levam no pescoço, não permitindo que elas se quebrem e que mantém o equilíbrio das teias. Iyemanjá é a dona das cabeças. São alguns destes conceitos que o visitante da exposição Ori Orixá em cartaz na Biblioteca Pública do Estado da Bahia pode conferir em dezoito peças que retratam os orixás a partir da cabeça, de sua importância para as religiões de matriz africana, valorizando, sobretudo, elementos africanos colocados a parte no momento de elaboração de algumas iconografias afro-brasileiras.
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Quem sou eu
- VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR
- Salvador, Bahia, Brazil
- Antropólogo, Doutor em Ciênciais Sociais pela PUC-SP e Pós Doutor em Antropologia pela UNESP. Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, Grupo de reflexão inter-disciplinar sobre Teologia e cultura fundado no início dos anos 90 em São Paulo.Professor da Escola de Nutrição da UFBA, autor de vários livros na área de Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.